sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Um veículo desconhecido parou

Um veículo desconhecido parou à minha frente. Parece estar à espere que entre. Tentei perceber como aqui chegou. Ninguém está lá dentro para perguntas. A porta está aberta. Admito - estou tentado a partir de novo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Cheguei. Partirei novamente?

(finalmente no mesmo sítio, depois de cem viagens, percebo, olhando-me, que o sítio do meu corpo mudou-se)

Estória 0

De face redonda o homem é belo e desliza e é negro na pele e na forma. O negro avança: onde pode ele caçar se não seguir caminho? Que bonito, o preto, quando sorri. E apresenta-se com uma boina da cor da pele e tudo aquilo faz parte da encenação escolhida por si ao pormenor. O bar encheu e a caça alastra-se pelas mesas. Duas vezes seguidas pede a duas brancas para que lhe dêem a honra para a dança que mesmo agora deu início. As duas abanam a cara na horizontal. Está com pouca sorte, penso eu. Coitado, continuo a pensar, quando uma terceira tentativa lhe é recusada. Mas o preto continua a rir com vontade e com brilho: alguma terá as características de uma presa cansada ou de uma presa que já aqui chegou aleijada. Uma quarta tentativa, e lá vai o negro, neste caso na minha direcção. Abeira-se da mesa e do meu corpo. Uma dança? diz-me. Desculpe mas não sei dançar. Ele fixa-me. Não me faças uma coisa dessas. Ajoelha-se. É só um bocadinho! A música aninha-se no baloiço e empurra-me. Ergo-lhe a mão – aí vamos nós. Quantas cores tem um preto, quantas cores fixas ao modo de voar? O preto ajeita-se. Cola-se. O preto tem África nos pés e muito atrevimento nas mãos. Fechei os olhos, será esta a melhor maneira para tentar não fugir? Cinco músicas depois continuei de olhos fechados e com o atrevimento a ondular entre as pernas. Como pode cheirar a terra um homem que saiu de um ventre? Dez músicas depois: de olhos fechados. Inexplicavelmente percebi que não consegui fugir. Estávamos presos. Onde estarei, pensei eu, se não conseguir abrir os olhos? Décima quinta música: as mãos negras surgiram por baixo da blusa para averiguar quantas vezes o coração bate. Vigésima música: poderá alguém fugir da liberdade? Só da falta dela, reparo. Alguém que tem um reino e todas as leis por escrever, como pode esse homem fugir se não tem grades nem muros nem animais selvagens. Vigésima terceira música, abri os olhos e tinha o preto na minha boca.

autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

centésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Correm-lhe lágrimas e mais dez vêm a caminho. Vêm quantas forem necessárias para convencer uma aldeia inteira de que a viúva sente a falta do velho antipático.

Um milhão de crianças sabe o que é tirarem-lhe um brinquedo colorido das mãos – as lágrimas, neste caso, também sucedem às dezenas. Mas se morresse alguém importante, elas, as crianças, não trocariam por nada deste mundo aquele brinquedo específico e colorido pelo morto. A memória da criança é muito avançada: cinco minutos aqui, cinco minutos ali. E agora um bom caramelo substituirá o desgosto colorido em fracções de segundo.

A memória das viúvas é muito atrasada: sofre-se quarenta anos com um homem que as humilha com vontade e depois terão obrigatoriamente que fazer o seu papel apenas no dia do velório. Tudo acalma nos dias que sucedem ao luto e o silêncio, afinal, é tardio – demorou quarenta anos a aparecer. O silêncio até poderia ser divertido, mas não foi assim que se acostumaram. Maus tratos e muitos insultos faziam parte da única companhia que lhes era oferecida e agora um vazio de som não é aproveitado. O silêncio também se explica ao longo do tempo; também pode ser apreendido à força – nas prisões, por exemplo – também pode ser apreendido da forma que se ensina um rafeiro a pôr os talheres de forma correcta numa mesa em que vão ser servidos dois pratos: um de peixe e um de carne.

A viúva, como é seu costume, põe dois pratos na mesa e os talheres ao calhas: duas facas, dois garfos e duas colheres de sopa. Não está, evidentemente, preparada para o que se segue.

