domingo, 22 de março de 2009

décima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Avaliação final, soletrou o professor. Terão de encontrar a solução de algo que ainda esteja para ser encontrado no mundo. O tema do trabalho é livre. Como sempre, a escolha é vossa, necessitarão apenas de se concentrar em algo que seja fundamental para a formação dos vossos interesses. É estritamente obrigatório encontrarem uma explicação para o problema. Por isso repito, UM PROBLEMA QUE SEJA NECESSÁRIO PARA VOCÊS É O SUFICIENTE. Insisto ainda no seguinte, exclamou o professor: o conteúdo do trabalho, procurem-no por aí; eles esvoaçam, os problemas por resolver, esvoaçam aos milhares.
O professor senta-se, arruma dois lápis entre as folhas de um belo livro de um poeta francês.
Têm um dia para concluírem o estudo. Até amanhã. E boas ideias, finalizou o professor.
Os alunos levantam-se.
Amanhã à mesma hora e no mesmo local, acrescenta ainda o professor.
Vinte e cinco alunos de nove anos de idade estão de pé, em silêncio, fazem uma fila para sair da sala de aula.
Quando construírem vinte e cinco portas nesta sala – pensa Poulain, um dos alunos com mais cabelo – não teremos de nos organizar em fila: ganhamos tempo útil para gastá-lo em tempo inútil. Correr – pensa ele – correr num parque extenso e sem itinerário é ocupar o Tempo numa tarefa estupidamente inútil. Poulain olha para a porta, está quase na sua vez de a transpor. Dentro dele, dentro do menino com mais cabelo de toda a turma, uma contagem: setenta e quatro, setenta e cinco, setenta e seis ... são os segundos, explica, os segundos que aquela porta me está a fazer perder ... setenta e sete, setenta e oito, setenta e nove, oitenta. Poulain encontrou o seu problema para resolver; tira do bolso uma fita métrica: é o seu bloco de notas, já todos o sabiam. Poulain não sai da sala, desloca-se antes para o lado, ali está a sua ideia para o dia da avaliação; então começa, ali mesmo, a formar um sistema complexo de reflexão teórico. Uma única porta é um objecto eficaz de deitar Tempo para o lixo, desabafou ele em voz baixa, como se estivesse a revelar um segredo muito importante a si próprio, um segredo algo perigoso, acrescenta. Poulain estica a fita métrica, mede vinte e quatro vezes a porta. Começa, depois, a desenhar, uma a uma, as portas nas paredes, nas paredes de toda a sala: se não tiver espaço aqui em baixo, só me restará o tecto para concluir o trabalho. O tecto também é uma parede? questiona o aluno. Sim, também é uma parede, responde. Poulain não tem mais espaço cá em baixo, sobraram-lhe ainda duas portas. Poulain sobe a um escadote. Lá terei que desenhar duas portas no céu do conhecimento, exclama Poulain, tendo consciência, a partir da expressão poética «céu do conhecimento», que demonstra a gratidão que tem para com aquela sala: aqui estudo há quatro anos consecutivos, os melhores quatro anos da minha vida, acrescenta ele, que tem nove anos, e que está satisfeito com o que aprendeu naquele espaço.

Os restantes alunos, um a um, percorrem os corredores da escola com a convicção a acompanhá-los. É bom admirar uma criança pela sua inteligência, e todos os alunos, por esta altura, tentam seleccionar uma das muitas ideias que tiveram nos últimos minutos. Crianças que estão habituadas a exercitar o cérebro, justifica o professor de Educação Física, que é um dos melhores filósofos das capacidades motoras: um pensamento, para que seja consistente, tem de ser forte, rápido, flexível, resistente e ágil, e é disso que tratam as minhas aulas, é de melhorar as capacidades físicas dos músculos que conseguem fazer dos pensamentos umas verdadeiras cambalhotas.

Vinte e cinco alunos calados, espalhados pelo edifício da escola, cada um inicia o seu estudo com um método singular: exercitam pensamentos, todos eles, e isso é o que têm em comum: o prazer pelo exercício menos cansativo do corpo: pensar livremente.

