terça-feira, 20 de outubro de 2009

nonagésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

A caligrafia do poeta nunca aparece no livro e o morto comeu arroz misturado com carne e nada lhe soube a veneno. Quem disfarça melhor? O poeta que se esconde atrás de um conjunto de letras que saem de uma máquina, ou o assassino, que preparou um molho de natas forte para não ser apanhado a meio da refeição?
Finalmente alguém percebeu que no estrangeiro tornamo-nos um utensílio, um móvel, um armário. Ninguém te percebe e tu gritas: que alívio, estou livre. No estrangeiro não existem patrões e pessoas chatas. Existem pessoas, apenas, e cada uma delas diz coisas indecifráveis. Será que eles também percebem o que dizem uns aos outros? Duvido. Com sons tão desnorteados não se pode construir um mapa que nos leve ao tesouro. Talvez seja mesmo verdade que não se entendam e que sua língua materna seja isso mesmo: dizer sons estranhos ao calhas para poderem comunicar, para se poderem perceber. Na Rússia, onde nunca estive, existem conversas impróprias; principalmente na cama das meninas que são vendidas aos Americanos. Nessas camas comunica-se por sons estranhos, mas mais audíveis. Berram, essas meninas, quando deitadas: parece que só assim as percebem. Parece que só assim é que se conseguem fazer entender.
Quem foi envenenado, o poeta ou a sua poesia? E onde foi encontrado o veneno, na máquina de escrever ou na caneta?



Estória 2

A avó aprendeu a matar a galinha e não a pensar sobre ela. Ensinaram-lhe a cortar o pescoço num único golpe e esqueceram-se de emprestar o machado para eliminar com tal perícia o seu destino. O destino também se mata cortando-lhe o pescoço. Isso sabia ela, mas isso era um outro instinto que não chegou a ser desenvolvido: não passou de mãe para filha. À galinha também nunca lhe ensinaram a voar, embora as asas lhe apareçam, sucessivamente, geração atrás de geração: de mãe para filha. E nisso um dia pensou a avó, por si, pois ninguém lhe ensinou a pensar. A galinha não é piloto nem nada do género; nem sequer vai à escola de aviação e graças a isso é muito realista. Quanto mais se voa mais se sonha. A galinha é a única ave que é ave e que nunca sonhou. Dentro da espécie não há melhor operário. E disso a avó não tem pena, não tem pena do trabalho, tem pena é de nunca ter visto uma galinha a voar.



Estória 3
Assim que dás início à tua caminhada apercebes-te que deixaste algo de importante dentro de casa. Entras em casa e não queres acreditar: deitadas no sofás estão as tuas duas pernas a ler uma bom livro. É de facto uma tentação, mas lá foste tu sem elas, sem as tuas pernas, passear até à praia. Não sei como consegues mas eu cá nunca saiu de casa sem um bom livro.



autor: rui almeida paiva

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