sexta-feira, 23 de outubro de 2009

nonagésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

– Vai para ali e de longe diz-me que impacto tem a minha figura enquanto escrevo um poema.
– De longe só tens beleza quando não escreves, quando não te escondes.
– Vai agora para ali, para a frente, e diz-me se me consegues encontrar enquanto leio este livro?
– Consigo encontrar-te enquanto lês esse poema.
– Estranho, estava agora mesmo no capítulo em que percorria uma aldeia do século passado e mesmo assim tu viste-me. Já agora, o que é que achas dessa aldeia de onde acabaste de me encontrar?



Estória 2

Numa sala de aula um aluno participa, os outros não. Tem a cultura no cérebro como carga em cima do burro. O burro por vezes é teimoso e pára, e deixa cair a carga de propósito. O menino, nos intervalos, tenta deixar cair a carga, de propósito. Mas já não tem qualquer tipo de hipótese, foi identificado pelos restantes: ele é esquisito, sabe demais. Sempre sozinho diz «bom-dia» e «boa-tarde» aos professores e os professores não param, continuam. Destaca-se pelo abandono, o aluno. Alguém terá coragem para o abraçar uma única vez? Senta-se sempre no mesmo banco, junto ao porteiro, para poder ficar mais perto de uma ambulância no caso de o agredirem novamente. Mais uma aula, ainda agora começaram; o aluno sabe muito de Geografia mas não abre a boca, engana-se de propósito. Um dia, se continuar a falhar nas respostas, o aluno escorregará e não saberá subir as escadas novamente até ao topo. Novo intervalo: 15 minutos. O mesmo banco. Quinze minutos. Dois professores entram sorridentes e cumprimentam-no, mas ninguém vê o que sucede: um menino escorrega, e deixou a sabedoria lá em cima, no topo.


Estória 3

É para ela um bom método – utiliza as botas que aleijam prevenindo-se assim dos outros desgostos, dos outros sofrimentos. As botas não combinam com o resto, com o resto do corpo. Um corpo esquelético num par de botas gordas. Doentias, as botas têm aqui semelhanças com o seu utilizador, na doença. Previne-se porém um andar elegante coxeando-se como um cão atropelado. Sabe ladrar a quem se aproxima, o corpo. Quem não tem pena do bicho? Mas a garganta tem frio, o que é costume para quem não conversa há dias. Não se exercem as cordas vocais por impedimento dos outros, que são monstros devoradores. As botas, entre elas, são desagradáveis, agridem o calcanhar como a chuva agride a colheita fora de época. Veremos como se safa o calçado nesta subida íngreme. A meio, a meio da rua que cansa o corpo esquelético (que pertence a uma mulher de trinta e quatro anos), o esqueleto desiste porque o calçado não aguenta tanto chão que não anda por si. Dois homens aproximam-se, vêm de cima e são como uma função aritmética, como uma nódoa da humanidade. Ela geme. Não se desvia, geme. Eles só querem olhar para ela para aguentarem a pena o maior tempo possível. Não tiram os olhos. Conseguiremos lidar com tanta desgraça? Ainda não passaram os dois homens e uma dor no peito da mulher torna-se insuportável. Ela pensa que existe uma distância para tudo. Pensa na distância numerável do seu peito à extremidade inferior, aos pés ensanguentados. Os dois homens estão tão perto que ela não aguenta e alivia o seu peso, que se dirige para o chão. Um corpo estranho numas botas que não combinam tenta cair bem. Os dois homens esticam os braços e acolhem a desgraça num único gesto. Mesmo tendo desmaiado ela sente que está a ser tocada. Sente-se enojada. Não gosto quando me tocam. O chão fica finalmente duro. Os homens afastam-se. Ficam com medo. A mulher tem pouca respiração e muito pouca higiene e não acordada nem com um tiro numa perna. A mulher tem a face fria – uma boa sensação, finalmente. A saliva escorre-lhe, ou será sangue? pensa a mulher.


Estória 4

Como podes tratar a pobreza? Dando-lhe dinheiro ou dando-lhe um pouco de higiene? Um pouco de dignidade, talvez.
Embebes álcool etílico em algodão e ofereces a tua maneira de resolveres os problemas. Quem encontras com estes requisitos, com os requisitos da pobreza em estado puro? Ali está o desalojado que se parece com um animal, com um réptil pegajoso. Ele abre as mãos e resmunga porque não sabe o que fazer com o algodão encharcado. Não podes sarar a desgraça como se sara a carne, é a conclusão que tiras da tua boa-vontade.


autor: rui almeida paiva

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