Como está a carne hoje? diz ela a meia voz, ouvindo-se em eco. Não existe resposta – as suas palavras naufragaram para dentro do seu coração. Também não falará mais sozinha como se ali existisse alguém – as palavras fizeram sentir-se material estragado. Resta-lhe a vontade para pensar que a solidão também tem medo de um metro quadrado de isolamento. Por incrível que pareça, a viúva apercebe-se que lhe tiraram o seu brinquedo colorido mas nunca se aperceberá do essencial – é preciso muito treino para se gostar deste tipo de silêncio em que não existe um único ruído.

Estória 2

As algemas são o jornal de negócios das autoridades. Abrem-se como páginas que contam extractos bancários e fecham-se porque existe um limite de notícias por página.

Porque era gordo e com muitos pêlos, o criminoso é isolado do resto do mundo que o atinge. O aço das algemas apertam-lhe os ossos que sofrem. Foi encontrado, o criminoso, com uma criança nos braços e a criança não tinha rosto porque o rosto estava desfeito e quando se elimina esta zona anatómica não só se dificulta a identificação do cadáver como se perde a possibilidade de se ouvir um último testemunho da ocorrência do crime.

Não foi o gordo que ateou fogo ao cabelo da criança. Foi a própria criança, que, com uma caixa ali à mão, foi tentando perceber, através de um conjunto de fósforos, de como funcionava a dor. O homem gordo ainda chegou a tempo de tentar combater as chamas: utilizou os lábios e, com beijos intensos, anulou o incêndio.

Dos crimes mais terríveis é encontrada justiça para tanto mal: «o senhor é acusado de um homicídio de último grau – vinte anos de prisão». A única filha do gordo era cadáver e o gordo não ouvia e não respondia porque a filha era a única resposta para os seus problemas. «Vinte anos de cadeia em isolamento total».

Vinte anos foram passados sem se entender que o tempo não se revolta. Por enquanto, nos últimos dias, deixaram o gordo respirar ao ar livre, no pátio. O gordo não queria nenhum pátio, queria era a sua filha, que não apareceu no escuro, da jaula, nem para um beijo de boa-noite.

autor: rui almeida paiva

terça-feira, 27 de outubro de 2009

nonagésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Com lealdade, o velho segura firme o objecto que contém um líquido e deposita um comprimido sobre a língua e depois despeja água pela goela. Um objecto pode-se manusear com destreza. Ao coração não o tratamos como objecto porque não nos podemos servir deste como um livro ou como um tacho ao lume. Completamente dissolvido nas paredes do estômago, o comprimido começa a cumprir a sua função: batimentos cardíacos menos velozes. Parece que o velho continua com o copo na mão; agora vazio, o copo não serve. Ele pensa: agora não tem função. Utilizei-me dele e posso deitá-lo fora. Deitá-lo fora, ao copo que ... ups ... é de vidro. Estilhaça-se no chão.
Temos que pensar sozinhos: o mundo atira-se contra nós e temos de o utilizar, temos de ter em atenção as qualidades dos utensílios.
Pensa – o velho não teve em atenção o material de que é feito o copo; atirou-o ao chão como plástico e não como vidro. Um empregado aproxima-se com uma pá e uma vassoura. «Não faz mal, acontece a qualquer um».
Quem reflecte agora é o causador do prejuízo – o velho está doente e pensa: como é injusta, a vida; posso tocar nos objectos mas não posso tocar nos órgãos com pouca saúde. Para ter acesso ao coração seria necessário um cirurgião e um rasgo no peito. Seria o seu desejo, um dia estar numa cama de hospital onde pudesse estar acordado e onde tivesse o corpo todo em alerta máximo. Facilmente o bisturi rasgaria aquela pele fina. Depois o buraco aberto levaria o idoso a tomar a atitude certa: uma mão apanha o coração. Segura-o. Poderia concerteza tocar nele e levantá-lo. Depois teria de agir: ou colocá-lo de novo no lugar (dentro do peito), ou deixá-lo cair para saber se este é de plástico ou de vidro.


