sábado, 25 de julho de 2009

octogésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sírio

Estória 1

Agora que ele se arrasta, não distribui tão relaxadamente o seu olhar. A beleza cai-lhe em quantidades significativas, está no limiar. Toma banho todos os dias de manhã e o ralo da banheira entope constantemente. A beleza cai-lhe aos tufos. A raiz enfraqueceu muito nos últimos dois meses e as mulheres têm-lhe menos em conta por esta razão aqui assinalada. Parece-lhe conveniente ir guardando aquilo que lhe cai todas as manhãs e que fica agarrado ao ralo da banheira. Guarda cada um desses pedaços dentro de uma caixa de madeira. Dois meses de enfraquecimento, diz para si ao fechar a caixa de madeira. Nesse dia, foi estipulado por si que o final tinha aparecido porque no cimo da sua cabeça pouco restava do que se pudesse aproveitar. Nesse dia, que coincidiu com o final, apanhou o mesmo barco de sempre e ofereceu bolas de cabelo às mesmas senhoras que nestes dois meses o foram ignorando cruelmente. A beleza caiu-me aos tufos, explica ele, e eu não consegui acompanhar esta mudança no vosso olhar sobre mim. As mulheres, horrorizadas, gritaram e deixaram a cadeira do barco como se fugissem da cadeira eléctrica.

Estória 2

O menino nasceu por engano. Não era ovo para fecundar com sensatez. O menino nasceu com a vontade própria que lhe foi sendo destruída duramente nos primeiros quatro anos de vida. O óvulo foi fecundado sem vontade, a mãe estava para ali a gritar e a fingir que o grito pudesse agarrar aquele homem. A mãe gritava porque não tinha prazer (porque não sentia nada) e porque queria que o futuro pai se despachasse. Cada grito era um chamamento à ejaculação precoce. O pai ejaculou e foi-se embora. A mãe não sentiu nada e continuou a não sentir nada nas horas seguintes. Mais à frente o menino nasceu: a mãe, mesmo depois de um parto fácil, continuou a não sentir nada pelo menino e muito menos pelo pai. No órgão genital feminino o óvulo permite que lhe furem as paredes mesmo quando não existe amor nessa acção, talvez seja este o principal problema dos jovens desencantados de hoje. O pai não sentia nada quando por cima da futura mãe rodava as ancas freneticamente, mas os gritos fizeram-no pensar numa mulher que sofre de dor e não de prazer e isso fê-lo atingir a recta final. Mas depois de nascido o menino, o pai pensou que não valeria a pena perder tempo com pequenos seres que choram por tudo e por nada, por isso foi desaguar para outro lado mais silencioso. O óvulo foi fecundado sem convicção e sem prazer dos intervenientes. A futura mãe estava na presença de mais um homem dentro de si e o futuro pai estava na presença de mais uma mulher onde tinha entrado. No início eram apenas mais um homem e mais uma mulher que passavam pelos seus corpos. Mas infelizmente apareceu-lhes alguém entre esta atitude numérica: apareceu o menino. Agora é um homem e desde muito cedo decidiu o que queria fazer na sua vida: decidiu que não se importava de morrer. O menino desde muito cedo aprendeu a ser entulho, a tentar não incomodar, a tentar não aparecer, a tentar não existir. O menino também sabia que não podia desaparecer de um momento para o outro mesmo que quisesse, sabia que não era transparente. Portanto, desde muito cedo, decidiu dar alguma coisa à sociedade: decidiu dar a sua morte. Inscreveu-se no exército antes do tempo e foi para uma guerra entre dois países cobardes ainda menino pequeno. Lá, foi abatido três vezes. O menino tem três balas que ninguém consegue tirar. Ficaram lá dentro, como presente. O menino ainda não morreu, ainda espera por esse momento impacientemente. Não se concretizam os sonhos sem esforço, ouve o menino algures. O menino tem-se esforçado para morrer mas as balas permanecem lá dentro. Talvez um dia o menino morra, julgam alguns, os que o conhecem bem. Talvez o menino venha a ter vários outros meninos. Mas por enquanto apenas três balas, e ninguém tem conseguido tirá-las.

autor: rui almeida paiva

sexta-feira, 24 de julho de 2009

octogésima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Metade do céu ri, a outra metade mente. A adolescente lança-se para a vida palpitante. Pertence à metade que ri, a jovem. Pele impiedosa que cheira a edifício por estrear. Metade da vida permanece no mesmo armário, na mesma posição de sempre. A outra metade não quer ficar, muda de sítio por iniciativa. A metade da menina que ri é a que toma iniciativa: a pele que ainda é apetecível move-se com inteligência, mas sem futuro.

