sábado, 28 de março de 2009

vigésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Dentro daquele pequeno quarto um pedaço daquele pequeno mundo infernal. Os animais atacam-se vezes a mais; uns defendem-se da maldade que lhes advém da raiva; outros aproveitam-se das benesses dos mais fracos, dos aparentemente mais fracos. Dentro daquele quarto Wallace tentava sobreviver à teimosia. Há dois dias que se esforçava para matar aquela mosca.
Na rua o ar infiltrava-se nos poros. Era escuro e era quente e era Verão. Quase ninguém suportava permanecer em casa, quase ninguém suportava as pequenas paredes que as pequenas casas ofereciam, quase ninguém. Na rua o silêncio não assustava, não tinha a aparência da morte, tinha a aparência do cheiro a eucalipto e a aparências das sombras que avançam com a luz da Lua. É um oceano de ar quente aquilo que nos rodeia, apercebia-se Joseph, ao suspirar com intranquilidade. O ar a entrar-lhe pela garganta como um travo desfeito de qualquer coisa obrigatória tinha uma composição diferente: no meio do suspiro, um movimento de engolir da glote foi o indício de que algo de sólido vinha misturado com o ar: um insecto, mais precisamente, um insecto que se aproveitou da boa vontade dos homens que suspiram. Neste caso o insecto era um mosquito de cinco milímetros de comprimento e com oito olhos cuidadosamente colocados na curiosidade de um guerreiro.
Dentro do quarto apertado a mosca era lenta na deslocação mas perspicaz na esperteza. Wallace está há dois dias com o mesmo chinelo na mão: uma arma potentíssima de matar moscas chatas, justifica-se para si, enquanto a mosca lhe passa novamente junto ao ouvido, realizando um zumbido severo e destemido. Um Homem vence sempre diante de uma mosca, pensava Wallace, enquanto seguia os passos voadores da sua presa. Deixa-te repousar que eu já te apanho. E a mosca repousava, mas nos sítios mais difíceis de alcançar: dentro das torneiras, entre duas gavetas, no dedo infectado de Wallace. Tudo sítios onde o chinelo não podia actuar como arma. Wallace esperaria que a mosca saísse de dentro da torneira, esperaria dias se fosse preciso, esperaria naquela posição de ataque: o braço levantado em tensão, pronto a avançar em grande velocidade. Mas o talento também se trabalha, o talento de ter paciência. Wallace, incompreensivelmente, adormece, e o talento de se ser mosca encosta-se ao momento. A mosca sai da torneira, sobrevoando o espaço silencioso, e entra para dentro do ouvido de Wallace.
Meses mais tarde o senhor Joseph encontra Wallace na rua, o Inverno permite tapar a pele mas não a identidade: a cara é o que se escapa ao frio. ZZZZZZZZZZZzzzz, é o que diz o senhor Joseph, quando abre a boca, falando através do mosquito que agora tem aparência de amígdala palatina. Mais dois homens que conseguimos dominar, não é verdade?, foi o que ouviu Wallace, através da mosca que se passeava pacificamente pelas membranas fibrosas dos tímpanos deste homem teimoso.


autor: rui almeida paiva

sexta-feira, 27 de março de 2009

vigésima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Numa vila com jardins agradáveis, ervas verdes e flores coloridas, as pessoas surgiam, calmamente, e trocavam ideias sobre a intimidade dos habitantes daquela localidade específica. O tema de conversa era único: a vida dos que se escondiam dentro de casa, dos que guardavam a sua desgraça como se fosse um segredo difícil de se propagar. Claro que havia outros assuntos interessantes para se discutirem, mas eram os boatos o que motivava melhores momentos, os boatos mais horríveis. A voz dos homens era tão feia, nesta vila, como a voz das mulheres; era veneno puro; cuspo vermelho; adjectivos sujos e insultuosos. Por isso não existia um «bom dia», ou um «até logo», nem mesmo se falava de trabalho ou de lazer; o tema de convívio e de saudação era único: tentar destruir ainda mais a vida dos que tinham sofrido um infortúnio.
Joanne, é o nome da mulher que teve o acidente hoje à tarde.
Quem, a filha dos Tamen?
Não, a outra, a que teve um filho do Soldado.
E morreu?
Quase, quase morreu debaixo de um acidente.
Como é que isso é possível?
É uma força de expressão. Caiu-lhe o tractor em cima, que é o mesmo que dizer que lhe caiu o acidente em cima das duas pernas.
Foi, por assim dizer, um acidente pesado!
Horrível, de ligeiro não teve nada.

Na vila tinham construído dois novos parques. Num desses parques passava um pequeno rio; no outro, um grande lago cobria a parte central de um descampado relvado. Ao todo, eram dez os espaços verdes que tinham sido construídos para satisfazer as necessidades de uma Natureza Social mais organizada: caminhos pedestres, campos desportivos, bancos e cadeiras incluídos, e uma quantidade de sombras bem escuras.
Eram também dez a quantidade de Desgraçados que se escondiam em casa, com medo de revelarem a sua má sorte. Há uma semana eram oito, os Desgraçados, agora são dez, por isso é que se apressaram a construir os dois parques: na vila, uma quantidade de parques idêntica a uma quantidade de Desgraçados era imprescindível para se conquistar um bem-estar pleno entre a população.
Clubin, o Presidente da Câmara desta vila do interior, tinha muito trabalho quando a desgraça atacava em força, e aquela situação parecia grave. O seu lugar podia ser posto em causa se não restabelecesse a parte cómoda daquele povo: é exclusivamente obrigatório sentirmo-nos confortáveis, esclareceu imediatamente Hans, um dos membros mais influentes entre as famílias «limpas» em acontecimentos tristes. Clubin tornar-se-ia um falhado, se não conseguisse resolver atempadamente a situação de Gilliatt e Joanne, os dois habitantes recentemente atacados pela infelicidade (Gilliatt não aguentou mais e, com os nervos inchados, foi apanhado a bater na mulher e nos filhos com um martelo; Joanne foi a mulher que teve o acidente com o tractor: ficou sem as duas pernas).
Clubin isolou-se no seu escritório depois de o informarem do sucedido. Preciso apenas de dez minutos, disse ele à sua pequena secretária de voz rouca. Clubin fechou os olhos, no escuro activo uma série de qualidades, no escuro tenho a sensação de que as coisas são muito pequenas. Para ele, o seu cérebro funcionava como uma nuvem: tenho um cérebro que consegue ver de cima os sítios; o mundo, na minha cabeça, só aprecia um tipo de habilidade: a aviação; aqui está uma das qualidades exigidas para o cargo que pratico; e quando tenho necessidade de consultar o mapa da vila, lanço-me para os céus e pesquiso descansadamente a organização do meu território. Ali está um bom local para construir os dois parques novos, disse Clubin, naquele seu pensamento aéreo. Do lado esquerdo ficará o parque para o senhor Gilliatt, e do lado direito o parque para a senhora Joanne, adiantou o Presidente, apontando para a periferia Norte da sua vila.
Todos os parques, por decisão de Clubin, começaram a ser elaborados na periferia da vila. Uma boa medida, confirmou Hans, no dia em que se apercebeu da estratégia utilizada pelo Presidente. Clubin, antes de abrir os olhos e aterrar na realidade, ainda teve tempo para realizar uma inspecção aos restantes espaços verdes; de imediato apercebeu-se de que estes novos parques, construídos para os mais recentes Desgraçados, fechariam completamente a vila num círculo perfeito. E quando houver mais Desgraçados, onde poderei construir mais parques?, numa nova periferia, respondeu Clubin, para si: faço outro círculo para o lado de fora da vila, e assim sucessivamente farei novos círculos se for essa a necessidade imposta pelas terríveis consequências do destino.

