quinta-feira, 19 de março de 2009

décima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Quem vivia naquela quinta maior que a aldeia de Aurore – a aldeia mais próxima de todo aquele país imenso de nada – era Bosco, um atleta das grandes provas dos sistemas numéricos – o único e mais famoso matemático daquela Nação.
Um dia, quando Bosco ainda era jovem, o Presidente daquele país desértico e sem ninguém veio até à sua quinta com uma boa proposta. Doutor Bosco, gostaria que encontrasse uma fórmula que multiplique a vida do nosso país.
O que está a pensar fazer, senhor Presidente?, questionou o famoso matemático.
Estou a pensar num país cheio de cidades movimentadas, de homens e mulheres que se apaixonem, de trabalhadores dedicados, de crianças a jogar xadrez, de museus construídos para tapar as grandes obras desta nova civilização moderna.
Bosco sentou-se no seu grande cadeirão: parecia apreensivo. Inclinou depois o peito para trás; os dedos das mãos do matemático dançavam uns nos outros, provocando um tipo de sono anestesiante. O Presidente cerrou os dentes para não adormecer: dedos muitos verbais, pensou o visitante, devem fervilhar de métodos algébricos. Eu chamar-lhes-ia simpáticos, ouviu o Presidente, de uma voz dentro da sua cabeça em tudo idêntica à do consagrado matemático, dedos muito simpáticos, ainda acrescentou a voz. Assustado, o Presidente engoliu dois travos de saliva porque os ouvidos zumbiam do nervosismo, então decidiu concluir algo que o acalmasse: todos temos dois tipos de audição, a audição exterior, que é amplificada por um tipo de órgão visível, o ouvido; e a audição interior, que é amplificada por um tipo de órgão invisível, a loucura. E eis a causa destas vozes estranhas: a loucura, desabafou o Presidente para si, sem se aperceber do que tinha meditado.
O silêncio entre os dois intervenientes manteve-se por mais uma boa meia hora. Bosco analisava os seus livros com todos os sentidos que possuía: olhou para eles, tocou neles, lambeu-os, cheirou-os, e ouviu-os. Só assim saberei se posso contar com os meus queridos livros, justificou Bosco, ao se aperceber do ar confuso do Presidente. Só assim consigo compreender se tenho material suficiente para um estudo tão difícil como este que me veio aqui propor hoje. Bosco tossiu depois de lamber um dos seus mais antigos manuais de Geometria, dando, desta forma, tempo para concluir o que ia para dizer: posso-lhe apenas adiantar formalmente que a sua proposta é impossível de realizar, explicou Bosco, enquanto levantava meia dúzia de livros escondidos entre a desarrumação dispersa por tudo o que era sítio: uma desarrumação intelectual, verificava o Presidente. Mas também lhe posso adiantar outra premissa, disse Bosco, com os traços mais curvados para dentro, especialmente as linhas da testa, a sua proposta é apenas matematicamente impossível, mas poeticamente possível. E eu, senhor Presidente, eu não sou matemático, eu sou apenas um poeta dos números, explicou Bosco, antes de começar a resolver equações com grande rigor de complexidade. Primeiro começarei por uma pequena aldeia, só depois me aventurarei para outras dimensões, para as cidades, sentenciou o Poeta dos Números. A primeira obra de um ser humano com sucesso é tentar ser pequeno quando ainda não tem tamanho para ser grande; uma aldeia, senhor Presidente, é o que lhe posso prometer para já.
O Presidente, satisfeito, saiu da quinta do matemático sem o cumprimentar; não por falta de educação, que não é o caso deste Presidente, mas sim por falta de correspondência na simpatia; é que Bosco – na altura em que se devia ter despedido – já resolvia problemas numéricos demasiado confusos e demasiado cativantes para ouvir o seu exterior. Espero encontrá-lo brevemente, ainda anunciou o Presidente, mesmo junto ao seu ouvido, esperarei pelos seus resultados ansiosamente; mas nem uma reacção vinda do lado de lá. A matemática corria nas mãos daquele homem como as pernas correm em cima de um grande velocista. Se o víssemos de fora, contou mais tarde o Presidente aos povos dos países vizinhos, confundiríamos o senhor Bosco com um poeta. Só um escritor tem aquele fascínio por escrever ininterruptamente. Mas se nos chegássemos a ele como eu me cheguei, facilmente perceberíamos que aquele homem era um poeta diferente: era um poeta das propriedades aritméticas. Eram números, em vez de rimas emparelhadas, aquilo que ele escrevia; eram rimas exactas de um abecedário que explicava as soluções linguísticas.

Bosco tinha-se preparado devidamente durante parte da sua vida para um desafio como aquele. É mais magia que sabedoria, avançava ele, quando fazia uma pausa no seu trabalho de construtor de países. E ele sabia melhor que ninguém que, a partir das suas equações resolvidas, algures ali perto nascia um objecto. Uma lanterna, pensava ele, uma lanterna deve fazer falta na única rua da aldeia. E assim passava dias inteiros para explicar como os números e as fórmulas estranhas eram capazes de fornecer vida aos objectos; como era possível, a partir dos seus métodos estranhamente poéticos, ocupar o espaço com matéria real. Depois a equação era resolvida, e a lanterna, nesse momento, surgia na aldeia, que já estava quase toda construída. Mas ainda faltavam os habitantes, os novos habitantes daquele local, que também seriam os novos habitantes daquele país para além de Bosco e do Presidente.
Nesta criação, Bosco perdeu quase dois anos da sua vida em frente dos livros e dos cadernos rasurados de uma rara semântica matemática – metalinguagem, chamaram-lhe alguns mais tarde, os menos criativos – e no final desses dois anos, o resultado final apareceu na forma de uma mulher lindíssima por quem Bosco se apaixonou imediatamente. Aurore, era o que diziam os números, no final da equação, e assim seria o seu nome.
Claro que hoje em dia Bosco entra dentro do escritório e apenas vê livros mortos. Os livros fechados não servem para nada, constata o Poeta dos Números, agora quase tão velho como o exagerado peso. Bosco transporta-se demoradamente e com dificuldades, está na hora de mais uma visita ao seu escritório. Tem oitenta e seis anos, e poucos são os pensamentos brilhantes que lhe restam. Abre a porta do escritório. Lá dentro, sente-se na pele de um pai que visita a campa do seu filho. Aqui está toda a minha vida, diz Bosco, enquanto repara em cada livro em cima de outro livro. Cada caderno ao lado de todos os outros cadernos. Cada livro fechado como uma campa fechada ao lado de outra campa também ela fechada. Aqui está a minha vida, um monte de livros mortos, denunciou Bosco, enquanto pensava para si em cada cálculo de Aurore, a mulher que nunca chegou a conhecer.


Autor: Rui Almeida Paiva

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