Estória 2

Oportunamente faremos o nosso juízo.
Vinte meninos, num campo de jogos, dentro de uma escola, utilizam a emoção para cansar o corpo. Um dos alunos não faz aula, tem asma e tem medo de morrer mais uma vez. Um dos golos foi marcado com a mão. O asmático apaixona-se pela mão e pelo golo que foi marcado de forma irregular – se corresse atrás da bola durante quarenta minutos seria a respiração a cometer uma irregularidade.
À noite, quando adormece, o menino que não faz aula não tem qualquer problema – corre oito horas seguidas e marca golos com os dois pés. Mas hoje é dia de sonhar exaustivamente com o mesmo momento: a mão que empurrou a bola para dentro da baliza . Deseja aquela mão – um desejo carnal, sexual. Percorre a mão e o braço e o corpo do menino mais velho da turma que marcou o golo e fica com asma mesmo estando dentro de um sonho.
Está na altura de ajuizar este acontecimento: a homossexualidade também poderá ser lançado como se lançam dois dados de um jogo de sorte e azar, como se estivéssemos a jogar poker? Estaria hoje apaixonado por uma menina, o asmático, se a mão que marcou golo pertencesse à aluna mais reservada?


Estória 3

Isto que vos vou contar de seguida é horrível porque se passou com a minha filha.
Num parque infantil, junto ao gradeamento, estava ela a descansar quando passou um casal de idosos. O homem ia de cadeira de rodas e quase não falava porque tremia da boca e dos dedos e dos joelhos e estava muito doente onde quer que fosse. A idosa tinha muita energia e distraía-se com um miúdo que devia ser neto. O velho furioso não queria sair de casa, quanto mais meter-se na confusão de um parque.
Ficaram frente a frente, a minha filha e o velho. Todas as crianças gostam de observar aquilo que lhes parece diferente. O velho incomodava-se com os olhos obcecados da minorca. Tentando disfarçar, insinuava-se aborrecido para a esposa e esfregava o rosto, fingindo-se ensonado. Mas quando passava visualmente pelo perigo, lá estava o raio da catraia a chateá-lo com aquele olhar irritante.
Se não fosse a minha filha, eu não estaria para aqui a escrever sobre isto; mas era ela e eu não soube o que fazer porque passaram muitos minutos e ela desenhava todas as rugas do velho – contava-as, possivelmente.
Era notório o que ali se estava a passar: o velho estava com uns ciúmes espinhosos daquela menina que era a minha filha: era essa a razão do seu incómodo. E eu quase chorei porque o velho, por fim, rendeu-se e cedeu fixar-se na pequena. A minha filha tem quinze meses. O velho não aguenta estar por cá mais quinze meses. Era esse o laço que os unia. E juro que esse ser humano prestes a sair (o velho) e este ser humano acabado de chegar (a minha filha) formaram uma linha florescente no ar que partia dos olhos de um e ia até aos olhos do outro. Os dois mantiveram um diálogo entre seres da mesma espécie. Ele, magoado, estava perante alguém que ainda agora começou e estava perante si, que estava quase a acabar-se. A criança, por sua vez, não tinha culpa de ainda ter tanta vida e antes de se voltar (sim, a minha filha, a minha única filha voltou-se cruelmente e foi brincar para o baloiço deixando o velho a chorar em cima da cadeira de rodas) antes de se voltar ainda acenou um adeus para aquele senhor diferente. A mãozinha rodou sobre si meia dúzia de vezes. Despedia-se do homem, a vida e a minha filha – as duas da mesma maneira inflexível e fria. E foi o que sentiu o velho: a vida a dizer-lhe adeus.