Preparada para sair de casa para o parque que lhe tinha sido destinado, Joanne aproxima-se da porta; a cadeira de rodas é uma das muitas dificuldades que lhe fazem companhia desde o dia do acidente. Seria breve, o percurso, até ao parque. Ao atravessar uma rua secundária, é avistada por um casal. Estás a ver o que estou a ver?, disse a mulher. A nova Desgraçada não vai sozinha para o parque, alguém empurra a sua cadeira, acrescenta o homem que, de repente, aperta a mão da sua companheira para controlar a respiração repentinamente lenta.
O aspecto de Sophia, a filha de Joanne, confundiam a construção do tempo, parecia velha pelas características vindas da tristeza, embora a pele, como se fosse de plástico, não tivesse mais de trinta anos. Como filha, Sophia tinha uma dedicação invulgar para com a mãe. Dentro dela, a necessidade física que possuía pela imagem maternal era interpretada como doentia: és o meu cancro, disse um dia Sophia à sua mãe. Joanne não compreendeu como alguém poderia ser o cancro de outra pessoa. Destróis-me as células pelo simples facto de existires, mas por muito que tente nunca conseguirei tratar-me da possibilidade de um dia me deixares, és um cancro, o meu cancro, e gosto de ti porque não tenho mais nada para gostar, disse-lhe Sophia, nesse mesmo dia.
Quando Joanne ficou sem pernas, Sophia ficou contente: assim dependerás de mim para viver. Foi o dia mais feliz da sua vida, e, automaticamente, sem que lhe ensinassem a lidar com um amputado, Sophia começou a tratar de Joanne com a mesma dedicação com que ajudou a criar a sua boneca de cinco anos.
A população estava terrivelmente ferida com os factos observados. Um único Desgraçado poderá usufruir do parque, ninguém mais; e a regra tinha sido violada, e quanto a isso ninguém estaria em condições de utilizar argumentos válidos. Duas famílias decidiram juntar-se para lutar contra esta situação. Outras quatro famílias não estavam dispostas a abdicar do seu descanso. Os confrontos, em poucos dias, tornaram-se inevitáveis. Os insultos verbais fugiram, em poucos minutos, para os membros periféricos: para os encontrões, os arranhões, os pontapés; formando um volume de violência inegável aos olhos das leis estabelecidas. Com a população toda envolvida, os cidadãos, individualmente, foram denominados Desgraçados.
Em dois dias, vários círculos perfeitos de parques foram construídos no lado de fora dos círculos anteriormente existentes. Clubin, o Presidente da Câmara, satisfeito com as medidas tomadas, era agora o único habitante daquela vila, por isso, sozinho, achou por bem aprovar uma nova lei: libertar os primeiros dez Desgraçados.

autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 26 de março de 2009

vigésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Sem explicação, Clopin esticou a mão perto de uma rua agitada. Duas moedas caíram na mão direita daquele homem de rosto movimentado – as rugas, dignas de atenção, torciam-se de fúria – seria um problema de pele?, não, não era um problema de pele, era apenas um problema de idade, ou de esforço, reclamaram em tempos os médicos.
Clopin queria saber se estava a chover ou se estava a fazer sol, por isso é que esticou os dedos naquela rua movimentada, depois adormeceu, ali, sentado; adormeceu como se a rua fosse uma boa cama para se contemplar pesadelos.
Clopin não dormia há pelo menos sete dias: de olhos abertos as preocupações são mais verdadeiras, costumava afirmar. Clopin, antes de adormecer, pensou nos dois filhos que têm fome e que não param de chorar: de olhos abertos estou mais atento, assim os problemas não me apanham desprevenido. Contudo, a perturbação da insónia tornara-se insuportável. Desgastado, Clopin adormece de mão estendida, porque quer saber se está a chover ou se está a fazer sol: uma mão com sensibilidade climatérica, murmura para si, enquanto os olhos se fecham inesperadamente.
A dormir, o peso da mão de Clopin, em poucos minutos, torna-se insuportável. Deve ter sucedido um desvio – pensa Clopin, com uma secura na boca, característica privilegiada de quem dormiu pouco tempo – , só estava habituado a carregar um único peso: a cabeça, e agora esse peso ocupou outro local: a minha mão. Apetece-me crer, então, que apenas tenha ocorrido um desvio de qualidades: o peso da doença interior (a cabeça) passou a ser uma doença exterior (a mão). Clopin, por este facto, e ainda de olhos fechados, concluiu o seguinte: o peso da minha mão direita é uma doença menos dolorosa, mas é, sem sombra de dúvidas, uma doença mais cansativa.
Clopin tinha a mãos cheia de moedas, moedas pesadas.
Clopin abre os olhos e apercebe-se de que no seu corpo trémulo, os olhos tristes e a respiração cansada trouxeram a vantagem monetária para compensar os recursos emocionais frágeis: a tortura tinha chegado há uma semana, quando conseguiu apenas alimentar um dos filhos – o mais novo – com um resto de leite que tinha comprado com o pouco dinheiro que ganhara no seu último emprego.
Da primeira vez que esticou a mão para saber as condições climatéricas, Clopin percebeu que o dinheiro lhe surgia sem esforço; ali estava uma esplêndida forma para obter a compreensão da Humanidade: exponho a desgraça, tornando-a pior do que ela já é, respondia Clopin, quando alguém tinha coragem de lhe dirigir a palavra; quando lhe perguntavam: o que é que se passou com o senhor para ter de se submeter a isto? Clopin tinha a resposta estudada, a resposta mais curta e mais verdadeira, e repetia-a sempre que fosse necessário: exponho a desgraça, tornando-a pior do que ela já é, nada demais, ... , antes tinha a desgraça toda dentro da cabeça, porque não sabia como havia de ganhar a vida, agora tenho a desgraça na minha mão direita, e é ela que me ajuda a sobreviver.

Susy falava uma outra língua que Clopin nunca poderia perceber. Susy tinha assento na Assembleia e era muito conhecida pela população e aqui está uma diferença linguística da civilização: ter um bom trabalho e ser bastante popular.
Susy passou durante dois meses na mesma rua que Clopin. A sua distinção não a deixava ocupar o outro lado do passeio, onde os menos favorecidos se sentiam mais à vontade com a pouca higiene; nem para lhes sentir o cheiro, reflectia Susy, que não conseguia, desde criança, resistir a certas experiências práticas. O cheiro era o mais importante para aquela situação: como é que deve ser o odor de quem se rebaixa ao ponto de ter de pedir? De facto aquele corpo caído sobre si atraía-a, talvez fosse a necessidade de lhe espreitar o rosto; um rosto tem sempre mais palavras que um nome próprio, reflectia a senhora Susy, que era uma das deputadas da Assembleia mais reconhecidas pelo seu profissionalismo extenuante.
Nos dois meses que Clopin ali esteve, Susy não atravessou a estrada, embora fosse essa a tentação; não analisou aquela mão, embora fosse essa a sua necessidade; mas também não recuou, apesar da vontade de se aproximar.
Um dia, ao regressar da Assembleia, a rua quase deserta deixou que uma respiração diferente frequentasse a coragem da senhora deputada. Susy decide atravessar a estrada, de perto o horror tem mais carne viva, pensa ela para si. Junto a Clopin, Susy decide não tirar dinheiro da sua carteira. Decide que a solução não está na riqueza nem na pobreza. Decide apenas segurar na mão que suporta o monte de moedas: amparo-lhe o peso, explica para si, o peso de ter de pedir. Clopin, instantaneamente, sente uma leveza. Abre os olhos, vê uma mulher bem vestida e cheia de jóias junto a si. Ela não diz uma palavra. Não acontecem nem perguntas nem respostas. Clopin está feliz, uns minutos de felicidade, é o que sente; uns minutos de felicidade por não estar a acontecer qualquer peso em qualquer parte do seu corpo. A senhora deve ser médica, observou o mendigo. Susy abana a cabeça, dizendo que «sim» apenas para não ter de revelar a sua voz. Clopin apercebe-se desse silêncio contagioso e pensa que talvez esteja enganado: algumas doenças não são tratadas pelos médicos, são tratadas por pessoas. Susy sorri para Clopin e vai-se embora. Clopin soube por momentos o que era não ter uma única dor, por isso levanta-se. Optimista, passa a estrada para o outro lado. Cá fora encontra um letreiro que diz precisa-se de um empregado de balcão. Entra no café, o seu aspecto provoca um desconforto no paladar dos utentes de vestidos compridos e de jóias nos dedos. Clopin tenta disfarçar e, perto de uma porta que dá para a cozinha, pede exaustivamente ao gerente do estabelecimento que lhe dêem uma oportunidade. O gerente pede ajuda aos empregados de balcão para lhe retirarem aquele mendigo sujo rapidamente. Foram precisos três homens para o retirarem dali – mas as forças, quando se tornam inúteis, só servem para atrasar ainda mais certas medidas. Clopin cai mesmo no chão, mesmo à frente da porta do café. Três senhoras muito parecidas passam por cima dele, uma delas pisa-o duas vezes de propósito por este lhe ter estragado o lanche. Clopin, exausto e com os olhos inchados do esforço, estica o braço e pergunta-se: estará hoje a chover ou a fazer sol?


autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 25 de março de 2009

vigésima primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Ignoramos a verdadeira grandeza do sorriso. Se alguém nos quer mal, afastamos os cantos da boca, submissos, e convencemo-nos que somos os principais discípulos da infelicidade; e depois, perante a instabilidade da conversa, ainda dizemos: desculpe, Senhor Windsor; desculpe se estou a incomodá-lo, mas ao que parece maltratou e abusou novamente da minha filha, e ela continua a jurar a pés juntos, que foi o Senhor o principal agressor. Depois ouvimos o silêncio e um rosto de incómodo como resposta, e o que nos resta é sairmos apressadamente: peço imensa desculpa, Senhor Windsor, espero não lhe ter feito perder o seu tempo precioso. Ao proferir «o seu tempo precioso» o sorriso ainda lá tem de estar. Os cabelos caem para a frente, porque a cabeça cai para a frente, de vergonha, obediente. Com a cara tapada não é preciso saber esconder as lágrimas: o sorriso desaparece, decidido a não voltar noutros momentos mais agradáveis. Fechamos a porta com grande pontaria, e na porta deixámos mais uma oportunidade de mostrarmos alguma dignidade. Um verdadeiro pai deveria lutar contra tudo e contra todos para amparar a sua filha da tortura.
De volta a casa, o frio é uma presença muito jovem. Cristhy, a mãe, dobra duas peças de roupa escuras: é para levares amanhã ao funeral. Olho para o quarto, a porta entreaberta deixa prever meia dúzia de velas e um corpo que reconheço como sendo “a minha menina”. Não aguentou, explicou-me Cristhy, a nossa filha não aguentou as feridas que a rasgaram por baixo. Outro sorriso atinge-me nestes momentos menos credíveis. O sorriso, arrastado pela desgraça, divide o que está entre um coveiro e a cova ainda por fazer. Cristhy apagou o lume do tacho e disse que já vinha. A faca que cortava as batatas e parte da casca permaneceu nas mãos de Cristhy. Em cima da mesa, a casca de metade de uma batata descascada.
Quando Cristhy chegou, já me tinha deitado, era muito tarde.
No dia seguinte, ao me levantar, recebi a notícia que o Senhor Windsor tinha sido morto com uma faca espetada num ouvido; lá dentro, dentro do ouvido do Senhor Windsor, o verdadeiro mistério confundia os familiares: como é que casca de batata pode ter sido encontrada no cérebro de tão distinta personagem?
Aqui tens o teu fato fúnebre, hoje terás o funeral da tua filha e do teu patrão para preparar. Peguei na pá, entrei no cemitério privado da família Windsor e, enquanto escavava o buraco daquele homem que costumava abusar da minha filha, um sorriso interessante colocou-se em posição de avançar, mas a dúvida manteve-se: seria aquilo, finalmente, um sorriso verdadeiro?


autor. rui almeida paiva

terça-feira, 24 de março de 2009

vigésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Era frequente ela abrir a sua janela ao mesmo tempo que ele abria a sua janela. Frente a frente, cada um fumava o seu cigarro evitando que o olhar se espalhasse na direcção um do outro; o fumo, por si, já utiliza esse mecanismo: o fumo dele misturava-se no fumo dela, e isso incomodava-os.
Um dia, a luz da noite reflectiu ironicamente aquele dióxido de carbono e aquela nicotina com uma clareza invulgar. Os raios lunares tocavam no fumo exactamente como costumavam tocar nos lagos mais calmos; a convicção, pelo menos, era a mesma, dizia a Lua.
Nesse dia ela abriu a janela já com o cigarro acesso, de imediato largou um enorme bafo para o centro da estrada. Ele, ao mesmo tempo, e sem ver que ela tinha chegado, lançou o seu último travo. Os dois fumos, vindos de direcções opostas, chocaram violentamente como sempre o faziam, criando, no espaço, a imagem de uma boca alegre. Assistíamos, então, a um fenómeno que desvendava uma ilusão perversa: o fenómeno do riso gasoso. Nesse momento de beleza improvável, os dois vizinhos, cada um na sua janela, decidem finalmente olhar-se – percebe-se um sorriso eficaz entre os dois desconhecidos. O fumo, no entanto, tinha subtilmente desaparecido do meio da estrada, enquanto o sorriso, que se pode denominar ingénuo, permanecia no corpo de quem estava à janela nesse dia.
Há vinte e três meses que ela ia fumar para a janela. Actualmente tem vinte e quatro anos.
Há seis meses que ele ia para a janela fumar. Actualmente tem dezoito anos.

Hoje, uma semana depois destes factos, uma das janelas deixou de se abrir. E o que é que aconteceu a estes dois jovens?, perguntamos nós. É fácil, explica-nos a Lua, que foi um dos principais culpados pela execução do fenómeno do sorriso gasoso: ele foi viver para a casa dela, os dois deixaram de fumar e, rapidamente, tornaram-se viciados pelo riso um para o outro.


autor: Rui Almeida Paiva

segunda-feira, 23 de março de 2009

décima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Nos prédios mais altos viviam os mais novos.
Um jovem gosta de viver com as ideias muito coladas ao cimo do Universo. Um jovem, no entender do mesmo, tem sempre razão, e será sempre invencível em qualquer confronto menos interessante. Só um jovem consegue ter uma série de convicções ousadas: não vale a pena perceber um metro quadrado de mundo quando se pode ter uma imagem distorcida de todo um continente, respondia, invariavelmente, cada um dos estudantes que ia para ali viver. A resposta era registada pelo Analista, um cargo importante preenchido por um professor de arquitectura. O Analista estava, por seu turno, encarregue de decidir algo de estrita importância para a formação daqueles seres de pele fresca: a sua habitação, onde iriam permanecer no seu tempo de formação – ou iriam para os andares mais rasteiros, ou para os andares mais aéreos; a decisão seria tomada ali mesmo, depois de preenchidos os formulários.
Era uma cidade cheia de alturas, uma cidade com três universidades construídas no tempo em que se deu início a um certo tipo de inteligência: a criatividade. A inovação aparece estritamente da criatividade, explicou um dia um dos mais importantes economistas, a criatividade é um tipo de inteligência que também se pode ensinar, e é nela que aparecem os países ricos, os países mais desenvolvidos. Nesse dia, o economista muito importante tinha, como plateia, os chefes de estado de muitos países subdesenvolvidos, um desses países anotou a frase ao canto de uma folha: «a criatividade é um tipo de inteligência que também se pode ensinar, e é nela que aparecem os países ricos.»
Passado um ano, o país subdesenvolvido estava preparado para uma nova aventura: uma cidade para novos estudantes, para formar inteligência criativa.
A cidade foi desenhada para se poder sonhar, explicava o analista, quando se despedia dos recém-chegados alunos. E a distribuição dos andares faz-se por número de sonhos, dizia ele ainda, quando sabia que já não seria ouvido por ninguém.
Se prefiro repousar num local onde tenha acesso a um metro quadrado de mundo, ou se prefiro repousar num local onde tenha acesso a quase um infinito de terra?, retorquiu Vincent, depois da pergunta do analista. Prefiro repousar no infinito, prefiro olhar para o mundo visto de cima, respondeu Vincent. Aqui está a tua chave, vais para o quadragésimo quarto andar, lá bem junto às nuvens, este é o teu lugar ideal para estudares. Lá terás todas as condições para analisares os teus sonhos, para provocares a tua criatividade a um outro nível.
Vincent saiu com pressa do gabinete do analista. A poucos metros encontrou o seu prédio, olhou-o: era tão alto que, obrigatoriamente, teve de exigir demasiada inclinação a dois músculos do pescoço. Vincent tentava chegar, cá de baixo, ao cimo do prédio – ver o seu fim, pelo menos. Se não consigo ver o topo do prédio aqui debaixo, será que conseguirei ver o chão quando lá estiver em cima? Uma boa pergunta, respondeu para si.
Ao chegar à porta do prédio, uma sensação cortante atingiu dois músculos do pescoço do recém-chegado aluno. Vincent tinha ficado com um torcicolo; conclusão: Vincent percebeu que não devia ter olhado para cima do prédio sem preparação.
Dentro do prédio, tudo parecia pequeno e estreito, depois chegou perto do elevador: um único elevador, disse para si, sem pensar nas consequências de tal afirmação. Carregou no botão para chamar rapidamente o único elevador; os efeitos das dores alastraram-se para o ombro direito. Só quero chegar ao meu quarto e deitar-me na minha caminha. O elevador não aparecia, o braço direito de Vincent começou, previsivelmente, a ficar também ele imobilizado: mas porque é que eu me pus a tentar olhar para o topo do prédio?
Quando o elevador chegou cá abaixo, tinham passado três longas horas, e todo o corpo de Vincent era uma única dor intermitente. Quando chegou ao quadragésimo quarto andar, entrou no seu quarto, mas eram tantas as dores, que optou por descansar antes de começar a estudar os seus novos manuais.
Vincent teve de permanecer deitado, as dores de dedos rudes e fortes prendiam os braços e as pernas do novo aluno que, sem muita resistência, se deixou adormecer. Ao acordar, Vincent estava como novo: estou pronto para dar início ao estudo dos meus sonhos. Vincent dirige-se à janela. Lá fora uma espaçosa varanda. Abre a janela. Um vento fresco e contaminado de pureza acariciava-lhe o rosto. Aproxima-se do limite da varanda. Olha lá para baixo e diz contente: estou numa posição privilegiada; estou numa altura tão elevada que nem consigo ver o chão. Vincent sobe ao parapeito da varanda e salta. O sonho de Vincent nunca esteve tão próximo: se lá debaixo eu não conseguia ver o topo do prédio, e se daqui de cima eu não conseguia ver o seu início, é porque se saltar nunca lá chegarei abaixo, pensou o recém-chegado aluno. Vincent tinha o sonho de um dia conseguir voar, por isso saltou do parapeito da varanda. Cinco segundos, foi o tempo máximo de voo conseguido pelo jovem Vincent. No entanto, mesmo antes de chegar ao chão, Vincent ainda pensou na pergunta do analista – ou um metro quadrado de terra, ou toda a extensão do mundo? – e admitiu: um metro quadrado de terra, sempre seria mais seguro.

