segunda-feira, 5 de outubro de 2009

nonagésima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Imagina duas mil vozes a zumbir baixinho e ao mesmo tempo. Minutos e minutos intragáveis. ZZZZZZZZZZ, ZZ, ZZZZ, ZZZZZZZZZ. Tu estás ali, no altar, para ser admirado e é de ti que falam baixinho as duas mil vozes (sentes-te um animal raro dentro de uma jaula de um jardim zoológico evoluído). Querias poder sair ou então que o silêncio se manifestasse. Na realidade, querias apenas não existir e querias não mostrar a tua figura próxima da decadência: as costas encurvadas, a calvície saliente, o suor a manchar a camisa. Em pouco tempo chegaria a tua vez de falar e todos os presentes fariam a ligação lógica entre aquilo que escreves e aquilo que aparentas. Podiam fazer o favor de se manterem calados? gritas, enervado. Enlouqueceste?, dizem-me dos lados. Nunca tiveste medo de ser incómodo. Metade da plateia saiu logo, a outra foi saindo enquanto lhes ias contando episodicamente e detalhadamente o ridículo de se terem deslocado para ouvir falar um escritor. O vosso problema está nas palavras escritas, são tão estúpidos que nem conseguem limitar-se ao acto de ler. Logo que apanham uma oportunidade, lá vêm vocês por aí a baixo para matarem a curiosidade. Não vos bastam as palavras, seus desgraçados?

Estória 2

Temos o vento para nos fazer lembrar do fumo e do horrível desespero que é caírem-nos os dias como folhas. O velho goza com o nunca mais e despede-se com a mão levantada. Acena para o longe, dentro do seu quarto, em cima da cama. É para si que acena e aquele dia está prestes a entrar directamente para o esgoto, para onde os resíduos intragáveis são armazenados. Serão eliminados, serão exterminados como fezes, os dias. Como imundice. É para lá que o velho acena, não para se despedir ou dar as boas-vindas, mas para escorregar para o caixão onde se vai esconder do mundo. O esgoto do Homem está concentrado numa vala comum, é para lá que defecamos diariamente. É levado, o corpo, pelas artérias e pelas canalizações até chegar ao mar, até chegar ao cemitério onde toda a podridão desagua. Reduzido a matéria orgânica que alimenta os bichos esfomeados, o velho é capaz de continuar de mão elevada, e a acenar para si durante mais uma dúzia de meses. Mas a vida é como vos conto, é um horror; cheira mal, a vida.

Autor: rui almeida paiva

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