Estória 4

Frequentemente surgem os insultos entre um casal cansado. Alguém se transformou em mosca que nos passa junto ao aparelho auricular. O homem primeiro, depois a mulher – os dois moscas um do outro – atropelam-se. Zumbem as propriedades frágeis, propriedades com defeito. O homem deita-se no sofá com os pés descalços. Os pés descalços fazem confusão à mulher que acumula o dever de amar por sentido de obrigação. «Tira imediatamente os presuntos aí de cima, estás parvo ou quê?» Que grande perigo correu ela agora, que não aprende nunca. Dentro do peito deitado, algo tremeu; algo duro prestes a partir dentro do peito do homem que fecha os olhos e respira fundo. No trabalho, logo de manhã, alguém entrou no táxi e furiosamente disse: «vocês, os burros, nem para guiar estão aptos.» Ouviu também durante o dia frases como estas: «está estúpido ou quê, porque é que não passou o vermelho?», «com que então os atrasados mentais também têm possibilidades de passar no exame de código», «já não existem cabrões que sabem trabalhar com brio», «quanto recebe por fazer indecentemente o seu ofício?».
O homem está deitado com os pés descalços em cima do sofá e pega num lenço imaginário e limpa as frases que ouviu durante o dia de trabalho e de repente, mesmo aos seus ouvidos, a mosca varejeira: «agora também és surdo – estás a impregnar o sofá de chulé. Tira-me esses pés nojentos aí de cima.»
No lenço imaginário não ficou tinta nem sujidade nem ofensas. Parece que no peito do taxista existe uma lápide esculpida e não uma folha que se pode amarrotar e deitar fora.
Teria de começar a animação: o homem sente-se apto. Foi violado ininterruptamente nas profundezas. Da dignidade que caiu de uma falésia o homem levanta-se: já estou habituado. Está descalço e a mosca grita: «agora estás a sujar o chão. Estou eu o dia inteiro a esfregar para chegares e estragares todo o trabalho.» O homem enche a mão como a mercadoria enche o comboio: de objectos duros; e despeja a acumulação de pesos num único impulso, num só soco de pugilista que foi o resultado de todo um dia a ser beliscado pelo mundo. A mulher cai que nem uma mosca atarantada. É teimoso, o raio do animal, pensa o homem, ainda bate as asas.


Estória 5

Raquítica, a costureira tem por hábito produzir muitos buracos que se ligam. É como na fidelidade, explica às duas colegas, furamos a confiança dos maridos e ainda reclamamos por melhor. Para a costureira os anos passam como duas mangas de uma camisa: ou muito curtos ou muito compridos. Eles perfilam, os anos, e apresentam-se no seu exército que foi à guerra apenas uma ou duas vezes. Dessas poucas tentativas não teve coragem de pelotão: não feriu sequer a inutilidade. Outras vontades têm sido prioridade: é ouvida frequentemente a conversar com os tecidos. As colegas ouvem-na contar histórias às bainhas e aos colarinhos enquanto os retoca – personagens muito queridas e reais para a costureira. Parece que até fadas e monstros contêm os seus episódios inventados.
Quando chega a casa, nos dias tristes e chuvosos, a costureira parece um farrapo e prolonga-se, pela simples razão, de não conseguir acordar da sua imaginação. Bom dia meu escravo, diz ao seu marido que, com paciência, lhe responde bom dia alteza.
Aos domingos lá vão os dois à missa porque foi sempre um hábito e porque assim aproveita-se para passear um pouco. Para as cerimónias a costureira move os tecidos trabalhados com dom e veste-se de orgulho: foi ela que fez aqueles vestidos de alto gabarito e todos os fatos aprumados em que o seu homem se pendura. Antes de sair, o homem que a acompanha faz o favor de provar os casacos que lhe caem melhor. Mas se não há Deus, para que é que me interessam as camisolas e as calças elegantes. Não poderia ir tão bem de fato de treino? O que é que Deus tem que ver com aquilo que vestimos?
É o dia da semana em que posso exibir o meu trabalho e Deus é isso – ajuda-me a ter muita vaidade ao Domingo.
Nenhum dos dois é religioso. Riem-se por dentro quando o padre utiliza refrões em que todos parecem ser obrigados a levantarem-se. Eles também se levantam, não por Deus, mas pelas vestimentas que fazem inveja.
Diz a costureira: quem não gostaria de estar tão bem apresentado perante a fé?
A costureira, quando entra na igreja, segreda: aceitas casar comigo para sempre? É altura de viver como uma verdadeira personagem do país dos sonhos: és o meu príncipe encantado. O homem diz que «sim» porque a satisfação da costureira é uma verdade. Depois assistem à missa de mão dada. Todas as semanas me caso e peço um desejo.
Amo-te, segreda a costureira no final da cerimónia. Também te amo, responde o príncipe, que, quando chega a casa, só se quer enfiar na oficina e aparafusar peças para o motor de arranque da sua felicidade em estado lastimável. Só precisa de responder também te amo para adquirir o passe para o sossego dos próximos dias, para que a louca da sua mulher não se deite o dia inteiro a chorar e a berrar de desgosto. Duas das peças do motor precisam de óleo – suja as mangas da camisa mas a princesa já está a tratar disso. Em frente da máquina de costura prepara com entusiasmo o seu próximo casamento.


