sábado, 3 de outubro de 2009

nonagésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Cuspires na cara de um amigo ou rasteirares alguém que admiras é um truque que resulta quando se pretende ser mau. Um avião posiciona-se entre o céu e o solo do teu crânio. Estás pronto para aterrar sem grandes percalços.

O peso que o estudante carrega na mochila não é utilizado para pensar, faz mal às costas: é burrice ter carga inútil e ter tantos livros por abrir.

Ela chegou e nem te falou. Enfiou-se no quarto com um amigo e o amigo viu-te e também não te falou. Foram os dois para o quarto dela. A tua filha está com um rapaz dentro da tua casa e é sempre o mesmo rapaz e é sempre para o quarto para onde eles vão sem te cumprimentarem. Não podes obrigá-la a falar, foi ela que te avisou: pai, se continuas a bater-me deixarei de te falar. Há nove meses que ela deixou de me falar. Há nove meses que não lhe bates. Pensas: talvez uma boa estalada a reanime. Mas hesitas em entrar no quarto embora seja essa a tua vontade. Não tens amigos que te possam aconselhar no momento, a estes cuspiste-lhes na cara e eles agora circulam noutras estradas á procura de outro tipo de afectos. Levantas-te. É melhor não arriscares, olha que a tua filha é a única pessoa decente que ainda aguenta estar ao teu lado. Apercebes-te: é a única pessoa ao meu lado. Sabes que seria pior que lhe cuspires na cara se entrasses dentro daquele quarto sem avisares. Entras no quarto sem a avisares e ela está a fazer aquilo, aquilo que todos nós sabemos. Fá-lo com calma e na perfeição. O pai assiste à sua filha a fazer aquilo e sente-se envergonhado e verbaliza qualquer coisa: peço desculpa por interromper. O pai sente-se aleijado. Foi-lhe amputado parte do corpo: a dignidade, nesse dia, foi servida quente e com um tempero eximiamente escolhido: a filha com um pénis na boca.



Estória 2

Não penses que um móvel se pode equilibrar se o encostares à parede. A parede também ela tem hipóteses de ser frágil. Encosta antes a parede ao móvel que tanto te custou a construir para que tudo te parece credível. Embeleza a tua inteligência com metal e com ângulos que provoquem lesões no cérebro. Abre o teu diário no dia certo e copia o que tens escrito nas páginas anteriores. Sabes e confias na tua sabedoria de doutor por isso não tens que te preocupar com os imbecis. Já com o diário na próxima página, na página em branco, transportas a caneta para o papel porque nas tuas mãos corre tédio e não tinta. Porque és um móvel de ferro escreves «NADA» com um ar soberano, com superioridade de letrado; mas, sem te aperceberes, o teu diário é um conjunto de paredes frágeis que precisam de se apoiar algures para não caírem no ridículo.

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