quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Cheguei. Partirei novamente?

(finalmente no mesmo sítio, depois de cem viagens, percebo, olhando-me, que o sítio do meu corpo mudou-se)

Estória 0

De face redonda o homem é belo e desliza e é negro na pele e na forma. O negro avança: onde pode ele caçar se não seguir caminho? Que bonito, o preto, quando sorri. E apresenta-se com uma boina da cor da pele e tudo aquilo faz parte da encenação escolhida por si ao pormenor. O bar encheu e a caça alastra-se pelas mesas. Duas vezes seguidas pede a duas brancas para que lhe dêem a honra para a dança que mesmo agora deu início. As duas abanam a cara na horizontal. Está com pouca sorte, penso eu. Coitado, continuo a pensar, quando uma terceira tentativa lhe é recusada. Mas o preto continua a rir com vontade e com brilho: alguma terá as características de uma presa cansada ou de uma presa que já aqui chegou aleijada. Uma quarta tentativa, e lá vai o negro, neste caso na minha direcção. Abeira-se da mesa e do meu corpo. Uma dança? diz-me. Desculpe mas não sei dançar. Ele fixa-me. Não me faças uma coisa dessas. Ajoelha-se. É só um bocadinho! A música aninha-se no baloiço e empurra-me. Ergo-lhe a mão – aí vamos nós. Quantas cores tem um preto, quantas cores fixas ao modo de voar? O preto ajeita-se. Cola-se. O preto tem África nos pés e muito atrevimento nas mãos. Fechei os olhos, será esta a melhor maneira para tentar não fugir? Cinco músicas depois continuei de olhos fechados e com o atrevimento a ondular entre as pernas. Como pode cheirar a terra um homem que saiu de um ventre? Dez músicas depois: de olhos fechados. Inexplicavelmente percebi que não consegui fugir. Estávamos presos. Onde estarei, pensei eu, se não conseguir abrir os olhos? Décima quinta música: as mãos negras surgiram por baixo da blusa para averiguar quantas vezes o coração bate. Vigésima música: poderá alguém fugir da liberdade? Só da falta dela, reparo. Alguém que tem um reino e todas as leis por escrever, como pode esse homem fugir se não tem grades nem muros nem animais selvagens. Vigésima terceira música, abri os olhos e tinha o preto na minha boca.

autor: rui almeida paiva

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