sexta-feira, 27 de março de 2009

vigésima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Numa vila com jardins agradáveis, ervas verdes e flores coloridas, as pessoas surgiam, calmamente, e trocavam ideias sobre a intimidade dos habitantes daquela localidade específica. O tema de conversa era único: a vida dos que se escondiam dentro de casa, dos que guardavam a sua desgraça como se fosse um segredo difícil de se propagar. Claro que havia outros assuntos interessantes para se discutirem, mas eram os boatos o que motivava melhores momentos, os boatos mais horríveis. A voz dos homens era tão feia, nesta vila, como a voz das mulheres; era veneno puro; cuspo vermelho; adjectivos sujos e insultuosos. Por isso não existia um «bom dia», ou um «até logo», nem mesmo se falava de trabalho ou de lazer; o tema de convívio e de saudação era único: tentar destruir ainda mais a vida dos que tinham sofrido um infortúnio.
Joanne, é o nome da mulher que teve o acidente hoje à tarde.
Quem, a filha dos Tamen?
Não, a outra, a que teve um filho do Soldado.
E morreu?
Quase, quase morreu debaixo de um acidente.
Como é que isso é possível?
É uma força de expressão. Caiu-lhe o tractor em cima, que é o mesmo que dizer que lhe caiu o acidente em cima das duas pernas.
Foi, por assim dizer, um acidente pesado!
Horrível, de ligeiro não teve nada.

Na vila tinham construído dois novos parques. Num desses parques passava um pequeno rio; no outro, um grande lago cobria a parte central de um descampado relvado. Ao todo, eram dez os espaços verdes que tinham sido construídos para satisfazer as necessidades de uma Natureza Social mais organizada: caminhos pedestres, campos desportivos, bancos e cadeiras incluídos, e uma quantidade de sombras bem escuras.
Eram também dez a quantidade de Desgraçados que se escondiam em casa, com medo de revelarem a sua má sorte. Há uma semana eram oito, os Desgraçados, agora são dez, por isso é que se apressaram a construir os dois parques: na vila, uma quantidade de parques idêntica a uma quantidade de Desgraçados era imprescindível para se conquistar um bem-estar pleno entre a população.
Clubin, o Presidente da Câmara desta vila do interior, tinha muito trabalho quando a desgraça atacava em força, e aquela situação parecia grave. O seu lugar podia ser posto em causa se não restabelecesse a parte cómoda daquele povo: é exclusivamente obrigatório sentirmo-nos confortáveis, esclareceu imediatamente Hans, um dos membros mais influentes entre as famílias «limpas» em acontecimentos tristes. Clubin tornar-se-ia um falhado, se não conseguisse resolver atempadamente a situação de Gilliatt e Joanne, os dois habitantes recentemente atacados pela infelicidade (Gilliatt não aguentou mais e, com os nervos inchados, foi apanhado a bater na mulher e nos filhos com um martelo; Joanne foi a mulher que teve o acidente com o tractor: ficou sem as duas pernas).
Clubin isolou-se no seu escritório depois de o informarem do sucedido. Preciso apenas de dez minutos, disse ele à sua pequena secretária de voz rouca. Clubin fechou os olhos, no escuro activo uma série de qualidades, no escuro tenho a sensação de que as coisas são muito pequenas. Para ele, o seu cérebro funcionava como uma nuvem: tenho um cérebro que consegue ver de cima os sítios; o mundo, na minha cabeça, só aprecia um tipo de habilidade: a aviação; aqui está uma das qualidades exigidas para o cargo que pratico; e quando tenho necessidade de consultar o mapa da vila, lanço-me para os céus e pesquiso descansadamente a organização do meu território. Ali está um bom local para construir os dois parques novos, disse Clubin, naquele seu pensamento aéreo. Do lado esquerdo ficará o parque para o senhor Gilliatt, e do lado direito o parque para a senhora Joanne, adiantou o Presidente, apontando para a periferia Norte da sua vila.
Todos os parques, por decisão de Clubin, começaram a ser elaborados na periferia da vila. Uma boa medida, confirmou Hans, no dia em que se apercebeu da estratégia utilizada pelo Presidente. Clubin, antes de abrir os olhos e aterrar na realidade, ainda teve tempo para realizar uma inspecção aos restantes espaços verdes; de imediato apercebeu-se de que estes novos parques, construídos para os mais recentes Desgraçados, fechariam completamente a vila num círculo perfeito. E quando houver mais Desgraçados, onde poderei construir mais parques?, numa nova periferia, respondeu Clubin, para si: faço outro círculo para o lado de fora da vila, e assim sucessivamente farei novos círculos se for essa a necessidade imposta pelas terríveis consequências do destino.

Preparada para sair de casa para o parque que lhe tinha sido destinado, Joanne aproxima-se da porta; a cadeira de rodas é uma das muitas dificuldades que lhe fazem companhia desde o dia do acidente. Seria breve, o percurso, até ao parque. Ao atravessar uma rua secundária, é avistada por um casal. Estás a ver o que estou a ver?, disse a mulher. A nova Desgraçada não vai sozinha para o parque, alguém empurra a sua cadeira, acrescenta o homem que, de repente, aperta a mão da sua companheira para controlar a respiração repentinamente lenta.
O aspecto de Sophia, a filha de Joanne, confundiam a construção do tempo, parecia velha pelas características vindas da tristeza, embora a pele, como se fosse de plástico, não tivesse mais de trinta anos. Como filha, Sophia tinha uma dedicação invulgar para com a mãe. Dentro dela, a necessidade física que possuía pela imagem maternal era interpretada como doentia: és o meu cancro, disse um dia Sophia à sua mãe. Joanne não compreendeu como alguém poderia ser o cancro de outra pessoa. Destróis-me as células pelo simples facto de existires, mas por muito que tente nunca conseguirei tratar-me da possibilidade de um dia me deixares, és um cancro, o meu cancro, e gosto de ti porque não tenho mais nada para gostar, disse-lhe Sophia, nesse mesmo dia.
Quando Joanne ficou sem pernas, Sophia ficou contente: assim dependerás de mim para viver. Foi o dia mais feliz da sua vida, e, automaticamente, sem que lhe ensinassem a lidar com um amputado, Sophia começou a tratar de Joanne com a mesma dedicação com que ajudou a criar a sua boneca de cinco anos.
A população estava terrivelmente ferida com os factos observados. Um único Desgraçado poderá usufruir do parque, ninguém mais; e a regra tinha sido violada, e quanto a isso ninguém estaria em condições de utilizar argumentos válidos. Duas famílias decidiram juntar-se para lutar contra esta situação. Outras quatro famílias não estavam dispostas a abdicar do seu descanso. Os confrontos, em poucos dias, tornaram-se inevitáveis. Os insultos verbais fugiram, em poucos minutos, para os membros periféricos: para os encontrões, os arranhões, os pontapés; formando um volume de violência inegável aos olhos das leis estabelecidas. Com a população toda envolvida, os cidadãos, individualmente, foram denominados Desgraçados.
Em dois dias, vários círculos perfeitos de parques foram construídos no lado de fora dos círculos anteriormente existentes. Clubin, o Presidente da Câmara, satisfeito com as medidas tomadas, era agora o único habitante daquela vila, por isso, sozinho, achou por bem aprovar uma nova lei: libertar os primeiros dez Desgraçados.

autor: rui almeida paiva

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