Estória 2

Hesitante, o homem sai do barco com as muletas anexas ao desequilíbrio. Deixa as muletas junto a um poste alguns metros à frente. Tira de dentro da mochila um sapato. Arregaça as calças, um dos lados não tem perna. Enfia o sapato numa das mãos, ata o sapato, coloca a mão calçada no chão e começa a andar meio crocodilo meio gorila. A perna magra do homem confunde-se com o braço musculado do homem. Consegue disfarçar alguma coisa, mas quando entramos no jogo, descobrimos que a falta de um membro não se substitui assim tão facilmente. Aquilo que engana é o sapato colocado no lugar da luva: este é o dado valioso que faz batota. Impreterivelmente, um homem sem uma perna não tem os dois sapatos calçados. Este homem complicou o mundo. É um dos responsáveis por tudo o que começa a estar errado com a natureza. Um sismo pode começar ali, naquela tentativa de fintar as aparências. O mundo desequilibra-se com estas situações, fomentando o início das deslocações terrestres indesejáveis. O homem tem de assumir que não tem perna para salvar o planeta de um terrível desastre natural. Não pode trazer um sapato na mochila e substituir assim aquilo que aparenta. Uma mulher acha-lhe piada, decide conversar com ele. Confiante e decidida, a mulher aparece com um pano húmido na mão e começa a engraxar os dois sapatos do homem enquanto os dois se riem em gargalhadas partidas. Choram de tanto rir e de tanta situação engraçada. Agora estão os dois contentes, a respiração quase se vai com o sufoco. O homem sem perna ainda tem uma mão disponível. Agarra-se ao pescoço da mulher do pano que é bem negra na pele e bem branca nos dentes; prega-lhe um beijo daqueles. Automaticamente voltam a rir e não param de ignorar as condições climatéricas que se desenvolvem a partir de uma situação absurda como esta.

O sismo será sentido com raiva duas semanas depois e os cientistas tentarão decifrar o acontecimento que começou num homem sem uma perna que tirou de dentro da mochila um sapato.

autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 23 de julho de 2009

octogésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Uma doença neurológica pode oferecer como brinde uma maneira anormal de locomoção. Incapaz de flectir os joelhos, o rapaz portador do equívoco corporal sabe que não pode observar. Não pode encantar pelos atributos físicos. As únicas raparigas decentes têm-lhe afecto à partida. Pena, esse é o nome do afecto que sentem. As restantes têm-lhe desprezo, nojo. Se pudessem, as primeiras raparigas dar-lhe-iam a sensação dos seus lábios e nada mais. O resto do corpo (a barriga, as coxas, os seios, a vagina) não conseguiria ser tão permissivo, não conseguiria ser voluntário, o corpo, para ajudar o rapaz anormal – sensação dos seus lábios e nada mais. As segundas raparigas dar-lhe-iam parte dos seus salários miseráveis e nada mais. O desprezo não conseguiria ceder mais do que isto. Uma moeda também lhe serviria como satisfação, para se sentirem bem e para se distanciarem-se o mais possível deste rapaz de corpo esquisito, estranho. As raparigas procuram uma moeda na carteira porque olham para o rapaz com cara de enjoadas e depois nem uma moeda tiram das suas carteiras porque os coitadinhos talvez nem devessem viver. Uns entulhos, estes anormais.


Estória 2

Um furacão prestes a chegar às habitações torna os Homens mudos, pasmados e de mãos dadas formam um círculo e voltam-se para a natureza com respeito de formiga. O número de rezas triplica quando os ventos se tornam fortes e quadruplica quando os trovões atingem o solo.

Quando os furacões se aproximam a chuva cai e os bebés ficam presos aos edifícios. Um bom arquitecto pensa primeiro com a chuva e só depois com os tijolos. A arquitectura tapa os bebés de uma boa molha. Contudo, o aprisionamento é inevitável: permanecerão todo o dia trancados, protegidos injustamente.

