sábado, 28 de março de 2009

vigésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Dentro daquele pequeno quarto um pedaço daquele pequeno mundo infernal. Os animais atacam-se vezes a mais; uns defendem-se da maldade que lhes advém da raiva; outros aproveitam-se das benesses dos mais fracos, dos aparentemente mais fracos. Dentro daquele quarto Wallace tentava sobreviver à teimosia. Há dois dias que se esforçava para matar aquela mosca.
Na rua o ar infiltrava-se nos poros. Era escuro e era quente e era Verão. Quase ninguém suportava permanecer em casa, quase ninguém suportava as pequenas paredes que as pequenas casas ofereciam, quase ninguém. Na rua o silêncio não assustava, não tinha a aparência da morte, tinha a aparência do cheiro a eucalipto e a aparências das sombras que avançam com a luz da Lua. É um oceano de ar quente aquilo que nos rodeia, apercebia-se Joseph, ao suspirar com intranquilidade. O ar a entrar-lhe pela garganta como um travo desfeito de qualquer coisa obrigatória tinha uma composição diferente: no meio do suspiro, um movimento de engolir da glote foi o indício de que algo de sólido vinha misturado com o ar: um insecto, mais precisamente, um insecto que se aproveitou da boa vontade dos homens que suspiram. Neste caso o insecto era um mosquito de cinco milímetros de comprimento e com oito olhos cuidadosamente colocados na curiosidade de um guerreiro.
Dentro do quarto apertado a mosca era lenta na deslocação mas perspicaz na esperteza. Wallace está há dois dias com o mesmo chinelo na mão: uma arma potentíssima de matar moscas chatas, justifica-se para si, enquanto a mosca lhe passa novamente junto ao ouvido, realizando um zumbido severo e destemido. Um Homem vence sempre diante de uma mosca, pensava Wallace, enquanto seguia os passos voadores da sua presa. Deixa-te repousar que eu já te apanho. E a mosca repousava, mas nos sítios mais difíceis de alcançar: dentro das torneiras, entre duas gavetas, no dedo infectado de Wallace. Tudo sítios onde o chinelo não podia actuar como arma. Wallace esperaria que a mosca saísse de dentro da torneira, esperaria dias se fosse preciso, esperaria naquela posição de ataque: o braço levantado em tensão, pronto a avançar em grande velocidade. Mas o talento também se trabalha, o talento de ter paciência. Wallace, incompreensivelmente, adormece, e o talento de se ser mosca encosta-se ao momento. A mosca sai da torneira, sobrevoando o espaço silencioso, e entra para dentro do ouvido de Wallace.
Meses mais tarde o senhor Joseph encontra Wallace na rua, o Inverno permite tapar a pele mas não a identidade: a cara é o que se escapa ao frio. ZZZZZZZZZZZzzzz, é o que diz o senhor Joseph, quando abre a boca, falando através do mosquito que agora tem aparência de amígdala palatina. Mais dois homens que conseguimos dominar, não é verdade?, foi o que ouviu Wallace, através da mosca que se passeava pacificamente pelas membranas fibrosas dos tímpanos deste homem teimoso.


autor: rui almeida paiva

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