autor: rui almeida paiva

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

nonagésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

– Vai para ali e de longe diz-me que impacto tem a minha figura enquanto escrevo um poema.
– De longe só tens beleza quando não escreves, quando não te escondes.
– Vai agora para ali, para a frente, e diz-me se me consegues encontrar enquanto leio este livro?
– Consigo encontrar-te enquanto lês esse poema.
– Estranho, estava agora mesmo no capítulo em que percorria uma aldeia do século passado e mesmo assim tu viste-me. Já agora, o que é que achas dessa aldeia de onde acabaste de me encontrar?



Estória 2

Numa sala de aula um aluno participa, os outros não. Tem a cultura no cérebro como carga em cima do burro. O burro por vezes é teimoso e pára, e deixa cair a carga de propósito. O menino, nos intervalos, tenta deixar cair a carga, de propósito. Mas já não tem qualquer tipo de hipótese, foi identificado pelos restantes: ele é esquisito, sabe demais. Sempre sozinho diz «bom-dia» e «boa-tarde» aos professores e os professores não param, continuam. Destaca-se pelo abandono, o aluno. Alguém terá coragem para o abraçar uma única vez? Senta-se sempre no mesmo banco, junto ao porteiro, para poder ficar mais perto de uma ambulância no caso de o agredirem novamente. Mais uma aula, ainda agora começaram; o aluno sabe muito de Geografia mas não abre a boca, engana-se de propósito. Um dia, se continuar a falhar nas respostas, o aluno escorregará e não saberá subir as escadas novamente até ao topo. Novo intervalo: 15 minutos. O mesmo banco. Quinze minutos. Dois professores entram sorridentes e cumprimentam-no, mas ninguém vê o que sucede: um menino escorrega, e deixou a sabedoria lá em cima, no topo.


Estória 3

É para ela um bom método – utiliza as botas que aleijam prevenindo-se assim dos outros desgostos, dos outros sofrimentos. As botas não combinam com o resto, com o resto do corpo. Um corpo esquelético num par de botas gordas. Doentias, as botas têm aqui semelhanças com o seu utilizador, na doença. Previne-se porém um andar elegante coxeando-se como um cão atropelado. Sabe ladrar a quem se aproxima, o corpo. Quem não tem pena do bicho? Mas a garganta tem frio, o que é costume para quem não conversa há dias. Não se exercem as cordas vocais por impedimento dos outros, que são monstros devoradores. As botas, entre elas, são desagradáveis, agridem o calcanhar como a chuva agride a colheita fora de época. Veremos como se safa o calçado nesta subida íngreme. A meio, a meio da rua que cansa o corpo esquelético (que pertence a uma mulher de trinta e quatro anos), o esqueleto desiste porque o calçado não aguenta tanto chão que não anda por si. Dois homens aproximam-se, vêm de cima e são como uma função aritmética, como uma nódoa da humanidade. Ela geme. Não se desvia, geme. Eles só querem olhar para ela para aguentarem a pena o maior tempo possível. Não tiram os olhos. Conseguiremos lidar com tanta desgraça? Ainda não passaram os dois homens e uma dor no peito da mulher torna-se insuportável. Ela pensa que existe uma distância para tudo. Pensa na distância numerável do seu peito à extremidade inferior, aos pés ensanguentados. Os dois homens estão tão perto que ela não aguenta e alivia o seu peso, que se dirige para o chão. Um corpo estranho numas botas que não combinam tenta cair bem. Os dois homens esticam os braços e acolhem a desgraça num único gesto. Mesmo tendo desmaiado ela sente que está a ser tocada. Sente-se enojada. Não gosto quando me tocam. O chão fica finalmente duro. Os homens afastam-se. Ficam com medo. A mulher tem pouca respiração e muito pouca higiene e não acordada nem com um tiro numa perna. A mulher tem a face fria – uma boa sensação, finalmente. A saliva escorre-lhe, ou será sangue? pensa a mulher.


