domingo, 31 de maio de 2009

quinquagésima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

A anorexia, nos pobres, é doença que mata. A filha do Presidente da Câmara tem anorexia e usa belos colares de pérolas, e quando vai ao restaurante, com os pais, pede uma sopa bem aguada e sem vegetais. Em casa da família do sapateiro passa-se o mesmo: sopa muito aguada e sem vegetais – uma sopa mais triste, no entanto, esta última.


autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 28 de maio de 2009

quinquagésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

O partido mais à esquerda fez um abaixo-assinado pertinente. Lançou para as ruas os jovens sonhadores que pediram, durante todo o dia, aos cidadãos da cidade, para colocarem no papel o nome dos cidadãos ricos que tinham conhecimento. No final, o membro principal do partido de esquerda contabilizou apenas dez nomes, que se repetiam insistentemente pelas quase oitenta folhas do subscrito. Este abaixo-assinado não poderá ter validade, anunciou ele, desiludido. Um abaixo-assinado tem que ter pelo menos cem assinaturas, e os ricos aperceberam-se disso antes de começarem a enriquecer. Se queres lutar contra uma injustiça tens de averiguar com antecedência se os injustiçados são uma pequena minoria – as pessoas pertencentes a minorias, são, quase sempre, vistas como coitadinhas.

autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 27 de maio de 2009

quinquagésima primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Um jovem poeta que escrevia diariamente tinha por hábito contar o número de palavras que tinha escrito até à data. Com a mesma vontade, o empresário contava o número de extractos bancários que conseguia ir acumulando. Aos dois, crescia, diariamente, a mesma riqueza – o vício de aumentar de tamanho aquilo que não tem qualquer importância a partir do momento que é contabilizado.


autor: rui almeida paiva

terça-feira, 26 de maio de 2009

quinquagésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Para se esconder, o rico disfarça-se de pobre. Tem uma nota grande para trocar por muitas moedas pequenas.
Quando se cospe para o chão deixamos de ganhar respeito pelo chão que pisamos. A nota do rico era demasiado valiosa para um pobre conseguir transportá-la no bolso sem andar aos gritos. Eram tantas as moedas, depois de trocada a nota, que o rico começou a deixá-las cair para fora dos bolsos, fabricando, atrás de si, pistas evidentes que os ladrões gostam de apanhar do chão.


autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 25 de maio de 2009

quadragésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

O velho escolhe o melhor osso (o mais forte e mais volumoso) que está exposto na travessa do restaurante. É uma atracção que tem desde a última queda: procurar partes rijas dos esqueletos. Se este osso me servisse, ai, se este osso me servisse! pensou o velho, que ao levantar-se, coxeava do lado esquerdo, onde já lhe tinham retirado o colo do fémur. Ai, se este osso me servisse, continuava a pensar, levando consigo no bolso o osso forte e volumoso do javali que acabara de comer ao almoço.

Autor: rui almeida paiva

sexta-feira, 22 de maio de 2009

quadragésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Entoando uma voz sexuada, o homem tenta convencer a sua mulher da sua vontade (necessidade seria a definição mais apropriada). Há quem fique aborrecido com a rudeza das hormonas. Há quem carregue melhor uma botija de gás do que dez dias sem qualquer tipo de penetração. O homem a que fazemos referência perde o humor quando não sente uma pele nua. Entra para dentro da cama, o homem, e tapa-se: está mais frio nos dias em que não chove nem por uma vez. Espera, evidentemente, que apareça alguém brevemente; alguém dentro dos lençóis – não aparece ninguém. Perturba-o pensar que ficará mais uma noite sem utilizar o órgão que tem vontade de ser exibido. Órgão duro, pensa para si, enquanto se toca.
Na manhã seguinte, o homem não beija a sua mulher como era suposto acontecer: o início de uma separação pode começar assim, num mal-entendido.
Breves notas finais:
Certas necessidades dão cabo da decência. E certas decências dão cabo da incompreensão.


autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 21 de maio de 2009

quadragésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Poderá a sabedoria ser tão nefasta como a beleza física?
O génio enfia-se no quarto, obcecado com a própria incapacidade para solucionar as graves insuficiências da humanidade. A menina, de olhos azuis, também não aguenta sair à rua, o olhar obcecado dos homens mais velhos não a deixam segura por dentro.
Temo, então, pela sobrevivência do que tem qualidades de excepção.


autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 20 de maio de 2009

quadragésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Um Matemático que deixou de saber de cor a tabuada dos oito tem o mesmo problema de um Japonês que perdeu os reflexos.
Quantas raparigas já seduziu o Matemático com a agilidade numérica? Nenhuma, acrescenta o Japonês, que tenta alertar os Inspectores de que nem todas as habilidades escondidas são atraentes.
Coloquem uma mosca em cima de um axioma difícil e, ali, têm as condições para avaliar estes dois homens, aconselha um dos Inspectores mais experientes. A experiência é feita. O Japonês, num único gesto redondo, falha a tentativa de caçar a mosca. Agora é tempo de perceber se o Matemático ainda consegue utilizar a maior parte da sua agilidade. Debruça-se para a frente, pensativo, enquanto atiça a ponta do seu velho lápis. Duas horas, foi quanto durou a paciência dos Inspectores para perceberem que o Matemático não tinha nem começado a resolver o axioma.
De volta para casa, cada um destes dois homens tinha um segredo que os Inspectores não conseguiram descortinar: na mão contrária à do lápis, o Matemático segurava uma mosca; e, na mão menos veloz do Japonês, um papel com o resultado exacto do axioma esvoaçava alegremente.


autor: rui almeida paiva

terça-feira, 19 de maio de 2009

quadragésima quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Junto à sabedoria de uma Dona de Casa está uma pilha de loiça por lavar. Demora-se, a Dona de Casa. Imaginemos que não tem nada para fazer até às quatro da tarde. Chegada a hora marcada (as quatro horas da tarde) a Dona de Casa continua entediada com a pouca actividade da sua vida. Adia, portanto, a única tarefa que lhe é exigida, para as dez da manhã do próximo dia. Não dorme, esta mulher; dormir é ter alguma coisa que fazer? Decide, durante a noite, contabilizar os objectos sujos. Trinta e cinco, diz para si.
Assistindo ao amanhecer, a Dona de Casa verifica que alguém festeja um aniversário: são os vizinhos de baixo. Começaram cedo: é o filho mais novo, faz hoje um ano. A Dona de Casa não tolera gritos de crianças, sai para a rua: são quase dez da manhã. Entra depois num café vazio, lê duas revistas, come dois bolos, inscreve-se num jogo em que o prémio é uma máquina de lavar loiça. Os resultados saem daqui a dois meses, é o que a mulher do café anuncia, sublinhando com a unha o que está escrito no final da folha. A Dona de Casa adia, então, por dois meses, a sua única tarefa – o tédio.


autor: rui almeida paiva

sexta-feira, 15 de maio de 2009

quadragésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Perdes uma oportunidade de chorar e a consequência é uma constipação que te atraiçoa as narinas: uma lágrima tem menos de doença que um nariz encharcado de ranho.
Embora a cor se mantenha (a cor dos dois líquidos acima referidos) uma lágrima é aquilo que deve pertencer apenas aos olhos. Mas, voltando à questão inicial, porque continuas tu com vontade de chorar e não o fazes? Temos, como bem sabes, uma nuvem (a que os Homens chamam cérebro) dentro da cabeça, e o choque entre dois neurónios de temperamentos opostos origina um ciclone que devasta a cidade onde moras desde que nasceste.


autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 14 de maio de 2009

quadragésima terceiro tentativa para chegar ao mesmo sítio

Numa relação apaixonada, o beijo é a fronteira entre duas bocas. E o amor, para obter resultados, tem de se saber organizar politicamente. Esta é a minha boca e essa é a tua boca, dizemos nós como se fôssemos dois chefes de Estado que se encontram, como se fôssemos duas línguas que se embaraçam velozmente.
E vinte anos mais tarde, quando a Guerra Civil estiver instalada, e os beijos se tornarem raros, os dois países, chateados, justificam o abandono dos territórios vizinhos da seguinte forma: «apenas porque deixou de existir novidade em viajar até à fronteira», justifica assim o casal, o facto de se terem deixado de beijar.
E o céu da boca, conhecem o céu da boca um do outro? Não. Claro que não. É a mania que temos de se olhar mais para baixo do que para cima.


autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 13 de maio de 2009

quadragésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Uma equipa de investigadores tentou seguir uma única nuvem que lhes parecia suspeita. Tem as pontas avermelhadas, sussurrou um deles. Não podemos ter a certeza que seja o criminoso que procuramos, reivindicou o outro enquanto se deslocavam num passo rápido.
A nuvem circundou a cidade o dia inteiro, por isso, os investigadores decidiram permanecer parados, atrás de um canteiro suficientemente bem localizado em relação ao local do crime. Ao final da tarde, finalmente, começaram os aguaceiros. Era vermelha, a chuva, prova suficiente para incriminar a nuvem do homicídio de três inocentes meninas.
Um assassino volta sempre ao local do crime, acrescentou um dos investigadores. Estás detida, disse o outro, apontando com um guarda-chuva espadaúdo para o alto.