Uma criança de um ano não tem a iniciativa para furtar nem a iniciativa para assassinar, por isso, não deveria ser permitido este aprisionamento injusto. Uma criança de um ano não pega numa faca para eliminar uma velha. Não crava o aço quinze vezes seguidas no peito da velha enquanto se ri freneticamente. Não tem perícia para ir descascando a pele até à carne. Até ao sangue da velha em carne viva.


autor: rui almeida paiva

terça-feira, 21 de julho de 2009

octogésima primeira tentativa parachegar ao mesmo sítio

Estória 1

A senhora de pouca idade escondeu a felicidade por detrás de um armário para ninguém a encontrar. Os anéis valiosos escondeu-os debaixo da almofada, onde iriam os ladrões primeiramente. Levem-me o ouro mas não a vida que tenho. Ladrões de mão cheia ficam hipnotizados com o mundo pequeno e não procuram os outros lugares que se escondem. A senhora, uns anos mais tarde, necessitou de alguma felicidade. Foi para trás do armário. A felicidade lá estava, sozinha, abandonada quase uma vida completa. Tinha passado de validade, a felicidade. Tinha perdido o ouro.


Estória 2

A mãe passou a criança para a frente. Num pano envolto ao tronco, a criança aninha-se. O barco faz de baloiço e faz de ajudante no acto de adormecer. As pernas pendentes da criança seguem um ritmo. A criança, de raça negra, tem uma mãe com características raras: branca, ruiva. Passou-se aqui alguma coisa. Talvez dois corpos de peles desconhecidas se tenham encontrado nas secreções. A mãe levantou-se. Das pernas sobressaiu textura inconveniente. Pernas pretas. Completamente escuras. Em caso de acidente, alguém que a encontrasse debaixo do automóvel despistado estaria disposto a imaginar de onde vieram as suas pernas inadaptadas ao resto? O miúdo não sai à mãe, sai ás pernas da mãe, diria o médico, no acto da autópsia.


autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 20 de julho de 2009

octogésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Paula é atraente. Paula quando anda detesta resistir aos passos de igual forma. É em Paula, o amor, um conceito? Para estranhos Paula é bonita, para conhecidos é apenas mulher inatingível. Paula é perfeita para alguns e o resultado de um acontecimento sonhado para outros. Na cama de cada um dos estranhos que a observam, Paula ficaria bem. Acrescentaria algum entusiasmo aos lençóis há muito frios e sem odor a lutas entre sexos que endurecem. Paula sem roupa é mulher nua, é um único osso. Paula vestida é um conceito. Estranhos apoiam-se em Paula nua, naquele osso apetitoso, para sonharem numa cama mais apetrechada. Carne convincente recheada de prazer. Paula é um osso fora do seu corpo quando se despe para um homem. Paula quer dizer que sabe pensar e que também sabe desejar: para isso tenho os meus próprios ossos a funcionar, explica. Paula quer alguém que olhe para o seu corpo como um conceito e não como um osso. Muito poucos foram os homens que conseguiram sair-se bem com Paula. Tocar Paula é um desafio. Beleza em exagero pode prejudicar o apetite. Paula já está habituada a que lhe peçam desculpa por não ser concretizável a excitação do membro, e por consequência a impossibilidade de entrada pela ruela devida. Paula é estreita lá em baixo e mesmo com o membro inchado é difícil a entrada. Paula, nos dias em que a revolta é um nervo beliscado, escolhe um desconhecido ao acaso para lhe dizer: gostava que me fizesses isto e gostava que me fizesses aquilo. Resultado: Paula Osso é comida com delicadeza e com distinção. Paula não é uma mulher qualquer aos olhos dos outros, tem que ser tratada com requinte. Paula Conceito é virgem, Paula Osso é puta.


Estória 2

Uma das putas chegou ao limite aceitável da beleza. No mesmo dia, no mesmo local de sempre, a puta apresentou-se apetrechada de novo utensílio para atrair as atenções seduzíveis: uma viola, trazia a puta debaixo do braço. Substitui-se o corpo por ordem melódica, fórmula empregue por investigadores que acreditam na selecção natural do Homem. A puta é puta desde os treze anos de idade e viola as estratégias da normalidade desde o tempo em que não se podia queixar (desde sempre, reflecte; desde onde lhe chega ir a memória). Não acredito em Adão e Eva, acredito em dinossauros e em Homosapiens, diz ela alto quando os outros a tratam como ridícula. Não é uma viola que te vai fazer ganhar clientes, ó sabes tocar no instrumento com prepúcio ou então metem-te na gaveta dos artistas inutilizáveis. O utensílio novo de sedução não tinha funcionalidade: não tinha cordas; tinha sido encontrado no lixo e era mais lixo que ruído. Um dia a puta entrou neste barco. A viola às costas, naquele momento da sua vida, era menos horrível que o seu corpo. Só mesmo alguém que quisesse seduzir uma viola é que poderia aceitar comprar uma hora na companhia da puta. A puta, na viagem de barco, atirou-se ao rio sem a viola. Quase ninguém reparou na falta de um tripulante insignificante. Mas meia dúzia de homens, vindos não sei de onde, lutaram pela viola que parecia satisfeita.

autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 9 de julho de 2009

septuagésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Primeira viagem

Estória 1

Uma tentativa fracassada, a inteligência. O homem coça os testículos para atingir o acto de impressionar sem sigilo. Energicamente, o homem tenta defender-se do fracasso que ocorre de cada vez que abre a boca. Não consegue a simples explicação de como é possível a rotação da Terra sobre o Sol. Não tem ilusões, o homem que tenta seduzir com os dedos cheios de testículos – as palavras nele não são favoráveis. Cospe agora duas vezes seguidas para o chão – o tamanho dos testículos pode não ser suficiente para se tornar o chamariz das ocupações carnais, para se destinguir com superioridade de todos os homens que se encontram no barco. Todos uns fracos, e cospe de novo. Três cuspidelas rápidas e sonoras pareceram-lhe prioritárias para a ocasião. Todos o olham com veemência e repúdio. Faz-se notar, o homem. Sente que se faz notar, o homem. Toma em consideração esse facto e sorri com a boca toda exposta ao encontro de uma rapariga que tenta desviar-se do seu aspecto grotesco. O homem escolheu a menina mais bonita para marcar pontos na sua masculinidade. Tem a atenção de todos. Sem pretensão, pensa: não posso aviar todas de uma só vez; embora saiba que é disto que precisam, hoje sou eu que escolho em quem atracar. A menina mais bonita tenta fugir como pode, mas está dentro de um barco, e o rio é feito de água – a menina sabe apenas nadar em piscinas fundas, mas nunca se atiraria de encontro a correntes que a levariam para o mar. O homem envia-lhe uma prenda de beijinhos sonoros que ela não tem coragem de abrir. Nem chega a olhar para o embrulho. O barco atraca, pensa ela, começando a ter medo. O homem tenta mostrar a excitação que pode rebentar a qualquer momento. Com uma mão enfiada nas calças, é assim que o homem acabou por mostrar o que tem para ceder, sempre, claro está, que os seus serviços forem solicitados com alguma antecedência. O barco a atracar afinal é apenas um pensamento que não se concretizou ainda, é só vontade. O homem não se sabe explicar de outra forma. Ensinaram-lhe à força como se conquista o amor: com duas estaladas e muitos pontapés naquela cabeça. É enterrando o pénis com força que se constrói o amor. Foi assim que lhe ensinaram a mostrar a sua superioridade. Deste facto a educação desleixou-se: quanto à verbalização. Não se consegue explicar, o homem, porque mete a mão nos locais menos públicos do seu corpo para ter aquela menina que só pensa que pode estar a ficar atrasada para exame de Aritmética, a começar dentro de vinte cinco minutos. O medo pode provocar o esquecimento? interroga-se. Tenta depois lembrar-se dos conceitos estudados até às três da manhã. O barco a atracar, é o único conceito que lhe ficou na memória.



autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 8 de julho de 2009

septuagésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a dignidade

1.

Afligia-lhe ter de escolher a cor e o tipo da madeira da campa. Afligia-lhe a ideia de entrar numa funerária e ter de decidir entre o esqueleto e as cinzas. Afligia-lhe a ideia de ter de elaborar os convites para que todos comparecessem ao seu funeral. Afligia-lhe a ideia de estar a morrer; mas disto não poderia fugir, por isso foi adiando as outras tarefas.

2.

Eleger o cérebro como porta de saída é proteger aquilo que trava e não aquilo que avança. Constrói antes a tua porta num sorriso, aí precisarás de toda a vontade para forçar uma entrada digna.

3.

Sussurras o teu truque ao ouvido de quem está carente; dizes-lhe: estou solteiro e esperas que a excitação desperte derrotas consecutivas na dignidade da pessoa que te ouve. Precisas apenas de três derrotas consecutivas que seguem a seguinte ordem: o vestido, as cuecas e finalmente o pecado.

4.

Estudas o exercício intelectual que te permite distinguir exaustivamente um tijolo de um arquitecto; um cavalo de um turista; um ladrão de um pedinte; uma experiência de uma ambição; um vício de uma mania; um mistério de uma crença; uma decisão de uma opinião; um circo de uma traição; um cancro de uma faca. O trapezista atira-se com receio quando não tem qualquer rede entre o chão e a morte (entre a vida e o céu), e quando tem os filhos na plateia a assistirem aos truques em que se pode escorregar. Aquilo que distingue o Homem do Pássaro, é aqui que reside o problema do trapezista – que não consegue deixar de se recordar da experiência traumática que foi presenciar a morte do seu único pai.

