sexta-feira, 6 de março de 2009

literatura

Quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Um zumbido subia de tom dentro do quarto. Um zumbido desconfortável. Era como se nos colocassem a redigir um texto numa posição desagradável. Imagina um conjunto de frases a dormir a noite toda na mesma posição. Sem se poderem mexer, as frases são um condicionamento terrível. As palavras, nestas ocasiões, são as nódoas negras desse esforço; são a consequência de um chão duro e desnivelado; são as nódoas negras dos verbos temíveis e dos substantivos tristes.
Aproximemo-nos, então, desse zumbido. Quatro pessoas de bata branca tentam não ser escutadas, aqui está a única razão para tal barulho: na boca dessas quatro pessoas as frases querem sobreviver a um esconderijo de ideias vazias. A voz, nas suas bocas, é um conjunto de abelhas que se cruzam, que medem forças no espaço aéreo. ZZZZ, ZZZZZZZZZZZ, ZZZZZZ. Estará uma colmeia dentro da sala? poderia ser perguntado. Não, nada disso, são apenas as vozes, que, para não serem identificadas, se encontram disfarçadas. ZZZZZZZZZZ, ZZZZZ, ZZZZZZZ.
Aproximemo-nos ainda mais um pouco, ou não será a curiosidade uma das grandes virtudes do Homem? As quatro pessoas zumbem porque tentam não ser ouvidas. Nem sempre, lá por se falar baixo, isso significa que se está dentro de um segredo, e aquilo era maior que um segredo a ser desvendado, era uma infelicidade, uma desgraça.
A quatro metros desse acontecimento, dentro do mesmo quarto, uma mãe dorme. Os olhos fechados explicam todos os pesadelos que lhe foram surgindo noutras alturas da vida. Parece estar a ressonar, a fadiga tem destas coisas!
Aquela mulher, deitada, era mãe apenas há quatro horas e, apesar dos sinais de cansaço – as olheiras marcadas e escuras, os lábios pálidos e secos, o rosto pigmentado e inchado – apesar de tudo isto, ela não conseguia adormecer. Preferiu ocupar o tempo, talvez utilizar um dos seus jogos preferidos, os jogos interiores, jogos domésticos como os costumava designar: se quiser ganhar este jogo tenho de conseguir decifrar o que estão a conversar aqueles que sussurram; e lá começou ela a jogar dentro do seu cérebro, ou dentro do seu ouvido, tudo depende do nome que quisermos oferecer ao órgão da concentração.
E quando a criança começar a querer chuchar, quem tratará dela? compreendeu a mãe daquela conversa a quatro. Nessa altura, localizou certas sensações. Num dos seus seios sentiu a força de dois pequenos lábios, que a sugavam, ansiosamente.
Será que o problema dele permitirá segurar nos brinquedos? ouviu ela de uma voz agora masculina.
Acho que será muito difícil um dia conseguir levantar-se. E terá, com toda a certeza, de usar duas pinças metálicas para que possa abrir os olhos.
Então, isso quer dizer que conseguirá ver?
Não se pode confirmar esse facto. Aquilo que a criança tem não lhe permitirá falar. Os dois maxilares estão cerrados, estão fixos um no outro. Nunca poderemos confirmar se conseguirá ver.
A mãe, apenas a quatro metros, ouvia todas aquelas observações, mas era tão recente aquela ideia de ter um filho, que, por momentos, deixou-se levar pela emoção e, sem esperar, sentiu que duas pequenas mãos deslizavam sobre o seu pescoço, como que o estudando.
Necessitará de algumas intervenções clínicas, as evidências confirmam os factos patológicos: os pulmões estão preenchidos de água suja, a língua tem o tamanho de um coração, e o coração, pelo que foi verificado no último exame, tem o tamanho de uma pequena língua gustativa.
Será um poeta, então – exclamou a voz masculina – ter um coração no sítio da boca tem uma vantagem: aquilo que se diz está sempre mais perto daquilo que se sente. Nasceu mais um poeta, apesar das dificuldades físicas que se avizinham.
A mãe não conseguiu controlar um sorriso depois de ouvir esta última intervenção. Ainda agora nasceu e já dizem que é poeta, pensou ela. Os quatro indivíduos de bata branca pararam. A mãe sorria tão naturalmente depois de ter dado à luz algo de tão esquisito e trágico, que os quatro indivíduos pensaram, simultaneamente, que aquela manifestação poderia muito bem ser um dos princípios da loucura. Rir com vontade da desgraça é encontrar um parque de diversões dentro de uma bomba, e aqui está o primeiro indício da loucura: o riso. Naturalmente que não seria um riso qualquer, pensámos nós, que apenas assistimos a estas ocorrências de fora. Talvez se pareça com um riso despropositado, pensaram os quatro indivíduos de bata branca, justificando as nossas dúvidas. Alguém que ri sozinho é alguém que ri de alguma coisa que é coisa nenhuma, é desequilíbrio, explicou um deles. A mãe riu ainda mais alto, as gargalhadas entravam e saíam da imagem irrisória que tinha sido avançada pelos quatro: um bebé poeta, olhem-me as ideias destes indivíduos, como é que alguém pode afirmar tal coisa se apenas se aprende a ler e a escrever a partir dos cinco anos!
Os sussurros pararam. Os quatro indivíduos de bata branca deixaram-se ficar quietos. A mãe, ainda a jogar o seu jogo doméstico, parou de expelir gargalhadas. O silêncio tenso era agora um som agressivo e agudo. A mãe, de olhos fechados, sente o calor de um bebé deitado junto ao seu peito, isso acalma-a. O jogo acabou, mais uma vez ela sabe que ganhou, conseguiu ouvir tudo o que estavam a dizer à sua volta. Decide, então, abrir os olhos – olhos de mãe – meditou ela. Uma respiração ligeira sopra no seu ouvido ainda antes de afastar as pálpebras, é a voz do seu filho, que comunica sons desorientados. A mãe abre os olhos: no centro dos seus braços uma série de movimentos. É ele – pensa para si – é o meu filho. É a primeira vez que ela abre os olhos depois de ter sido internada com uma barriga de oito meses. Primeiro olha para o tecto, está nervosa – como é que será ele? – interroga-se. Depois olha para baixo, para o que tem nos braços. E, lá dentro, por mais estranho que pareça, apenas um livro. Um livro de poesia com três quilos e trezentos, com boa vitalidade, e com todos os reflexos muito bem apurados.

Autor: Rui Almeida Paiva


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