Estória 4

Como podes tratar a pobreza? Dando-lhe dinheiro ou dando-lhe um pouco de higiene? Um pouco de dignidade, talvez.
Embebes álcool etílico em algodão e ofereces a tua maneira de resolveres os problemas. Quem encontras com estes requisitos, com os requisitos da pobreza em estado puro? Ali está o desalojado que se parece com um animal, com um réptil pegajoso. Ele abre as mãos e resmunga porque não sabe o que fazer com o algodão encharcado. Não podes sarar a desgraça como se sara a carne, é a conclusão que tiras da tua boa-vontade.


autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

nonagésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Nem tudo começaria assim: sem personagens e sem diálogo e sem episódios incompletos: aos altos e baixos, tristeza e alegria.
Podíamos jogar uma partida de cartas antes de seguirmos caminho, disse o primeiro marinheiro. Tenho meio baralho, explicou o segundo marinheiro, a outra metade foi enterrada, lembraste? Jogamos na mesma: os pontos possíveis não são tantos mas será possível determinar um vencedor e um vencido. Metade de um vencedor e metade de um vencido, diz o segundo marinheiro, enquanto baralha as cartas velozmente.
Dois anos antes um subchefe do pelotão tinha utilizado uma estratégia para garantir a sua superioridade: um subalterno nunca poderá adquirir uma vitória completa enquanto não subir de posto, enquanto não matar muitos homens e muitos barcos. Dois desses marinheiros estão habituados a servir com um sonho: um dia também eles serão servidos por marujos novatos. Nesse dia (se esse dia chegar) teriam finalmente o baralho um baralho de cartas na mão e a possibilidade de uma verdadeira vitória. Uma vitória completa. Tirariam metade do baralho de cartas de um dos marujos para completarem, finalmente, um verdadeiro vencedor e um verdadeiro perdedor.



Estória 2

Num belo café de bairro, nos últimos dois anos, não se tem conhecido pessoas mais sábias: ali se sentam, de manhã à noite, e por ali ficam, sem fazer nada. Com grande sacrifício se consegue não fazer nada em dois anos: é muita dignidade junta para uma única pessoa. Um desses homens, muito de vez em quando, tenta falar sobre um assunto: sobre o aumento do custo cafeína e da pastelaria fina, mas não passa de uma tentativa porque ninguém lhe responde. Falar é quebrar esta coisa belíssima que é permanecer no mundo: por isso nenhuma resposta, nenhuma opinião. Seriam maltratados aqueles que o fizessem. É preciso muito mais inteligência para utilizar um bom silêncio do que um bom argumento. Seria visto como um traidor infiel da vida aquele que desse um passo, aquele que se esquecesse dos velhos tempos de inutilidade e de espera. Como é bom não fazer absolutamente nada, deixar de pensar é o próximo passo. Mas para isso são necessários pensamentos, que por enquanto ainda nem um se viu por aquelas bandas.