Algumas células têm por nome neurónios, entre elas fluem informações estranhas, pensa Anne, quando encontra uma associação de ideias várias vezes escondida no seu cérebro. O caminho percorrido pelo neurónio A, até ao neurónio B, é realizado por uma sinapse, que é o meio de transporte mais frequentado pelos génios. «O meio de transporte das ideias foi desenhado por um criminoso», leu Anne, de um livro sobre a religião. Pode ser feia, a sinapse, mas tem cá uma velocidade!, esclarece a aluna. Anne percebe que encontrou o seu problema ainda sem solução: quantas sinapses são necessárias para carregar o Amor? A aluna encolhe-se, está no chão, e os joelhos tocam no seu peito esquelético – Anne é a menina mais magra da turma. Parece estar a sofrer, talvez seja gastroenterite, referem os professores, que se desviam da aluna. Mas não, Anne apenas se recorda de um momento da sua vida, do único momento em que realmente amou alguém. Se conseguir reconstruir aquele dia em que me apaixonei, conseguirei, com alguma certeza científica, fazer uma recolha preciosa do número de sinapses que foram necessárias para trazer o amor cá para dentro. Anne concentra-se num único momento: o beijo na boca. A língua. A língua avança em círculos e anda à procura. Está de olhos fechados, os lábios secos enrijecem, é altura de fazer a contagem das sinapses. O beijo termina, Anne já tem o seu resultado: catorze sinapses, diz para si, o Amor são catorze sinapses de desejo.

No dia seguinte, o professor entra na sala de aula com um outro livro debaixo do braço, desta vez traz um filósofo alemão. Os alunos entram, parecem cansados. O professor abre o livro e lê com uma voz doce e descansada: «Toda a criança nasce Poeta; nasce obrigatoriamente Poeta da Criatividade. Alguns, em adultos, se tiverem os estímulos diariamente actualizados durante o seu crescimento, serão Poetas da Biologia – o biólogo. Outros serão Poetas da Engenharia – o engenheiro. Outros serão Poetas das Palavras – o escritor.» Cinco minutos de leitura é o que está estipulado no programa curricular para começar uma aula. Passemos agora para a avaliação dos vossos trabalhos. Anne, entusiasmada com a sua última descoberta, dá um passo em frente: analisei a reacção química do amor no nosso cérebro, anunciou a menina mais magra da turma. Muito bem, Anne, o cérebro é que nos interessa, o Grande Músculo em investigação, exclamou o professor, entusiasmado. A aluna decide, então, escrever no quadro o seu resultado: «O Amor são catorze sinapses de desejo». É imprescindível encontrar catorze sinapses disponíveis para transportar o amor para dentro daquilo que sentimos, é esta a conclusão que vos trago aqui hoje. O professor, sorridente, passa a admirar esta aluna de ossos salientes e de costas curvadas.
No final da aula todos reparam que Poulain ainda não foi avaliado. Poulain, é a tua vez, diz o professor. É a tua vez, não ouviste?, repete. Poulain faz sinal de silêncio com a mão direita: pede para que tenham um pouco mais de paciência. Como um raio, o som da campainha entra dentro da sala anunciando o final da aula. Poulain dirige-se para a porta, num interruptor acende as luzes. Por todo o lado estão novas portas. Vinte e cinco portas, anuncia o aluno, e cada um de nós ganhará oitenta segundos da sua vida de cada vez que aqui entrar. E é isso que tenho para oferecer no presente dia: uma máquina de ganhar Tempo, Tempo Útil. Entusiasmados, os colegas de Poulain correm para as diferentes portas, desejosos de experimentar aquela nova máquina. Contudo, Poulain esqueceu-se das duas portas presas no tecto. Anne olha para Poulain, tem vários aspectos da sua sensibilidade a circular: catorze sinapses de desejo, pensa para si. Poulain avalia a distância entre o seu corpo e a saída construída no tecto: é impossível chegar ali, conclui, desiludido. Anne oferece a sua mão a Poulain. Estão de mãos dadas e o calor absorve-os por dentro. Sem repararem, chegam perto do tecto. Mesmo à sua frente, as duas portas do conhecimento tornam-se reais. Abrem-nas ao mesmo tempo. No outro lado, Anne e Poulain encontram apenas o céu. Decidem continuar caminho.



autor:rui almeida paiva

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