autor: rui almeida paiva

domingo, 22 de março de 2009

décima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Avaliação final, soletrou o professor. Terão de encontrar a solução de algo que ainda esteja para ser encontrado no mundo. O tema do trabalho é livre. Como sempre, a escolha é vossa, necessitarão apenas de se concentrar em algo que seja fundamental para a formação dos vossos interesses. É estritamente obrigatório encontrarem uma explicação para o problema. Por isso repito, UM PROBLEMA QUE SEJA NECESSÁRIO PARA VOCÊS É O SUFICIENTE. Insisto ainda no seguinte, exclamou o professor: o conteúdo do trabalho, procurem-no por aí; eles esvoaçam, os problemas por resolver, esvoaçam aos milhares.
O professor senta-se, arruma dois lápis entre as folhas de um belo livro de um poeta francês.
Têm um dia para concluírem o estudo. Até amanhã. E boas ideias, finalizou o professor.
Os alunos levantam-se.
Amanhã à mesma hora e no mesmo local, acrescenta ainda o professor.
Vinte e cinco alunos de nove anos de idade estão de pé, em silêncio, fazem uma fila para sair da sala de aula.
Quando construírem vinte e cinco portas nesta sala – pensa Poulain, um dos alunos com mais cabelo – não teremos de nos organizar em fila: ganhamos tempo útil para gastá-lo em tempo inútil. Correr – pensa ele – correr num parque extenso e sem itinerário é ocupar o Tempo numa tarefa estupidamente inútil. Poulain olha para a porta, está quase na sua vez de a transpor. Dentro dele, dentro do menino com mais cabelo de toda a turma, uma contagem: setenta e quatro, setenta e cinco, setenta e seis ... são os segundos, explica, os segundos que aquela porta me está a fazer perder ... setenta e sete, setenta e oito, setenta e nove, oitenta. Poulain encontrou o seu problema para resolver; tira do bolso uma fita métrica: é o seu bloco de notas, já todos o sabiam. Poulain não sai da sala, desloca-se antes para o lado, ali está a sua ideia para o dia da avaliação; então começa, ali mesmo, a formar um sistema complexo de reflexão teórico. Uma única porta é um objecto eficaz de deitar Tempo para o lixo, desabafou ele em voz baixa, como se estivesse a revelar um segredo muito importante a si próprio, um segredo algo perigoso, acrescenta. Poulain estica a fita métrica, mede vinte e quatro vezes a porta. Começa, depois, a desenhar, uma a uma, as portas nas paredes, nas paredes de toda a sala: se não tiver espaço aqui em baixo, só me restará o tecto para concluir o trabalho. O tecto também é uma parede? questiona o aluno. Sim, também é uma parede, responde. Poulain não tem mais espaço cá em baixo, sobraram-lhe ainda duas portas. Poulain sobe a um escadote. Lá terei que desenhar duas portas no céu do conhecimento, exclama Poulain, tendo consciência, a partir da expressão poética «céu do conhecimento», que demonstra a gratidão que tem para com aquela sala: aqui estudo há quatro anos consecutivos, os melhores quatro anos da minha vida, acrescenta ele, que tem nove anos, e que está satisfeito com o que aprendeu naquele espaço.

Os restantes alunos, um a um, percorrem os corredores da escola com a convicção a acompanhá-los. É bom admirar uma criança pela sua inteligência, e todos os alunos, por esta altura, tentam seleccionar uma das muitas ideias que tiveram nos últimos minutos. Crianças que estão habituadas a exercitar o cérebro, justifica o professor de Educação Física, que é um dos melhores filósofos das capacidades motoras: um pensamento, para que seja consistente, tem de ser forte, rápido, flexível, resistente e ágil, e é disso que tratam as minhas aulas, é de melhorar as capacidades físicas dos músculos que conseguem fazer dos pensamentos umas verdadeiras cambalhotas.

Vinte e cinco alunos calados, espalhados pelo edifício da escola, cada um inicia o seu estudo com um método singular: exercitam pensamentos, todos eles, e isso é o que têm em comum: o prazer pelo exercício menos cansativo do corpo: pensar livremente.

Algumas células têm por nome neurónios, entre elas fluem informações estranhas, pensa Anne, quando encontra uma associação de ideias várias vezes escondida no seu cérebro. O caminho percorrido pelo neurónio A, até ao neurónio B, é realizado por uma sinapse, que é o meio de transporte mais frequentado pelos génios. «O meio de transporte das ideias foi desenhado por um criminoso», leu Anne, de um livro sobre a religião. Pode ser feia, a sinapse, mas tem cá uma velocidade!, esclarece a aluna. Anne percebe que encontrou o seu problema ainda sem solução: quantas sinapses são necessárias para carregar o Amor? A aluna encolhe-se, está no chão, e os joelhos tocam no seu peito esquelético – Anne é a menina mais magra da turma. Parece estar a sofrer, talvez seja gastroenterite, referem os professores, que se desviam da aluna. Mas não, Anne apenas se recorda de um momento da sua vida, do único momento em que realmente amou alguém. Se conseguir reconstruir aquele dia em que me apaixonei, conseguirei, com alguma certeza científica, fazer uma recolha preciosa do número de sinapses que foram necessárias para trazer o amor cá para dentro. Anne concentra-se num único momento: o beijo na boca. A língua. A língua avança em círculos e anda à procura. Está de olhos fechados, os lábios secos enrijecem, é altura de fazer a contagem das sinapses. O beijo termina, Anne já tem o seu resultado: catorze sinapses, diz para si, o Amor são catorze sinapses de desejo.