5.

Mais tarde ou mais cedo o operário teria de abdicar da loucura. Já tinha sido avisado demasiadas vezes: mais dessas conversas esquisitas com as ferramentas de trabalho e estás dispensado. Calado, começou em poucos minutos a falhar na última palavra de cada martelada, entortando as peças em vez de as endireitar. Os consumidores queixaram-se severamente dos estragos, da fraca qualidade da peça vendida. O louco, enquanto homem que está proibido de se envolver com a sua mania, torna-se geralmente criminoso, ou então um mau operário, como de facto se pôde comprovar neste caso.



autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 6 de julho de 2009

septuagésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre o desejo


1.

Ingenuamente, o rapaz deita-se com outro rapaz muito mais velho. Um deles não adormece, tenta aproveitar-se do momento como o alfaiate do alfinete. Os dedos vão direitinhos ao assunto quando a vontade é ordinária. O rapaz mais novo assusta-se com o tamanho das mãos que lhe envolvem o dorso: aquilo é um homem e nos seus sonhos estava habituado apenas a mãos tenras, a mãos femininas. Uma vontade violenta, uma vontade errada, é o que pensa. Mas já não pode voltar atrás: tem medo, e é muito novo para recusar o discurso da imoralidade. Finge que dorme, enquanto o outro rapaz muito mais velho o despe – nos sonhos não era assim, nos sonhos era ele que despia.

2.

Uma barriga exposta pode atrair um desvio no trânsito ou então um desvio no beijo. A atitude mais decente é aproveitar os deslizes; é deslizar atempadamente e em segurança pela zona abdominal e tentar explicar com a ponta da língua os desenhos utilizados pelas abelhas antes de utilizarem o ferrão.

3.

Um grupo de cidadãos, apoiados por governantes empolgados, verificam que uma ameaça ordinária os atormenta – sentem desejo uns pelos outros. Uma cidade inteira sente desejo entre si, concluem. O que a carne tem de soberbo também tem de obsceno, insinua um dos cidadãos mais entusiasta. Quanto ao apetite, é tudo uma questão de sabores, alerta uma mulher atraente que tem estado calada e que logo a seguir despe subtilmente as cuecas por baixo da saia. Argumento reprovador, o desta mulher, que deixou quase todos os homens concentrados em apenas duas pernas.

4.

Os esconderijos do corpo também lutam por arrumação. Oraste à dignidade durante décadas e quando estás em cima da mulher com que te casaste tornas-te deselegante: abres-lhe as pernas e cospes-lhe para as coxas como se aquilo fosse um ritual doentio vindo de trás. Não desprezes as décadas em que te dedicaste a orar, mas experimenta, de vez em quando, nos intervalos entre as longas jornadas eclesiásticas, ir arrumando pequenas atrocidades que te passam pela cabeça. Não é desejável encontrares a fase adulta sem teres venerada com tanto afinco a perversão como fizeste com o santo em que acreditaste.

5.

Duas crianças pensam pouco quando a batalha da sexualidade atinge as zonas desprevenidas dos seus pequenos corpos. Juntam os lábios entre elas e gesticulam acções como fazem os filósofos quando accionam probabilidades consideradas verdadeiras. Acções grotescas são próprias destes meninos e meninas que têm a vantagem de ignorarem o que é aleijar. A natureza desperta-os cedo, mas eles não se importam; quem consegue achar impróprio um beijo inocente entre duas crianças que ainda só agora começaram um duelo com o desejo?

6.

Um lugar apetecível para acasalar é no corpo da mulher que amo. Existe também a água, que também consegue ser agradável, mas é na mulher que amo que costumo saber mergulhar sem bater com as costas em centenas de coisas que me vão incomodando todos os dias.

7.

Dois grupos de militares inimigos reúnem-se no mesmo refeitório para almoçar. Entre o meio-dia e as duas da tarde a guerra pára para hora de almoço, institui o órgão máximo do exército. Vários olhares furiosos se cruzam enquanto se segregam os alimentos – é pertencente à ciência da humanidade construir o ódio e o medo através de sinais. Mas entre os dois grupos dois soldados têm tempo para se apaixonar. Entre o meio-dia e as duas da tarde namoram à distância: namoram com os olhos. Depois das duas horas voltam a ser inimigos: um amor proibido pode levar à morte dos seus intervenientes, esta ideia está bem estabelecida dentro das suas mentes quando fazem pontaria ao indivíduo que se atravessa entre a espingarda e o tiro.