Estória 3

De face redonda o homem é belo e desliza e é negro na pele e na forma. O negro avança: onde pode ele caçar se não seguir caminho? Que bonito, o preto, quando sorri. E apresenta-se com uma boina da cor da pele e tudo aquilo faz parte da encenação escolhida por si ao pormenor. O bar encheu e a caça alastra-se pelas mesas. Duas vezes seguidas pede a duas brancas para que lhe dêem a honra para a dança que mesmo agora deu início. As duas abanam a cara na horizontal. Está com pouca sorte, penso eu. Coitado, continuo a pensar, quando uma terceira tentativa lhe é recusada. Mas o preto continua a rir com vontade e com brilho: alguma terá as características de uma presa cansada ou de uma presa que já aqui chegou aleijada. Uma quarta tentativa, e lá vai o negro, neste caso na minha direcção. Abeira-se da mesa e do meu corpo. Uma dança? diz-me. Desculpe mas não sei dançar. Ele fixa-me. Não me faças uma coisa dessas. Ajoelha-se. É só um bocadinho! A música aninha-se no baloiço e empurra-me. Ergo-lhe a mão – aí vamos nós. Quantas cores tem um preto, quantas cores fixas ao modo de voar? O preto ajeita-se. Cola-se. O preto tem África nos pés e muito atrevimento nas mãos. Fechei os olhos, será esta a melhor maneira para tentar não fugir? Cinco músicas depois continuei de olhos fechados e com o atrevimento a ondular entre as pernas. Como pode cheirar a terra um homem que saiu de um ventre? Dez músicas depois: de olhos fechados. Inexplicavelmente percebi que não consegui fugir. Estávamos presos. Onde estarei, pensei eu, se não conseguir abrir os olhos? Décima quinta música: as mãos negras surgiram por baixo da blusa para averiguar quantas vezes o coração bate. Vigésima música: poderá alguém fugir da liberdade? Só da falta dela, reparo. Alguém que tem um reino e todas as leis por escrever, como pode esse homem fugir se não tem grades nem muros nem animais selvagens. Vigésima terceira música, abri os olhos e tinha o preto na minha boca.



Estória 4

Com tanto silêncio por escolher, foste logo desabafar no corpo de uma jovem. Pequenos pormenores inventam-se, como: teres nas mãos a vontade de acudir aos seios duros. Outros pormenores não podem fugir à realidade: abres o fecho das calças e o membro encontra vida dentro das cuecas ingénuas e sensíveis da menina quase adulta.
Sabemos escavar porque existem vontades suicidas como esta: a de ter uma tela e um cadáver para desenhar.
Um homem abre um espaço na terra como abre uma ferida na amante porque é ambicioso. A amante jovem ouve-te e tu dizes-lhe já não me serves e ao mesmo tempo não encontras nada dentro da cova que fizeste. O homem tem um quintal: está velho, o homem e o quintal. O homem pensa na jovem que dormiu ao seu lado e não tem sementes, tal e qual como o seu quintal, que durante seis anos ao sol secou completamente por falta de água, por falta de chuva. Por falta de sensações o homem secou por falta de sensações. Ali nada pega, dali não nascerá vida. Nem um fruto. Infelizmente. A solidão é como uma dificuldade de dicção: tentamos utilizar palavras à justa e só saem sílabas que ninguém entende.
Poderás ainda reconciliar-te com a tua desgraça: pegas na inchada e na pá de manhã e depois de tarde: por ali procuras apenas animação. Sem dúvida que a menina que dormiu ao teu lado não te fez nada bem. Agora escava porque não tens outra solução e porque é muito cansativo estar ao Sol e ter tantos ossos em actividade. O buraco no quintal é agora enorme. Nem uma semente, nem um insecto – tudo seco. Ali está a tua ideia, concretiza-a. O homem salta para dentro do buraco. A ideia concretizou-se – um buraco e uma semente velha por germinar. Fez-se depois um silêncio profundo: alguém conseguiu perturbar a natureza por instantes.



