terça-feira, 27 de outubro de 2009

nonagésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Com lealdade, o velho segura firme o objecto que contém um líquido e deposita um comprimido sobre a língua e depois despeja água pela goela. Um objecto pode-se manusear com destreza. Ao coração não o tratamos como objecto porque não nos podemos servir deste como um livro ou como um tacho ao lume. Completamente dissolvido nas paredes do estômago, o comprimido começa a cumprir a sua função: batimentos cardíacos menos velozes. Parece que o velho continua com o copo na mão; agora vazio, o copo não serve. Ele pensa: agora não tem função. Utilizei-me dele e posso deitá-lo fora. Deitá-lo fora, ao copo que ... ups ... é de vidro. Estilhaça-se no chão.
Temos que pensar sozinhos: o mundo atira-se contra nós e temos de o utilizar, temos de ter em atenção as qualidades dos utensílios.
Pensa – o velho não teve em atenção o material de que é feito o copo; atirou-o ao chão como plástico e não como vidro. Um empregado aproxima-se com uma pá e uma vassoura. «Não faz mal, acontece a qualquer um».
Quem reflecte agora é o causador do prejuízo – o velho está doente e pensa: como é injusta, a vida; posso tocar nos objectos mas não posso tocar nos órgãos com pouca saúde. Para ter acesso ao coração seria necessário um cirurgião e um rasgo no peito. Seria o seu desejo, um dia estar numa cama de hospital onde pudesse estar acordado e onde tivesse o corpo todo em alerta máximo. Facilmente o bisturi rasgaria aquela pele fina. Depois o buraco aberto levaria o idoso a tomar a atitude certa: uma mão apanha o coração. Segura-o. Poderia concerteza tocar nele e levantá-lo. Depois teria de agir: ou colocá-lo de novo no lugar (dentro do peito), ou deixá-lo cair para saber se este é de plástico ou de vidro.


Estória 2

Oportunamente faremos o nosso juízo.
Vinte meninos, num campo de jogos, dentro de uma escola, utilizam a emoção para cansar o corpo. Um dos alunos não faz aula, tem asma e tem medo de morrer mais uma vez. Um dos golos foi marcado com a mão. O asmático apaixona-se pela mão e pelo golo que foi marcado de forma irregular – se corresse atrás da bola durante quarenta minutos seria a respiração a cometer uma irregularidade.
À noite, quando adormece, o menino que não faz aula não tem qualquer problema – corre oito horas seguidas e marca golos com os dois pés. Mas hoje é dia de sonhar exaustivamente com o mesmo momento: a mão que empurrou a bola para dentro da baliza . Deseja aquela mão – um desejo carnal, sexual. Percorre a mão e o braço e o corpo do menino mais velho da turma que marcou o golo e fica com asma mesmo estando dentro de um sonho.
Está na altura de ajuizar este acontecimento: a homossexualidade também poderá ser lançado como se lançam dois dados de um jogo de sorte e azar, como se estivéssemos a jogar poker? Estaria hoje apaixonado por uma menina, o asmático, se a mão que marcou golo pertencesse à aluna mais reservada?


Estória 3

Isto que vos vou contar de seguida é horrível porque se passou com a minha filha.
Num parque infantil, junto ao gradeamento, estava ela a descansar quando passou um casal de idosos. O homem ia de cadeira de rodas e quase não falava porque tremia da boca e dos dedos e dos joelhos e estava muito doente onde quer que fosse. A idosa tinha muita energia e distraía-se com um miúdo que devia ser neto. O velho furioso não queria sair de casa, quanto mais meter-se na confusão de um parque.
Ficaram frente a frente, a minha filha e o velho. Todas as crianças gostam de observar aquilo que lhes parece diferente. O velho incomodava-se com os olhos obcecados da minorca. Tentando disfarçar, insinuava-se aborrecido para a esposa e esfregava o rosto, fingindo-se ensonado. Mas quando passava visualmente pelo perigo, lá estava o raio da catraia a chateá-lo com aquele olhar irritante.
Se não fosse a minha filha, eu não estaria para aqui a escrever sobre isto; mas era ela e eu não soube o que fazer porque passaram muitos minutos e ela desenhava todas as rugas do velho – contava-as, possivelmente.
Era notório o que ali se estava a passar: o velho estava com uns ciúmes espinhosos daquela menina que era a minha filha: era essa a razão do seu incómodo. E eu quase chorei porque o velho, por fim, rendeu-se e cedeu fixar-se na pequena. A minha filha tem quinze meses. O velho não aguenta estar por cá mais quinze meses. Era esse o laço que os unia. E juro que esse ser humano prestes a sair (o velho) e este ser humano acabado de chegar (a minha filha) formaram uma linha florescente no ar que partia dos olhos de um e ia até aos olhos do outro. Os dois mantiveram um diálogo entre seres da mesma espécie. Ele, magoado, estava perante alguém que ainda agora começou e estava perante si, que estava quase a acabar-se. A criança, por sua vez, não tinha culpa de ainda ter tanta vida e antes de se voltar (sim, a minha filha, a minha única filha voltou-se cruelmente e foi brincar para o baloiço deixando o velho a chorar em cima da cadeira de rodas) antes de se voltar ainda acenou um adeus para aquele senhor diferente. A mãozinha rodou sobre si meia dúzia de vezes. Despedia-se do homem, a vida e a minha filha – as duas da mesma maneira inflexível e fria. E foi o que sentiu o velho: a vida a dizer-lhe adeus.