8.

Um segredo constrói-se com a intenção falsa de se esconder um assunto com vontade própria. Em pleno acto reprodutivo a mulher grita ACONTECEU. O homem gritou outra coisa, gritou um vocábulo indecifrável e todo o esperma de uma só vez. Devia ser um momento de convicção e de partilha de responsabilidades. Só a mulher tem o segredo a mover-se dentro do útero. É só seu, o segredo, por enquanto, o que a leva a tornar-se ansiosa. Quando um óvulo é fecundado deveria libertar fogo de artifício, pensa a mulher, deveria, o corpo, ter uma alavanca inserida na maternidade ou então um guiador que nos fizesse desviar dos acidentes – situações indesejáveis podem fazer tropeçar um casal que se ama pouco.


autor: rui almeida paiva

sábado, 4 de julho de 2009

septuagésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a ignorância

1.

Tenho considerado ir ao banco para depositar todos os meus livros. Ficou insustentável a capacidade para pagar a luz e, ler de dia, está fora de questão: só à noite consigo concentrar-me: é quando os olhos estão dispostos ao silêncio. Quanto a livros, continuo a comprá-los, deste vício não me consigo livrar.

2.

Um saco de laranjas que escorrega da mão do corcunda fere meia dúzia de frutos mas salva o corcunda de meia dúzia de operações. Este homem fisicamente estranho volta atrás e compra um saco pesado de maçãs, atira-as ao chão. Laranjas e maçãs misturam-se no mosaico da mercearia. Sabe-lhe bem, ao corcunda, presenciar a tanta matéria podre que não se queixa. Também ele tinha caído em tempos, mas nos olhos de uma mulher. Tinha escorregado das mãos dessa jovem que fugiu com outro rapaz mais bonito. E agora, no chão da mercearia, escolhia com os olhos os frutos podres com a sensação de ser uma mulher que foge com o rapaz mais bonito.

3.

Quatro ignorâncias podem concorrer ao mesmo homem e levá-lo em ombros ao desespero? Esperar que o tempo passe é uma das ignorâncias mais produtivas neste homem que se senta à beira do passeio e que adormece com uma lata vazia de feijão branco na mão. Duas moedas sonoras encontram o fundo da lata – é a recompensa, a motivação para que ela (a ignorância) continue ali.

4.

Sucede como nos enganos: há quem os coma, há quem os deite fora. Quem tem o direito de segurar no meu filho sem que lhe dê autorização? insinua a mãe à frente da juíza, talvez sob o efeito de calmantes. O bebé não chora, repousa dentro dos pulmões maternos: na música de embalar. Cada vez mais enervada, verifica que o seu filho adormeceu: música mais barulhenta pode surpreender alguns jovens mais irrequietos. A mãe toma um calmante como toma o seu filho nos braços: obsessivamente. E ainda ignora o facto de que é quando o seu coração se acalma e a sua respiração tranquiliza, que o seu bebé sofre de insónias. A música para embalar bebés tem que ser escolhida a dedo. Leve a criança e traga-a daqui a doze anos, sentenciou a juíza, sempre quero ver se manter-se-á nessa posição quando a criança tiver o dobro do seu tamanho.

5.

Com a ponta do braço temos a habilidade de assobiar para o alto e temos a energia necessária para desenterrar um morto que foi escondido: temos habilidade de assobiar para baixo, se for caso disso. E qual dos dois assobios pode fazer acordar o que já por si perdeu a vida? Esperemos que a chuva seque e que o morto vomite. Enquanto existir ignorância podemos utilizar a ponta do braço para assobiar em vez de o utilizarmos para desenterrar.

6.

Pedi lume a um homem que não me disse tome lá mas que me estendeu a mão quase que obrigado a fazê-lo e que com o braço estendido foi como se dissesse: tome lá mas não abuse. Reparei que tinha um dos olhos inflamados e vermelhos e inchados. Um dos olhos chorava (o inflamado) enquanto o outro olho via, assim conseguia ver e sentir ao mesmo tempo (capacidade prevista só para alguns). Estive mesmo para perguntar mas não perguntei. Disse-lhe muito obrigado e ele não gostou: respondeu-me com o olho que chorava. Estive mesmo para lhe perguntar qual dos dois olhos deveria utilizar quando fosse visitar a minha mãe ao hospital (o que chorava ou o que via), mas não perguntei. Ignorou-me severamente mal obteve de novo o seu isqueiro. Aquele cigarro soube-me a cinzas, a cinzeiro: teria acendido um pedaço morto daquele homem?

