quinta-feira, 30 de abril de 2009

trigésima quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Admito que uma biblioteca cheia de livros é mais cansativa que um estádio cheio de público. Fazemos mais facilmente uma volta de agradecimentos num estádio repleto de admiradores, do que a uma biblioteca cheia de objectos que admiramos. Por outro lado, se nos fixarmos num único ponto destes dois edifícios (se nos fixarmos no pequeno) o assunto é outro. Um único adepto a gritar de alegria é pobreza de espírito, mas um livro aberto à frente de um leitor empolgado pode até comover o bibliotecário com maior quantidade de anos de serviço.


autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 29 de abril de 2009

trigésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Fascinam-me as pessoas que passam o dia a realizar tarefas repetitivas e supérfluas. Vejo-lhes, quase sempre, no olhar, uma necessidade de sabedoria muito mais completa do que a que estão sujeitas diariamente no seu ofício laboral.
Um dia, num restaurante decadente, sentei-me numa mesa completamente esquecida. O pó tinha encontrado uma habitação agradável para passar um bom bocado. Estimulei o dedo. Escrevi: Capítulo I, e as letras, nítidas, gravaram a minha intenção. Na continuação desta inscrição apareceu a empregada. Jovem. Bonita. O que deseja? Olhei-a nos olhos. Desejo-a a si, respondi-lhe naturalmente. Ela sorriu.
No dia seguinte, quando lá voltei, ao sentar-me na mesma mesa reparei que por baixo do que tinha escrito estava o início de uma narrativa cativante. Palavras. Palavras. Palavras. Todas impressas através do pó. A empregada, nesse dia, estava sozinha e despiu-se antes de falarmos um com o outro. Sentou o rabo em cima do «Capítulo I» e de lá (da posição de sentada e de pernas abertas) pediu-me para a tocar. No final, fizemos amor e apagámos, conscientemente, talvez o início de um excelente conto infantil.


autor: rui almeida paiva

terça-feira, 28 de abril de 2009

trigésima terceira tentativa de chegar ao mesmo sítio

«Proibido ler livros nos compartimentos fechados» era o que estava escrito em placas que cativavam a atenção de todos. O fumo incomoda os seres sensíveis e a literatura incomoda os seres pouco sensíveis, confessava-me o Director-Geral desta empresa de sucesso. Não se pode obrigar alguém a exercitar a inteligência; é visivelmente poluente para os nossos interesses uma quantidade de leitores enfiados no meio de duas aventuras empolgantes .

autor: rui almeida paiva

sábado, 25 de abril de 2009

trigésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Aquela mulher tinha barriga de final de gestação mas também era mulher dos seus noventa anos. Lá dentro, com toda a certeza, nenhum ser vivo. Endireitava-se na sua varanda preparando tudo cuidadosamente, talvez demorasse toda uma manhã nos preparativos. Quanta tecnologia tem uma mesa que está a ser arranjada com todo o amor? Depois o sol deixava de bater com força e a mulher de barriga inchada começava a ler de garfo e faca o seu livro preferido. A faca para que as folhas não esvoaçassem de um lado para o outro. E o garfo para poder passar as páginas que já tinham sido lidas. Este ritual concreto acontecia, insistentemente, à hora de almoço. Mulher que comia livros às refeições, é assim que a identifico quando conto esta história aos desconhecidos que quero surpreender. E a barriga inchada, qual a razão de tamanha desproporção? perguntam-me obrigatoriamente os que me ouvem, abrindo, depois, a boca como que salivando litros de impaciência. Existem livros indigestos, respondo-lhes prontamente, e esses, infelizmente, coincidiam com o gosto literário da mulher que comia livros às refeições.

autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 22 de abril de 2009

trigésima primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Dissolvendo-se longamente no odor a cadáver putrificado, o vento quente sugeria um suor húmido a tactear a desgraça. Alguém foge quando a guerra entra em funcionamento com homens lá metidos no meio. O silêncio mantém-se, embora o risco, sem fazer batota, aumente. Quem será o próximo a morrer? aqui está um pensamento comum a friccionar os cérebros dos aliados e os cérebros dos inimigos. Perplexo com a pontaria, o soldado que foge esconde-se atrás de um muro feito de livros. Eram meus, todos estes volumes coloridos; o soldado tinha-os deixado à porta de casa, mesmo antes de partir para a guerra. Um tiro é lançado na sua direcção. É o primeiro tiro desde as seis da manhã. «Ficções», este é o nome do livro que foi atingido. Um buraco no lado superior direito. O soldado olha pela consequência do ódio: olha pelo pequeno buraco realizado pela bala, e através dele apercebe-se que tem três homens muito irritados à sua frente. Se tivesses de escolher um livro para levares para a morte, qual levarias? Mostrei-lhes o livro que tinha na mão: levaria este, respondi-lhes eu, é que dois companheiros baleados têm sempre uma maior complexidade entre si.

autor: rui almeida paiva

terça-feira, 21 de abril de 2009

trigésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Existem cabelos de todos os tipos: os ondulados, os finos, os pesados, os fracos, os penteados, os desajeitados, os robustos, os modestos, os pouco ambiciosos, os fora de moda, os demasiado na moda, os por lavar, e os que nos aparecem na sopa; a estes últimos faço-lhes uma confidência: são os únicos que me provocam vómitos.

autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 20 de abril de 2009

trigésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Contaram-me, um dia destes, que se pode perder o cabelo todo no exacto momento em que se perde o amor da nossa vida. Como poderá isso ser possível? perguntei eu. Morre-se de um momento para o outro, isso é um facto comprovado, mas não nos cai o cabelo como nos cai um dente; isso de cair tudo de uma só vez é impossível!
No presente, as razões de alguém ter proferido tal ideia são-me claras e límpidas: o amor, tal como o cabelo, não desaparece como se este fosse borboleta no meio de um temporal. O amor, tal como o cabelo, é algo que vai abrindo, aos poucos, espaço ao couro cabeludo; aos poucos, aos poucos, até ficar um vazio lá bem no cimo da tua nuca.


autor: rui almeida paiva

domingo, 19 de abril de 2009

vigésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

De um chapéu bem enfiado na cabeça espero muito pouco. Na natureza (por exemplo nas árvores) não existem protecções para a chuva nem protecções para o Sol. Com esta designação, saliento uma outra necessidade: quando falamos destes objectos (dos chapéus) poderíamos também afirmar que estes tapam a vergonha, quando utilizados por um homem calvo que sai à rua; e esta é a principal razão para mantermos este objecto com alguma consistência na nossa sociedade. E as pedras? pergunto eu. Não necessitariam, também elas, de um chapéu que tape o seu complexo pela falta de pelugem? Aqui chamaria a atenção para o meu simpático cão, que brinca, respeitosamente e melhor do que ninguém, com estas estruturas duras, deitando-se, ao longo do dia, em cima das pedras mais lisas, tornando-as, por breves instantes, em gente feliz que nasce com cabelo por todo o lado.


autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 15 de abril de 2009

vigésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

A cor, nos cabelos, é estúpida. Olho para uma loira e digo «árvore seca». Olho para uma morena e digo «árvore podre»; mas lá à frente, entre o povo que desce do autocarro que chegou à cidade, alguém teve a poesia de pintar o cabelo de verde. As árvores, em deslocamento, nunca me fizeram confusão à alma.

autor: rui almeida paiva

terça-feira, 14 de abril de 2009

vigésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

As árvores da minha cidade têm muitas folhas à volta dos ramos. A árvore tem tanto de folha como de cabelo e o seu rosto está escondido porque a principal função dos cabelos nas árvores não é acompanhar um rosto bonito, mas sim fazer sombra. Com tudo isto ocorreu-me perguntar o seguinte: e no homem, qual será a função do cabelo? Fazer sombra, fazer sombra, anunciou-me a voz vinda de dentro, a voz do meu cérebro que vai conseguindo, com algumas dificuldades, ir-se aguentando entre a penumbra e a luminosidade.

Autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 13 de abril de 2009

vigésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Uma corda presa à janela do cérebro nem sempre tem a intenção de fazer descer uma mulher apaixonada.
Muito mais velho que a menina prestes a ser mulher é o homem que permanece à sombra. Ela deixa crescer o cabelo, encontrando, nesse acto, uma forma para descer do seu quarto sem que ninguém se aperceba da sua fuga. Nunca o cortaria, ao cabelo. No entanto, a vida não se tornaria suficientemente longa para que os fios capilares chegassem lá abaixo, à sombra, onde o homem mais velho continuava à sua espera. O erro, aqui, é arquitectónico: ou ela mora num prédio demasiado alto, ou a sua biologia não tem a força para crescer muitos metros seguidos.
Debaixo da sombra, o homem, anos mais tarde, morreu de velhice e de falta de paciência (de teimosia diriam outros). A menina, velha e gasta, ainda durou mais algum tempo; acabou, no entanto, por cortar o seu cabelo já branco.
Fiquei alguns dias a pensar nesta história e devo anunciar que existe nela muito mais pensamento do que aparentemente possa parecer.
Breves conclusões:
No amor, não podemos confiar nem em cabelos nem em cordas. O cérebro dos inteligentes, na maior parte das vezes, deixa de conseguir segurar a pilosidade – tem muitas outras funções menos físicas, o cabelo, e aqueles dois seres (o homem mais velho que permaneceu à sombra e a menina que deixou crescer o cabelo) utilizavam mais as partes do corpo que sabem pensar do que aquelas que sabem fazer.

autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 1 de abril de 2009

vigésima quinta tentiva para chegar ao mesmo sítio

Para se quebrar o descanso do senhor Marx, seria preciso a autorização de alguém poderoso. Um rapaz entrou dentro do quarto do senhor Marx com a respiração ofegante e tentou começar uma frase, tentou dizer a revolução começou, a revolução começou, mas preferiu esperar que o senhor Marx acordasse; depois disse a revolução começou, a revolução começou e o senhor Marx ainda não tinha acordado completamente, ainda nem tinha saído da cama.
Marx espreguiçou-se, colocou-se na vertical e, ao dirigir-se para o armário disse: já não era sem tempo, até que enfim a tão esperada revolução. Uma roupa confortável, é o que necessito para este dia especial, verificou ele, ao analisar as camisas simetricamente bem arrumadas em cabides simetricamente bem distribuídos. Marx vestiu um fato de treino, o único fato de treino que tinha. Uma revolução é em tudo idêntica a uma aula de ginástica, nas duas não há interesse nenhum em conseguir o possível – apenas na perfeição se pensa, quando o revolucionário se mostra pronto para executar uma cambalhota com a sua liberdade.
O rapaz entrou de novo no quarto e pensou dizer a revolução vem a descer a rua, mas o senhor Marx elevou uma das mãos, e desta forma ouviu-se: agora esperas, se fazes favor, agora estou concentrado em abotoar a minha camisola. Depois Marx olhou para o rapaz e viu-o tão encarnado e inchado que até se assustou: permito imediatamente que fales. A revolução vem a descer a rua, gritou o rapaz, que continha há já algum tempo, em suspensão, duas necessidades vitais: a respiração e a frase. Foi uma intervenção distorcida, aquilo que apareceu da boca do rapaz. Por isso Marx pediu que a repetisse: a revolução vem a descer a rua, repetiu o rapaz, agora mais calmo. Existem frases que nos tiram o fôlego, e se não as dizemos num tempo muito bem estipulado pelos limites da apneia, lá se vai respiração e lá se vai a frase!, pensou o rapaz, enquanto saía do quarto do senhor Marx.
Marx, previsivelmente reflexivo, informou os seus poderosos ideais interiores do seguinte:
– Uma revolução acontece, ciclicamente: ou de cinquenta em cinquenta anos, ou, se quiserem, uma vez na vida de cada ser humano. Posso, como tal, concluir que o meu dia chegou: chegou o dia de usufruir da revolução a que tinha direito.
Mas estava na hora de escovar o animal que vivia lá em casa: o belo e sensato cão Carl. Por essa razão o senhor Marx disse:
– O meu querido animal de estimação não pode ir para a rua neste estado; é um dia demasiado importante para passar por cima da sujidade.
Enquanto passava a escova rígida por entre os pêlos leves do cão Carl, Marx brincava com a imaginação como se esta pertencesse às peças de um jogo estimulante. Começou, então, a entregar-se ao pensamento de como seria uma Revolução a descer uma rua e pensou:
– Talvez tenha duas pernas generosas e os seios de uma rapariga carente.
Com esta frase, Marx apercebeu-se que estava excitado: a atracção ocorre inesperadamente no corpo tal e qual como a convicção de uma bala a sair de dentro de uma espingarda, constatou ele.
Lá fora dez tiros foram disparados – talvez a morte fizesse parte da Revolução, pensou Marx, enquanto desembaraçava um dos nós do cão Carl. Com o som dos tiros, o desejo erótico de Marx adormeceu, despertando-se-lhe as certezas originais:
– Espreitar por entre duas portas e apreciar uma pequena poça como se esta fosse um grande lago, é um dos efeitos da Revolução.
Quase pronto, Carl lambe o seu dono com ternura. Marx sente comichão: a saliva é um cálculo de preencher felicidade valiosa. Sem se mover, Marx deixa secar a saliva que Carl espalhou pelo seu pescoço, e sente-se bem por isso.
Da rua, dez gritos desoladores chegam aos ouvidos do senhor Marx: é a Revolução, e está mesmo ali à porta. Marx levanta-se: está na hora de brincar com o osso preferido de Carl, o que é seriamente importante para a boa disposição de um cão que vai sair de casa. Enquanto brinca com o osso de Carl, Marx não pára de reflectir – está na sala, perto dos armários que suportam uma enciclopédia milenar, o que costuma favorecer as suas melhores reflexões:
– Um dos principais erros de quem vive uma revolução é tornar-se exageradamente insolente para com o perigo e demasiado cordial para com a monotonia.
Cansados de tanto brincar, Carl e Marx decidem adormecer lado a lado, como é hábito suceder.
Da rua, dez minutos de silêncio fazem com que Marx acorde sobressaltado. E a Revolução?, perguntou o senhor Marx, pousando as mãos sobre o tapete onde adormecera; empurrando-o, de seguida, para se poder elevar num só gesto. Apressado, chegou à porta de entrada. Abriu-a. Colocou-se no lado exterior da casa. Agora sim estava pronto para absorver a sua Revolução. Mas a ausência de novos imprevistos fê-lo perceber que a Revolução já lá não estava; a Revolução tinha-se distanciado e tinha perdido as forças numa outra rua que desagua numa outra praça onde a Revolução acabaria por falecer definitivamente.
Ao entrar novamente para dentro de casa, Marx arrastou-se de forma desagradável – um perdedor, era o que lhe chamariam todos os seus amigos, quando se falasse daquele dia que tinha ficado para a história. Por essa razão Marx voltou para a sala, onde se apercebeu do ar sereno e feliz do seu querido cão.
– Ora aqui está uma boa causa: abdicar das revoluções históricas para se usufruir das revoluções diárias.
E com o punho levantado, Marx era um homem no centro da sua sala, orgulhoso com a sua extraordinária conquista em forma de animal deitado.


autor: rui almeida paiva