No dia seguinte, o professor entra na sala de aula com um outro livro debaixo do braço, desta vez traz um filósofo alemão. Os alunos entram, parecem cansados. O professor abre o livro e lê com uma voz doce e descansada: «Toda a criança nasce Poeta; nasce obrigatoriamente Poeta da Criatividade. Alguns, em adultos, se tiverem os estímulos diariamente actualizados durante o seu crescimento, serão Poetas da Biologia – o biólogo. Outros serão Poetas da Engenharia – o engenheiro. Outros serão Poetas das Palavras – o escritor.» Cinco minutos de leitura é o que está estipulado no programa curricular para começar uma aula. Passemos agora para a avaliação dos vossos trabalhos. Anne, entusiasmada com a sua última descoberta, dá um passo em frente: analisei a reacção química do amor no nosso cérebro, anunciou a menina mais magra da turma. Muito bem, Anne, o cérebro é que nos interessa, o Grande Músculo em investigação, exclamou o professor, entusiasmado. A aluna decide, então, escrever no quadro o seu resultado: «O Amor são catorze sinapses de desejo». É imprescindível encontrar catorze sinapses disponíveis para transportar o amor para dentro daquilo que sentimos, é esta a conclusão que vos trago aqui hoje. O professor, sorridente, passa a admirar esta aluna de ossos salientes e de costas curvadas.
No final da aula todos reparam que Poulain ainda não foi avaliado. Poulain, é a tua vez, diz o professor. É a tua vez, não ouviste?, repete. Poulain faz sinal de silêncio com a mão direita: pede para que tenham um pouco mais de paciência. Como um raio, o som da campainha entra dentro da sala anunciando o final da aula. Poulain dirige-se para a porta, num interruptor acende as luzes. Por todo o lado estão novas portas. Vinte e cinco portas, anuncia o aluno, e cada um de nós ganhará oitenta segundos da sua vida de cada vez que aqui entrar. E é isso que tenho para oferecer no presente dia: uma máquina de ganhar Tempo, Tempo Útil. Entusiasmados, os colegas de Poulain correm para as diferentes portas, desejosos de experimentar aquela nova máquina. Contudo, Poulain esqueceu-se das duas portas presas no tecto. Anne olha para Poulain, tem vários aspectos da sua sensibilidade a circular: catorze sinapses de desejo, pensa para si. Poulain avalia a distância entre o seu corpo e a saída construída no tecto: é impossível chegar ali, conclui, desiludido. Anne oferece a sua mão a Poulain. Estão de mãos dadas e o calor absorve-os por dentro. Sem repararem, chegam perto do tecto. Mesmo à sua frente, as duas portas do conhecimento tornam-se reais. Abrem-nas ao mesmo tempo. No outro lado, Anne e Poulain encontram apenas o céu. Decidem continuar caminho.



autor:rui almeida paiva

quinta-feira, 19 de março de 2009

décima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Quem vivia naquela quinta maior que a aldeia de Aurore – a aldeia mais próxima de todo aquele país imenso de nada – era Bosco, um atleta das grandes provas dos sistemas numéricos – o único e mais famoso matemático daquela Nação.
Um dia, quando Bosco ainda era jovem, o Presidente daquele país desértico e sem ninguém veio até à sua quinta com uma boa proposta. Doutor Bosco, gostaria que encontrasse uma fórmula que multiplique a vida do nosso país.
O que está a pensar fazer, senhor Presidente?, questionou o famoso matemático.
Estou a pensar num país cheio de cidades movimentadas, de homens e mulheres que se apaixonem, de trabalhadores dedicados, de crianças a jogar xadrez, de museus construídos para tapar as grandes obras desta nova civilização moderna.
Bosco sentou-se no seu grande cadeirão: parecia apreensivo. Inclinou depois o peito para trás; os dedos das mãos do matemático dançavam uns nos outros, provocando um tipo de sono anestesiante. O Presidente cerrou os dentes para não adormecer: dedos muitos verbais, pensou o visitante, devem fervilhar de métodos algébricos. Eu chamar-lhes-ia simpáticos, ouviu o Presidente, de uma voz dentro da sua cabeça em tudo idêntica à do consagrado matemático, dedos muito simpáticos, ainda acrescentou a voz. Assustado, o Presidente engoliu dois travos de saliva porque os ouvidos zumbiam do nervosismo, então decidiu concluir algo que o acalmasse: todos temos dois tipos de audição, a audição exterior, que é amplificada por um tipo de órgão visível, o ouvido; e a audição interior, que é amplificada por um tipo de órgão invisível, a loucura. E eis a causa destas vozes estranhas: a loucura, desabafou o Presidente para si, sem se aperceber do que tinha meditado.
O silêncio entre os dois intervenientes manteve-se por mais uma boa meia hora. Bosco analisava os seus livros com todos os sentidos que possuía: olhou para eles, tocou neles, lambeu-os, cheirou-os, e ouviu-os. Só assim saberei se posso contar com os meus queridos livros, justificou Bosco, ao se aperceber do ar confuso do Presidente. Só assim consigo compreender se tenho material suficiente para um estudo tão difícil como este que me veio aqui propor hoje. Bosco tossiu depois de lamber um dos seus mais antigos manuais de Geometria, dando, desta forma, tempo para concluir o que ia para dizer: posso-lhe apenas adiantar formalmente que a sua proposta é impossível de realizar, explicou Bosco, enquanto levantava meia dúzia de livros escondidos entre a desarrumação dispersa por tudo o que era sítio: uma desarrumação intelectual, verificava o Presidente. Mas também lhe posso adiantar outra premissa, disse Bosco, com os traços mais curvados para dentro, especialmente as linhas da testa, a sua proposta é apenas matematicamente impossível, mas poeticamente possível. E eu, senhor Presidente, eu não sou matemático, eu sou apenas um poeta dos números, explicou Bosco, antes de começar a resolver equações com grande rigor de complexidade. Primeiro começarei por uma pequena aldeia, só depois me aventurarei para outras dimensões, para as cidades, sentenciou o Poeta dos Números. A primeira obra de um ser humano com sucesso é tentar ser pequeno quando ainda não tem tamanho para ser grande; uma aldeia, senhor Presidente, é o que lhe posso prometer para já.
O Presidente, satisfeito, saiu da quinta do matemático sem o cumprimentar; não por falta de educação, que não é o caso deste Presidente, mas sim por falta de correspondência na simpatia; é que Bosco – na altura em que se devia ter despedido – já resolvia problemas numéricos demasiado confusos e demasiado cativantes para ouvir o seu exterior. Espero encontrá-lo brevemente, ainda anunciou o Presidente, mesmo junto ao seu ouvido, esperarei pelos seus resultados ansiosamente; mas nem uma reacção vinda do lado de lá. A matemática corria nas mãos daquele homem como as pernas correm em cima de um grande velocista. Se o víssemos de fora, contou mais tarde o Presidente aos povos dos países vizinhos, confundiríamos o senhor Bosco com um poeta. Só um escritor tem aquele fascínio por escrever ininterruptamente. Mas se nos chegássemos a ele como eu me cheguei, facilmente perceberíamos que aquele homem era um poeta diferente: era um poeta das propriedades aritméticas. Eram números, em vez de rimas emparelhadas, aquilo que ele escrevia; eram rimas exactas de um abecedário que explicava as soluções linguísticas.

Bosco tinha-se preparado devidamente durante parte da sua vida para um desafio como aquele. É mais magia que sabedoria, avançava ele, quando fazia uma pausa no seu trabalho de construtor de países. E ele sabia melhor que ninguém que, a partir das suas equações resolvidas, algures ali perto nascia um objecto. Uma lanterna, pensava ele, uma lanterna deve fazer falta na única rua da aldeia. E assim passava dias inteiros para explicar como os números e as fórmulas estranhas eram capazes de fornecer vida aos objectos; como era possível, a partir dos seus métodos estranhamente poéticos, ocupar o espaço com matéria real. Depois a equação era resolvida, e a lanterna, nesse momento, surgia na aldeia, que já estava quase toda construída. Mas ainda faltavam os habitantes, os novos habitantes daquele local, que também seriam os novos habitantes daquele país para além de Bosco e do Presidente.
Nesta criação, Bosco perdeu quase dois anos da sua vida em frente dos livros e dos cadernos rasurados de uma rara semântica matemática – metalinguagem, chamaram-lhe alguns mais tarde, os menos criativos – e no final desses dois anos, o resultado final apareceu na forma de uma mulher lindíssima por quem Bosco se apaixonou imediatamente. Aurore, era o que diziam os números, no final da equação, e assim seria o seu nome.
Claro que hoje em dia Bosco entra dentro do escritório e apenas vê livros mortos. Os livros fechados não servem para nada, constata o Poeta dos Números, agora quase tão velho como o exagerado peso. Bosco transporta-se demoradamente e com dificuldades, está na hora de mais uma visita ao seu escritório. Tem oitenta e seis anos, e poucos são os pensamentos brilhantes que lhe restam. Abre a porta do escritório. Lá dentro, sente-se na pele de um pai que visita a campa do seu filho. Aqui está toda a minha vida, diz Bosco, enquanto repara em cada livro em cima de outro livro. Cada caderno ao lado de todos os outros cadernos. Cada livro fechado como uma campa fechada ao lado de outra campa também ela fechada. Aqui está a minha vida, um monte de livros mortos, denunciou Bosco, enquanto pensava para si em cada cálculo de Aurore, a mulher que nunca chegou a conhecer.