Estória 5

Quem não tem muita força muscular e carrega dois sacos de compras muito pesados devia desistir. Muito peso para pouca fome. Muita raiva para pouco ócio. Entramos em pânico, hoje em dia, como facilidade: somos também desonestos facilmente mas isso é outra história.
Ainda não existem nomes para as fobias mais recentes.
Alguém carrega dois sacos de alimentos por preparar, por descascar, por confeccionar. Sentes-te mal: estás fisicamente agoniada: é muito peso para quem não tem apetite. É a raiva e o tédio, estes dois sacos. Gemes. Olham-te porque gemes e porque deixas cair os sacos e porque corres a chorar. Uma dúzia de ovos partem-se de imediato e escorrem: mancham o chão de vergonha. Como se chama esta fobia?
Tens a responsabilidade de alimentar três filhos insolentes e um homem que te enoja.
Como se chama esta fobia?
Encontrarão um nome para este problema, os psiquiatras, no dia em que te fizeres notar. Descansa que tudo um dia se torna doença. Um dia serás tratada como uma verdadeira doente, uma doente com direitos e deveres e não como uma mulher pouco funcional que já não consegue fazer refeições.
Os três filhos chegam a casa, procuram o jantar quente antes de procurarem pela mãe. Não há comida por ali. Saem de casa para procurarem uma refeição e não chegam a confirmar se ainda têm mãe. Isso já não lhes interessa. O homem chega depois: nem uma batata cozida nas várias panelas vazias. Também sai de casa sem se lembrar de procurar pelos filhos e pela esposa.
Deitada numa marquesa, a mulher nua e um neurologista que já começou a operá-la. Em vez de rasgar o cérebro da senhora que foi encontrada estranhamente a atirar os sacos das compras para o chão, o neurologista foi direito ao órgão que precisa de atenção. Cava-lhe o peito, o cirurgião, em busca da alma, será lá que encontrará o nome para a sua nova fobia.


autor: rui almeida paiva

terça-feira, 20 de outubro de 2009

nonagésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

A caligrafia do poeta nunca aparece no livro e o morto comeu arroz misturado com carne e nada lhe soube a veneno. Quem disfarça melhor? O poeta que se esconde atrás de um conjunto de letras que saem de uma máquina, ou o assassino, que preparou um molho de natas forte para não ser apanhado a meio da refeição?
Finalmente alguém percebeu que no estrangeiro tornamo-nos um utensílio, um móvel, um armário. Ninguém te percebe e tu gritas: que alívio, estou livre. No estrangeiro não existem patrões e pessoas chatas. Existem pessoas, apenas, e cada uma delas diz coisas indecifráveis. Será que eles também percebem o que dizem uns aos outros? Duvido. Com sons tão desnorteados não se pode construir um mapa que nos leve ao tesouro. Talvez seja mesmo verdade que não se entendam e que sua língua materna seja isso mesmo: dizer sons estranhos ao calhas para poderem comunicar, para se poderem perceber. Na Rússia, onde nunca estive, existem conversas impróprias; principalmente na cama das meninas que são vendidas aos Americanos. Nessas camas comunica-se por sons estranhos, mas mais audíveis. Berram, essas meninas, quando deitadas: parece que só assim as percebem. Parece que só assim é que se conseguem fazer entender.
Quem foi envenenado, o poeta ou a sua poesia? E onde foi encontrado o veneno, na máquina de escrever ou na caneta?



Estória 2

A avó aprendeu a matar a galinha e não a pensar sobre ela. Ensinaram-lhe a cortar o pescoço num único golpe e esqueceram-se de emprestar o machado para eliminar com tal perícia o seu destino. O destino também se mata cortando-lhe o pescoço. Isso sabia ela, mas isso era um outro instinto que não chegou a ser desenvolvido: não passou de mãe para filha. À galinha também nunca lhe ensinaram a voar, embora as asas lhe apareçam, sucessivamente, geração atrás de geração: de mãe para filha. E nisso um dia pensou a avó, por si, pois ninguém lhe ensinou a pensar. A galinha não é piloto nem nada do género; nem sequer vai à escola de aviação e graças a isso é muito realista. Quanto mais se voa mais se sonha. A galinha é a única ave que é ave e que nunca sonhou. Dentro da espécie não há melhor operário. E disso a avó não tem pena, não tem pena do trabalho, tem pena é de nunca ter visto uma galinha a voar.



Estória 3
Assim que dás início à tua caminhada apercebes-te que deixaste algo de importante dentro de casa. Entras em casa e não queres acreditar: deitadas no sofás estão as tuas duas pernas a ler uma bom livro. É de facto uma tentação, mas lá foste tu sem elas, sem as tuas pernas, passear até à praia. Não sei como consegues mas eu cá nunca saiu de casa sem um bom livro.



autor: rui almeida paiva