7.

Em plena conferência tento ser inteligente quando estou calado e, por outro lado, um animal com fome quando utilizo as palavras. Os alunos vieram a pedido dos vários professores e eu fui o único convidado a ter disponibilidade para lhes contar mentiras. Vesti-me de forma adequada à situação (gravata preta e calças azul-escuras) e desloquei-me como se tivesse quatro patas. Tudo isto é inteligência até ser apresentado ao auditório como alguém com grande vocação para comover. As quatro patas elevam-se. Levanto-me. Agradeço os aplausos. Sou um animal de aparências que gosta de provocar – as quatro patas bem assentes na provocação.



autor: rui almeida paiva

sexta-feira, 3 de julho de 2009

septuagésima quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a rebeldia


1.

Existem pessoas que estudam pássaros porque sempre gostaram de olhar para pássaros. Existem outras pessoas (nas quais me incluo) que estudam morcegos porque sempre gostaram de olhar para a Lua.

2.

Nascem espinhos na força divina, nascem também insectos mas isso é outra coisa. Uma canção composta por cinco mil pessoas em procissão faz crescer o romantismo entre Deus e o Diabo. É como bater à porta do céu. É ser recebido como se recebe um florista. Cinco mil pessoas a cantarem ao mesmo tempo: flor que se entrega ao primeiro namorado. O personagem que é eleito para subir com o ramo de rosas brancas tem muito espaço na imaginação: é o poeta da cidade; Deus não o recebe: é o poeta da cidade.

3.

Podes mudar alguns pormenores. A onda é a consequência do vento e da teimosia da areia e da qualidade do relevo. No chão há terra, ou pedra, ou rocha. Da onda não podes modificar o seu desenho. Podes mudar a cor do fato-de-banho e o ritmo das braçadas, isso podes mudar. Tudo tem um centro de gravidade; o prazer, neste momento, tem o centro da gravidade na tua boca. E o desemprego, e as injustiças, e as crianças mal tratadas, e a violência doméstica, tudo isto serão pormenores alteráveis por ti? Vem aí uma vaga, passa por baixo, a onda é imutável. Aquilo que está no sangue da natureza segue o seu rumo dentro das veias: é, portanto, tempo perdido para o rebelde, que pensa ser capaz de salvar o sismo da próxima destruição.

4.

Uma bandeira em cima do mastro aponta para o patriota que chora. Existe muita pobreza, é um facto: talvez seja uma razão para as lágrimas aparecerem. Entra no mar, o patriota, e rema contra a corrente enquanto o seu cérebro responde com uma melodia: é o hino nacional. Dentro de água as lágrimas salgadas confundem-se com a revolta do homem. No mar quantas lágrimas são água e quantas lágrimas são mar?

5.

O professor salva o aluno de um sonho com um desfecho trágico. O aluno quer proteger pessoas que morrem de diarreia e de pequenas guerrilhas: dos incendiários, dos cobardes. O professor salva o aluno do seu sonho. Queima-lhe o dedo de propósito e deixa-o a pensar com a extremidade. Não se brinca com uma cultura financiada por animais, por bichos, por pedras, justifica o professor, repreendendo o aluno. Neste momento, num país muito longínquo, estão a incendiar uma aldeia completa, finaliza o professor. A única salvação é a água, retribui o aluno, que acabou por se convencer da realidade. O dedo do pé do aluno incha, precisa de gelo. É esse o seu próximo objectivo: proteger o próprio dedo do pé como se este fosse uma parte significante da ferida do mundo.

6.

O poder de decisão dos pombos é citadino: escolhe-se um bom prédio abdicando-se de uma boa árvore no centro da floresta. Num banco estão quatro pombos e um velho de camisa preta. Chegou o Verão. Quando é que um reformado faz as malas para ir de férias? Espera, o velho, que os dois filhos tenham tempo para o visitar, espera um ano inteiro. Poderá o reformado tirar o mês de Agosto para descansar deste pensamento? Talvez os dois filhos apareçam num fim-de-semana. Quatro pombos preferem um banco a um ramo – talvez o velho retire da sua mala a sua sandes de manteiga. É um trabalho de paciência, permanecer no mesmo banco. A mala de viagem mantém-se ao colo do velho, lá dentro tudo o que é necessário para desaparecer, para sair dali e fugir para longe. Um olhar vago e recto mantém-no fixo ao nada. O velho pensa em fugir daquele estado de espera (os dois filhos não aparecem há três anos consecutivos). Talvez os pombos sujem menos as ruas se colocados em gaiolas. O velho abre a sua mala: entram os quatro pombos (para estas aves uma sandes de manteiga tem sabor a migalhas). Fecha-a de repente, e apanha o primeiro autocarro que lhe aparece. Não vai para outro país, o autocarro, mas também não vai para muito longe – a porta de casa do velho é o destino mais provável.



autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 1 de julho de 2009

septuagésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a epidemia


1.