Autor: Rui Almeida Paiva

quarta-feira, 18 de março de 2009

décima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Toda a minha estrutura intelectual encontra-se dentro da mochila, era no que pensava Anne, que, deitada, utilizava esse objecto de transportar sabedoria, para uma finalidade menos aproveitada pela Grande História das Novas Civilizações: aqui está a minha almofada, a almofada do conhecimento, avançou Anne, a olhar para a sua mochila bem redonda.
Um parque relvado quase vazio acolhia a pequena e frágil estrutura da menina Anne. A relva está fresca. Ainda é cedo para nos encostarmos ao mundo. Mas eu gosto dele ainda pequeno, a nascer; a nascer do meu tamanho. Anne deita-se, coloca a mochila debaixo da cabeça: é nestas almofadas que os cientistas adormecem. Anne não adormece, pensa de olhos abertos.
Por baixo de uma árvore, Anne reflecte muito livremente. Dois ramos tapam a geometria do Sol. Anne acende um cigarro. Um grande cigarro que se ocupa de quase todos os seus dedos. Toda a minha estrutura intelectual encontra-se dentro da minha mochila, reflecte novamente para si, enquanto ajeita a cabeça. O cigarro é apenas a beleza, e é do fumo que lhe vem toda esta graciosidade: da morte, das cinzas. O fumo passa à frente dos olhos de Anne, deixando-a perplexa: um espectáculo de dança, é o que acredita estar a assistir. Apetece-lhe sorrir de satisfação, de felicidade. Sente-se bem, está confortável. É bom viver, assim vale a pena.
Com o avançar do tempo, o Sol começa a aparecer lateralmente: os dois ramos já não são suficientes. Aquele é o sinal: está na hora de partir. Na escola, está quase a começar o primeiro intervalo. Aquele sim, é o verdadeiro espaço onde se aprende qualquer coisa, costumava dizer Anne à sua mãe, quando falava sobre a escola.
Anne tinha faltado à primeira aula do dia para se deitar na relva; tinha faltado à aula de Biologia. Anne levanta-se. Coloca a mochila nas costas e sai da sua aula privada satisfeita com o que aprendeu. Agora, com a mochila às costas, Anne sabe que toda a sabedoria que lá estava dentro desapareceu. A sabedoria dos meus livros só me é útil quando posso repousar neles a zona onde se encontra toda a inteligência que tenho: a cabeça. Ou não será esse o verdadeiro significado para compreender o universo? saber como encostar a cabeça nos livros.

autor: rui almeida paiva

terça-feira, 17 de março de 2009

décima quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Karl está prestes a chegar à sala de aula, está atrasado. Tem o rosto escuro e sonolento. Abre a porta. Entra. Empurra o objecto porta para trás, com preguiça: o barulho é superior ao silêncio: TRÁS, diz a porta. Senta-se no seu lugar. O ambiente é propício para dormir mais um pouco. Karl levanta o braço direito: professora, posso passar pelo mapa do meu sonho? Karl está numa aula de Geografia. Debruça-se sobre a página dezasseis, a bochecha direita sobre a folha fria. Adormece. No sonho, Karl está num espaço sinuoso, está numa fenda tectónica, e quase cai, está no limite das suas forças, contudo a tentação é maior que a obrigação: olha lá para baixo; sente-se tão alto que nem vê o final da sua queda. Nesse exacto momento Karl salta da cadeira sobressaltado e, assustado, olha para a professora de Geografia, que fala sobre um certo país visto de cima. Karl lembra-se do sonho, tremem-lhe os joelhos: as vertigens não me deixam adquirir certos conhecimentos, afirma Karl, enquanto segura com força as duas rótulas. Olha novamente para o livro ainda com o coração aos pulos: ali já não existiam saberes que o motivassem, o medo tinha bloqueado a iniciativa de aprender naquele espaço de papel. Rapidamente passa para a página vinte e dois. No topo, o título da nova matéria. Vulcões, diz ele para si, a sussurrar. Karl pensa em levantar o braço direito para fazer de novo a mesma pergunta à sua professora, não o faz. Coloca as duas mãos no queixo, aborrecido, e pensa em algo enquanto olha para a nova matéria curricular. VULCÕES, é o que lá está escrito. Aqui é que não me apanham a dormir, reflecte Karl, irritado com a monotonia. Certas disciplinas obrigam-nos a arriscar a vida demasiadas vezes; uma falta de consideração, é o que eu vos digo, uma falta de consideração pelos direitos e pela segurança dos estudantes exigentes.


Autor: Rui Almeida Paiva

segunda-feira, 16 de março de 2009

décima quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

O pianista, de um lado da rua, não podia ser identificado: o piano é um instrumento difícil de colocar debaixo do braço.
A violoncelista, do outro lado da rua, podia ser confundida com uma escritora ou com uma jornalista: o violoncelo era algo que servia, prioritariamente, para ser utilizado sempre no mesmo sítio devido ao seu peso exagerado.
Os dois, quando passaram a estrada, cruzaram-se. Ele cantarolava a trigésima quinta sinfonia de Mozart. Ela assobiava a mesma sinfonia de Mozart. Os dois, por instantes, olharam-se, mas estavam no meio da estrada, e os acidentes, naquele local específico, poderiam tornar-se desagradáveis principalmente para os ossos.
O pianista estava com pressa, ia para um concerto. A violoncelista não tinha nada para fazer, vinha de um concerto.
O pianista sabia que não tinha tempo a perder, teria de ser breve. Voltou para trás em passos largos. Atravessou de novo a estrada. A decisão está tomada, repetiu ele para si, enquanto o seu corpo se chegava ao corpo da violoncelista.
Com uma mão, ele agarrou-lhe o braço. Ela assustou-se. Os dois cantavam um segredo íntimo, um segredo quase corporal. Das suas bocas, a trigésima quinta sinfonia de Mozart era o que tinham em comum.
Ela convidou-o para irem para casa dela porque vinha de um concerto e não tinha nada para fazer. Ele aceitou ir para casa dela porque tinha um concerto muito importante que estava disposto a abdicar. Ela sentia-se leve porque tinha tocado duas horas seguidas para quatrocentas pessoas. Ele sentia-se pesado porque sabia que tinha quatrocentas pessoas à sua espera para o ouvirem tocar.
Quando o pianista se deitou na cama da violoncelista, sentiu o verdadeiro intervalo existente entre duas notas musicais, e então disse: é o silêncio. A violoncelista, em cima do pianista, estava toda nua. Os dedos do pianista tocavam uma nova melodia: a melodia da carne. Os dedos da violoncelista eram dessa carne que era melodia.
O pénis do pianista tinha finalmente entrado dentro da vagina da violoncelista. A trigésima quinta sinfonia de Mozart foi o que se pôde ouvir durante todo o acto.
No final ele disse: talvez te tenha engravidado. Ela, repousando sobre o tronco do pianista, ouvia o seu coração acelerado e, em pensamentos, desfrutava da sua pele nua. Talvez seja este o primeiro dia em que somos pais, acrescentou ela, com uma voz vaga e sonhadora enquanto massajava a própria barriga.