Estória 4

Frequentemente surgem os insultos entre um casal cansado. Alguém se transformou em mosca que nos passa junto ao aparelho auricular. O homem primeiro, depois a mulher – os dois moscas um do outro – atropelam-se. Zumbem as propriedades frágeis, propriedades com defeito. O homem deita-se no sofá com os pés descalços. Os pés descalços fazem confusão à mulher que acumula o dever de amar por sentido de obrigação. «Tira imediatamente os presuntos aí de cima, estás parvo ou quê?» Que grande perigo correu ela agora, que não aprende nunca. Dentro do peito deitado, algo tremeu; algo duro prestes a partir dentro do peito do homem que fecha os olhos e respira fundo. No trabalho, logo de manhã, alguém entrou no táxi e furiosamente disse: «vocês, os burros, nem para guiar estão aptos.» Ouviu também durante o dia frases como estas: «está estúpido ou quê, porque é que não passou o vermelho?», «com que então os atrasados mentais também têm possibilidades de passar no exame de código», «já não existem cabrões que sabem trabalhar com brio», «quanto recebe por fazer indecentemente o seu ofício?».
O homem está deitado com os pés descalços em cima do sofá e pega num lenço imaginário e limpa as frases que ouviu durante o dia de trabalho e de repente, mesmo aos seus ouvidos, a mosca varejeira: «agora também és surdo – estás a impregnar o sofá de chulé. Tira-me esses pés nojentos aí de cima.»
No lenço imaginário não ficou tinta nem sujidade nem ofensas. Parece que no peito do taxista existe uma lápide esculpida e não uma folha que se pode amarrotar e deitar fora.
Teria de começar a animação: o homem sente-se apto. Foi violado ininterruptamente nas profundezas. Da dignidade que caiu de uma falésia o homem levanta-se: já estou habituado. Está descalço e a mosca grita: «agora estás a sujar o chão. Estou eu o dia inteiro a esfregar para chegares e estragares todo o trabalho.» O homem enche a mão como a mercadoria enche o comboio: de objectos duros; e despeja a acumulação de pesos num único impulso, num só soco de pugilista que foi o resultado de todo um dia a ser beliscado pelo mundo. A mulher cai que nem uma mosca atarantada. É teimoso, o raio do animal, pensa o homem, ainda bate as asas.


Estória 5

Raquítica, a costureira tem por hábito produzir muitos buracos que se ligam. É como na fidelidade, explica às duas colegas, furamos a confiança dos maridos e ainda reclamamos por melhor. Para a costureira os anos passam como duas mangas de uma camisa: ou muito curtos ou muito compridos. Eles perfilam, os anos, e apresentam-se no seu exército que foi à guerra apenas uma ou duas vezes. Dessas poucas tentativas não teve coragem de pelotão: não feriu sequer a inutilidade. Outras vontades têm sido prioridade: é ouvida frequentemente a conversar com os tecidos. As colegas ouvem-na contar histórias às bainhas e aos colarinhos enquanto os retoca – personagens muito queridas e reais para a costureira. Parece que até fadas e monstros contêm os seus episódios inventados.
Quando chega a casa, nos dias tristes e chuvosos, a costureira parece um farrapo e prolonga-se, pela simples razão, de não conseguir acordar da sua imaginação. Bom dia meu escravo, diz ao seu marido que, com paciência, lhe responde bom dia alteza.
Aos domingos lá vão os dois à missa porque foi sempre um hábito e porque assim aproveita-se para passear um pouco. Para as cerimónias a costureira move os tecidos trabalhados com dom e veste-se de orgulho: foi ela que fez aqueles vestidos de alto gabarito e todos os fatos aprumados em que o seu homem se pendura. Antes de sair, o homem que a acompanha faz o favor de provar os casacos que lhe caem melhor. Mas se não há Deus, para que é que me interessam as camisolas e as calças elegantes. Não poderia ir tão bem de fato de treino? O que é que Deus tem que ver com aquilo que vestimos?
É o dia da semana em que posso exibir o meu trabalho e Deus é isso – ajuda-me a ter muita vaidade ao Domingo.
Nenhum dos dois é religioso. Riem-se por dentro quando o padre utiliza refrões em que todos parecem ser obrigados a levantarem-se. Eles também se levantam, não por Deus, mas pelas vestimentas que fazem inveja.
Diz a costureira: quem não gostaria de estar tão bem apresentado perante a fé?
A costureira, quando entra na igreja, segreda: aceitas casar comigo para sempre? É altura de viver como uma verdadeira personagem do país dos sonhos: és o meu príncipe encantado. O homem diz que «sim» porque a satisfação da costureira é uma verdade. Depois assistem à missa de mão dada. Todas as semanas me caso e peço um desejo.
Amo-te, segreda a costureira no final da cerimónia. Também te amo, responde o príncipe, que, quando chega a casa, só se quer enfiar na oficina e aparafusar peças para o motor de arranque da sua felicidade em estado lastimável. Só precisa de responder também te amo para adquirir o passe para o sossego dos próximos dias, para que a louca da sua mulher não se deite o dia inteiro a chorar e a berrar de desgosto. Duas das peças do motor precisam de óleo – suja as mangas da camisa mas a princesa já está a tratar disso. Em frente da máquina de costura prepara com entusiasmo o seu próximo casamento.


autor: rui almeida paiva

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