autor: rui almeida paiva

terça-feira, 12 de maio de 2009

quadragésima primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Como é que o céu treina a sua vocação artística? fazendo animais perfeitos com as nuvens. O céu, nos seus dias de inspiração, já chegou a moldar das melhores esculturas a três dimensões. E quanto tempo vive a forma de um gato desenhado no céu? Apenas alguns minutos. Apenas alguns minutos porque, no céu, o gato atreve-se demasiadas vezes a passear sobre as linhas ferroviárias dos aviões.


autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 11 de maio de 2009

quadragésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Quando os sonhos se contorcem de uma insuficiência praticável, desiludimo-nos com as miseráveis capacidades do nosso corpo. Qual será a sensação de enfiar a cabeça numa nuvem? pergunta o menino à sua mãe que não compreende o sentido da pergunta, ignorando, assim, a questão que lhe foi feita.
O menino, sem resposta para matar a curiosidade, tenta, ele próprio, solucionar os seus desejos. O que é que estás aí a fazer? gritou a mãe, na manhã seguinte, quando encontrou o seu filho com a cabeça enfiada numa grande almofada de penas.


autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 7 de maio de 2009

trigésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Se considerarmos a Gota como sendo um objecto ameaçador, somos sujeitos a actuar (principalmente no Inverno) como fugitivos de guerra. Verificamos que o céu negro se aproxima através de um vento escuro: uma nuvem carregada de objectos ameaçadores a vir na nossa direcção. Por esta razão, decidimos agir: corremos para debaixo de uma varanda como se esta fosse uma fossa militar: um esconderijo de guerrilheiros desarmados – não é verdade que os inocentes, por vezes, são incorrectamente abatidos?


autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 6 de maio de 2009

trigésima oitavo tentativa para chegar ao mesmo sítio

Um leitor atento, por estranho que pareça, dá muito pouca atenção à chuva que lhe começa a cair pela cabeça abaixo (talvez no livro faça sol, tento eu, assim, justificar a distracção ridícula de tão empenhado homem).
Sem andar à procura de nomes muito exigentes para classificar objectos com funções muito bem aplicáveis, apontaria com o dedo indicador para o leitor atento e diria claramente: «guarda-chuva». No livro (e isto pude comprovar facilmente) nem uma pinga do céu conseguiu destruir as condições tropicais das frases que estavam a ser lidas. Que belo guarda-chuva! poderia eu ainda ter dito em voz alta daquele leitor compenetrado.


Autor: rui almeida paiva

terça-feira, 5 de maio de 2009

trigésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Um dos Deuses, o Deus da Organização, olhou cá para baixo e decidiu aperfeiçoar a urbanização do território. A cidade é zona de nebulosidade, é onde pode chover com torrencialidade a inquietude humana. Os campos e as florestas são zonas límpidas, são zonas de bom tempo, é onde uma tranquilidade aparente consegue expressar a paz entre os Homens. Mas no campo e na floresta não vive ninguém! contrapôs a Deusa da Racionalidade. Por isso mesmo, respondeu o Deus da Organização, onde não há Homem, há condições para passarmos umas boas férias repousadas.
Longe das nuvens lá de baixo, longe das nuvens lá de baixo, carimbou definitivamente a Deusa da Racionalidade.

autor: rui almeida paiva

domingo, 3 de maio de 2009

trigésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Se pudesse escrever um livro, escrevê-lo-ia nas mãos – existirá melhor esconderijo para obter um produto do que conseguí-lo no lugar de onde ele veio originalmente?
O problema poderia aparecer mais tarde. O filósofo viria indignado e a pedir satisfações: e agora, alguém me saberá explicar como posso apagar este pensamento que me nasceu em cima da nuca?
E depois o agricultor: as batatas nascem-me pelo machado em vez de me nascerem nas traseiras lá de casa.
E logo imediatamente o professor: o conhecimento tornou-se pior que a varicela, os alunos não podem continuar a tentar resolver os problemas de matemática sobre a minha pele – tornou-se insustentável, o ensino.

autor: rui almeida paiva