Autor: Rui Almeida Paiva

domingo, 15 de março de 2009

décima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

A barriga cresceu tanto que poderiam existir quatro crianças lá dentro. O pai e a mãe, por decisão de ordem Ética para com a Natureza Animal, não quiseram saber o sexo do seu primeiro filho: existem surpresas de ordem natural e surpresas de ordem artificial, disse o pai, e esta, a de sabermos se vamos ter uma menina ou um menino, é uma surpresa natural. É também uma surpresa dinâmica, acrescentou a mãe, porque, para além de ser um presente em mudança, visto manter um crescimento constante ao longo do tempo, tem também uma outra característica importante: sou o seu embrulho.
No dia do parto, o marido disse: hoje a curiosidade aumentou mais em tamanho do que a barriga nos últimos nove meses.
O filho, felizmente, nasceu saudável: quase quatro quilos de peso, mas muito cansado do esforço de cinquenta e seis horas para conseguir passar pelo intervalo da sua mãe, e talvez fosse essa a razão para ainda não ter despertado. Quanto ao casal, passavam momentos muito felizes juntos, a contemplar aquele corpo perfeito de olhos fechados. Passados dois dias, levaram o recém-nascido para casa; como o recém-nascido ainda dormia, decidiram, por conveniência, não acordá-lo – o pequeno ainda soluçava do esforço que tinha feito para nascer – e àqueles pais foi-lhes ensinado imediatamente o essencial: não se esqueçam que o ritmo da criança deve ser respeitado religiosamente.
A alimentação, que podia ser um dos problemas para quem não acorda, estava resolvida: de três em três horas a mãe aproximava o seu seio da boca do seu filho e ele mamava vinte minutos seguidos, sempre a dormir. Arrotava, posteriormente. E defecava quando passavam duas horas da refeição ter sido ingerida.
Quando a criança fez seis anos, os seus pais depararam-se com um novo problema: e agora como é que vamos fazer?, se não o acordarmos, perderá o primeiro dia de aulas.
Era dia um de Outubro, o rapaz entrou no carro ao colo do pai; os soluços já tinham passado, mas os suspiros não: talvez ainda demore mais algum tempo a recuperar completamente do nascimento. Ao entrar na sala de aula, ao colo do pai, a mãe do miúdo foi explicar a situação à professora. O casal lá pôde ficar a assistir à aula, mas só naquele dia, aconselhou a professora.
Aos nove anos de idade, na sala de aula, uma cama confortável tinha sido construída lá ao fundo, onde apenas raramente um ou dois alunos teriam de permanecer virados para a parede, sob ordens de castigo. Era óbvio que, com o passar dos anos, já ninguém se lembrava do miúdo que lá dormia, já ninguém reparava na sua presença – o silêncio, quando em exagero, leva-nos à capacidade de passarmos despercebidos.
Naquela altura do ano, aproximava-se o exame da quarta classe e, sem este exame, o rapaz não poderia prosseguir os seus estudos. Os pais, preocupados, sabiam que o seu filho tinha parado de suspirar enquanto dormia, agora virava-se para os lados para encontrar melhores posições de descanso, e proferia alguns sons parecidos a uma estrutura verbal que surgia, muito escassamente, do interior do seu ressonar suave. Sons de quem está quase a acordar, explicava a mãe, a sussurrar, para não o despertar daquele sono revitalizante: ainda deve estar cansadinho, o meu menino, e com razão: nascer exige muito dos bebés, é uma violência, um esforço sobre-humano.
No dia do exame da quarta classe, Grace, a menina que passou directamente do primeiro para o último ano deste ciclo de ensino, devido ao seu estado avançado de maturação intelectual, apercebeu-se de que não era comum existir uma cama dentro de uma sala onde coabitavam alunos e professores; mas achou uma excelente ideia e, como apenas demorou dez minutos a realizar o exame, olhou para a cama e pensou: ora ali está uma boa actividade para repousar o resto do tempo. Quando se deitou na cama, percebeu que não estava sozinha: deve ser mais um dos que achou o exame demasiado simples. Intrigada, não aguentou as dúvidas que atacavam a sua curiosidade: Grace, num impulso, inclinou-se na direcção do ouvido do menino para lhe perguntar o nome. O menino acordou imediatamente com a voz exigente de Grace, abrindo os olhos pela primeira vez. Nesse instante, ouviu-se um choro agressivo a inundar todos os que estavam presentes. Era um choro estridente, e vinha da cama. O que é que se passa aí?, perguntou a professora, quando se apercebeu de que um menino, de nove anos de idade, estava sentado na cabeceira da cama, a lacrimejar de pânico. Quem és tu?, prosseguiu a professora, esquecida da situação do pobre rapaz sonolento. Não ouviste, eu perguntei-te o nome? O rapaz, com um aspecto obviamente abatido, encarou a professora com um olhar tímido e disse: DADADA, GU GU, DA DA, DADADAGUGUDADA.


Autor: Rui Almeida Paiva

sábado, 14 de março de 2009

décima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Uma mulher que costuma brincar muito com o destino, acaba, a maior parte das vezes, com um filho nos braços.

Hoje Marie fez algo de diferente: perdeu um filho.
Marie decide, então, depois de uma breve reflexão, procurar parte da infância.

Marie chega cansada: os seus primeiros anos de vida tinham-se distanciado do seu corpo como um cavalo que sobrevive cheio de feridas. Pela sua infância tinha passado uma Guerra na qual tinha sobrevivido com mais feridas invisíveis do que com feridas que se podem mostrar. Marie não podia chegar ao juiz e baixar as calças para dizer: fui violada. O corpo de Marie estava apenas um pouco arranhado: ninguém é violado por ter pequenas feridas nas costas e por ter pequenas feridas no rosto, diria o juiz e a população que conhecia aquela criança de vista. A ferida, neste caso, está escondida na vagina, anunciaria Marie, se pudesse explorar o espaço concreto da verdade. Marie tinha sobrevivido a uma guerra também ela invisível; uma guerra onde as armas metálicas eram os braços de um homem, e onde as bombas feitas de chumbo eram feitas de uma saliva que caía no seu rosto como se fossem um conjunto de bombas feitas de chumbo; caíam pingos pesados de saliva no seu território parado e desprotegido onde, lá dentro, o seu cérebro tentava fugir para outro local menos escuro. Marie em criança tinha sido um soldado sem armadura e as únicas lindas espadas que poderia utilizar estavam já presas no seu coração de soldado. Tinha sido um soldado abusado pelos gestos agressivos, pelas palavras feias, e pelas vozes aos gritos: nada de visível, diria o senhor Juiz.
Hoje, Marie fez algo de diferente: perdeu um filho, e esse foi o motivo para querer andar durante várias horas seguidas, tal e qual como fazia quando era uma menina. Chegou a um areal, percorreu-o, descalçou-se: tinha chegado perto do mar. Tinha chegado, finalmente, a uma parte feliz da sua memória. Para aquela menina a praia começava na água, e a areia, que era onde tudo acabava, fazia apenas parte de um instrumento emprestado: o mundo.
Hoje Marie é uma mulher adulta que se descalça apenas quando passa alguém verdadeiramente importante. Marie, à frente do mar, vê uma onda verdadeiramente importante a passar, descalça-se, entra dentro de água, e os dedos dos pés, vistos lá de cima, parecem-lhe dez segredos importantes: dez segredos demorados, reflecte ela para si.
Hoje, já mulher, Marie quer ficar a conhecer melhor a sua Praia Feita de Água Salgada, porque se encontra numa zona feliz da sua memória. Avança, tira a saia e a camisola. Está nua. Ali Marie sente que a Guerra não funciona. Dentro de água não existe a saliva dos homens armados, existe apenas a saliva dos Peixes Pensadores – murmurou ela com todos os membros quase submersos – e é por isso que o mar é salgado.
Hoje Marie descalçou-se e tirou toda a roupa, porque já lhe fazia impressão ter ossos fora da pele e porque a roupa eram esses ossos que já não funcionavam no seu corpo de mulher. Marie sentia-se verdadeiramente nua pela primeira vez. Os Peixes Pensadores não têm a maldade dos Homens Vestidos – explicava ela no momento em que a água lhe chegou ao queixo – os Peixes Pensadores não compreendem a dificuldade que uma mulher tem em esconder as feridas das pernas e do pescoço. Marie começa então a pensar, enquanto mergulha a cabeça, que nem com roupa se consegue tapar as feridas da alma. E nesse preciso momento, já a bater as pernas na direcção do fundo do mar, olha-se, e apercebe-se que é novamente criança e que o seu corpo nada ao lado dos grandes Peixes Pensadores.
No entanto, dentro da sua alma, Marie tinha perdido um filho hoje.