Sofro sem ter direito de o fazer. Tenho as vontades conectadas com a condição humana, por isso apetece-me continuar a sofrer. O mundo proíbe-te de passares o muro: de olhares para o outro lado. Foi ele (o mundo) que te colocou uma barreira a meio do caminho – lá para os teus trinta anos. Depois foi só manipular os pormenores: ou se subia a altura do muro, ou se descia a capacidade dos membros para executarem o salto.


2.

Até o fim tem um princípio. Uma rapariga é levada do restaurante: desmaiou com uma folha de salada entre os dentes. No restaurante procura-se o silêncio para não se perturbar aquele descanso forçado. Já todos sabiam que a epidemia tinha entrado pelos locais públicos. Três homens vestidos a rigor levaram a rapariga que não acordava nem com água fresca nos olhos. Os amigos dela (eram dois, um rapaz e uma rapariga) continuaram a almoçar. Não tardaria a acontecer-lhes o mesmo.
Reflexão:
De barriga cheia tem-se mais disposição para nos deixarmos apanhar pela fatalidade.


3.

A pobreza pode ser uma epidemia cientificamente manipulada em laboratório. Tiram-se condições de vida aos habitantes e facilmente te apercebes que foi o suficiente para que uma vaga de famílias inteiras frequentem o mesmo hospital. O velho da peruca abre o caixote do lixo para tirar e não para despejar. Encosta a camisa azul ao iogurte com sabor a estragado para chegar mais longe. Encontra uma cana lisa: instrumento eficaz de travar a dor na perna esquerda. Dirige-se para casa com a sua nova bengala improvisada; não segue os restantes que, em fila, optam por esperar nas urgências.


4.

Vendem-se tantas saias nesta altura do ano, que começo a suspeitar da sua função biológica inicial. Começo, também, a bocejar com tanta regularidade em andamento – atraem-me, não sei porquê, as mulheres que tapam as pernas com tecidos largos e compridos. Existe uma necessidade árdua de utilizar de vez em quando a imaginação no corpo de uma mulher. Se as pernas servissem apenas para andar, também não teriam tanta piada, e as saias não tinham tanta saída.


5.

Saciar a fome é tapar uma infecção que pode ser curta e benigna se estiveres junto a um restaurante. Não te afastes muito da civilização: uma variedade de medicamentos é vendida de acordo com o teu apetite. Num deserto um avião traz arroz e pacotes de leite. Nem todos se podem salvar com tão pouco. Trinta meninos correm porque querem ser os primeiros a chegar à mercadoria. Dez meninos ficaram sentados em casa: os olhos cheios de moscas e as barrigas inchadas de fraqueza e de fome. Estes dez meninos não aguentaram a epidemia da fome. Os outros vão esperando melhoras.


6.

O médico tem tanta capacidade para olhar para o doente como o rato para a ratoeira. Há momentos em que o senhor doutor caça a doença com as mãos, outros momentos precisa do auxílio de aparelhos. Há ainda a alternativa de lhe fugirem as doenças todas quando estas ultrapassam facilmente as suas competências profissionais. A percentagem de ratos que engole o queijo sem que o ferro lhes caia em cima é muito grande: para aí sessenta por cento. E quantas vezes leva o queijo para casa, o médico? para aí sessenta por cento das vezes; o resto são desgraças invisíveis que lhe acertaram em cima.


7.

Se estamos zangados com alguém que sai para a rua mesmo estando constipado, preocupamo-nos com o frio, primeiramente, porque o frio mistura-se livremente com a chuva. Esta proposição foi fundamentada pela rebeldia da personagem desta história: o espirro. Ouvem-se poucos pássaros a piar lá fora – uma sucessão de espirros vindos de várias direcções são confundidos com o disparar das espingardas. Os pássaros não gostam de conflitos, muito menos se estes forem disparados pelo vírus.


8.

Os pequenos prazeres são temíveis quando seguram uma espada. Ocupas o teu tempo em pedaços de satisfação e chegas ao final da vida um caco.



autor: rui almeida paiva