autor: Rui Almeida Paiva

sexta-feira, 13 de março de 2009

décima primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Bati à porta três vezes. Esperei. O frio atingia-me os pés. Voltei a bater à porta. As luzes continuavam acesas e nem um som que me pudesse indicar a presença do senhor Marx, o filósofo da cidade.
Bati à porta mais três vezes, mas agora com a ajuda da Bengala dos Pensadores. Era assim que nos distinguíamos na rua: os que usam bengala e os que não usam bengala. Quem usa bengala para embelezar o andar nem sempre é coxo, e quem é coxo nem sempre utiliza uma bengala bela – explicava Marx, anos atrás, quando se cruzava com aqueles novatos de bengalas de marfim esculpidas pacientemente com pincéis de lã; tentando, estes novatos pretensiosos, mostrar alguma sabedoria ridícula a partir de um apetrecho – a bengala – que não lhes era útil. A distinção está no cérebro e não na aparência – continuava Marx, agora a falar para todos os cidadãos que o cumprimentavam respeitosamente. – E como o pensamento é algo que não se vê, temos, sem combinarmos entre nós, que arranjar um aspecto visivelmente perturbador para nos distinguirmos da restante população. O pobre distingue-se pelo cheiro, declamava o filósofo à cidade. Os ricos distinguem-se pela falta de cheiro. Os ladrões distinguem-se pelas mãos muito bem compostas, mas escuras nas unhas. Os trabalhadores distinguem-se pela pele dura dos dedos e pelo sangue pisado dos braços. Os infiéis distinguem-se pelo olhar atrevido. Os fiéis distinguem-se pela cegueira. E aos Pensadores, a nós ninguém nos distingue dos Burros? Faltamos nós – explicou Marx numa das suas palestras diárias.
Passado uma semana de reflexão, a população apareceu em peso: o filósofo já deveria ter a solução do problema – a característica exterior que distinguisse um Homem inteligente de um Homem estúpido. Marx subiu ao palanque, imperativo. Começou a discursar com altivez e afinco: aquilo que nos distinguirá dos Burros é a... E antes de continuar a palestra, percebeu que alguém entre a multidão abriu o jornal ao contrário. Marx inclinou a cabeça para o lado direito, exactamente como se estivesse interessado em perceber qual seria a pertinência de ler um jornal de pernas para o ar.
No dia seguinte, quando Marx saiu de casa, estava quase tudo estranhamente a passear com a cabeça inclinada para o lado. Ao se aperceber da situação que ele próprio tinha originado, Marx resolveu subir, com a cabeça inclinada para a direita, os cinco degraus que davam acesso ao palanque e, de lá, anunciou uma reflexão vinda das distensões e das contusões: para bem dos torcicolos, que são a sala de espera para todas as restantes dores desconfortáveis, e para bem das notícias do jornal, que vistas de lado tornam-se rapidamente em notícias de amor em vez de revelarem as verdadeiras notícias trágicas (o que é inadmissível para a verdade das palavras e para a imprensa que procura informar a verdade dos factos; pois um jornal sem mortos na capa é, com toda a certeza, mais chato que um ensaio sobre os Princípios do Idealismo Panteísta). E isso todos nós sabemos desde crianças. Pensar dá mais trabalho que tratar correctamente de um torcicolo, e agora vocês é que escolhem: ou tratam do torcicolo, ou tratam da burrice. Marx, levemente, endireitou a cabeça, mas ao descer o primeiro degrau do palanque, apareceu-lhe no corpo uma ideia muito pouco anatómica que o fez tropeçar. Marx caiu de imediato sem salvação possível. Tinha tropeçado numa ideia apenas cerebral. A consequência foi bastante desagradável: a partir daquele dia teve de usar, também ele, um torcicolo no pescoço e uma bengala na mão.


Autor: Rui Almeida Paiva

quinta-feira, 12 de março de 2009

décima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Existem mulheres lentas e mulheres rápidas. As mulheres lentas estão adiantadas na beleza. E as mulheres rápidas estão muito atrasadas na beleza.

Uma mulher lenta chega primeiro ao desejo de um homem. E uma mulher apressada não chega a tempo de ser vista com atenção: é uma mulher indefinida nas formas.

Existem mulheres magras e mulheres gordas, mulheres altas e mulheres baixas, mulheres de cabelo curto e mulheres de cabelo comprido, mulheres velhas e mulheres novas, e ainda mulheres que se parecem com mulheres.
A essas, principalmente, – às mulheres que se parecem com mulheres e que não se parecem com homens – chego a uma resposta apenas com um ponto de vista:
Uma mulher sem roupa, ou a despir-se, é sempre uma mulher nua.
E aqui não existem dúvidas em relação ao estudo exigente a que me propus:
Uma mulher, a despir-se lentamente, chega sempre adiantada à nudez, conservando, assim, a beleza durante muitos mais anos; é um corpo cheio de sítios importantes onde se pode descansar, onde se pode esperar pela hora de almoço, onde se pode partilhar alguns esconderijos mais didácticos, onde se pode colocar o dedo que costuma ser útil na leitura dos mapas das grandes cidades. Isto sim, é o corpo feminino que merece a minha atenção. Nele posso repousar o meu corpo à vontade, lentamente, lentamente, lentamente...

O veredicto que vos acabei de anunciar ocorreu a partir de um estudo que realizei da janela do meu quarto. Foi daí que vi o corpo feminino a quem dedico o poema lento que se segue. No entanto, um aviso torna-se urgente: este poema está cheio de definições sérias e científicas que nunca se aproximarão da beleza exacta de qualquer uma das partes anatómicas do corpo feminino. Sendo, por isso, um poema masculino.


Era Inverno e a praia era uma chuva pouco desenhada
onde as ondas pareciam não quebrar no mar
mas sim em terra
Depois apareceu uma mulher pela primeira vez através da janela do meu quarto
Uma mulher que ocupava cada passo combinado com a Terra
ELA VEM AÍ, dizia a terra, antes do pé tomar a forma da areia húmida
ELA VEM AÍ, e outro passo acontecia com uma certa importância para o planeta
Contei vinte e seis passos importantes que ficaram marcados
Vinte e seis vezes o planeta disse ELA VEM AÍ para aconchegar cada metro no seu corpo
Ela, naquele momento, era um animal lento que se confundia com a paisagem selvagem
Ela era um animal perigoso e não era peixe e que mesmo assim seguia na direcção do mar
Então aquilo é que é um animal perigoso? indaguei eu através de algumas associações literárias
Aquilo é uma mulher vestida no corpo e nua nos pés, respondeu a minha consciência
E nesse momento percebi que os meus olhos estavam prestes a nascer: e isso é estar nu por todo o lado
Os meus olhos tinham-se enchido de desejos obedientes e tinham-se esvaziado dos raciocínios elaborados: também eu me tinha tornado um animal que não era peixe e que mesmo assim seguia na direcção do mar.

Autor: Rui Almeida Paiva

quarta-feira, 11 de março de 2009

nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Debaixo do menino, uma quantidade de objectos coloridos entravam numa tempestade caótica: objectos livres, verificava o menino, quando definia aquela confusão de livros que repousavam à sua frente.
Quantos livros tens exactamente?, perguntavam-lhe os enfermeiros, quando passavam por ele. Quatro, respondia-lhe o menino, tenho quatro livros livres. O menino, inocentemente, pensava que o número quatro, foneticamente, correspondia ao número maior possível: é aquele que atinge os limites das quantidades. Quatro é o número imediatamente anterior ao infinito, concluía o menino para si, satisfeito com a sua interpretação literária da numeração. Embora o menino ainda não pudesse anunciar esta descoberta ao Mundo (a descoberta do Número Quatro) porque ainda não conhecia as regras da matemática, algo de sobrenatural voltava a confirmar a sua teimosia: tenho a teimosia dos pressentimentos, e isso basta-me.
Só um dos enfermeiros tinha autorização para abrir os objectos livres do menino e de lê-los ininterruptamente. Apenas alguns estão à altura de exercer magia, e estes são escolhidos por estaturas. O enfermeiro mais baixo seria o mais indicado: é estritamente obrigatório não ter vertigens quando se abre um livro; é, também, muito saudável ter as mãos junto aos pés quando se tem o privilégio de tocar em páginas que podem desequilibrar.
O menino, quando não tinha nenhum enfermeiro de estatura baixa por perto, praticava outras funções ditas livres: abria, ele próprio, um dos seus quatro livros e, delicadamente, ia desenhando letra a letra o que lá estava escrito, passando tudo para o seu caderno. Nestas letras, o menino, que não sabia ler uma única palavra completa, percebia uma outra invenção só sua: a teimosia das letras infinitas. São apenas desenhos estas letras, explicava o menino, desenhos com histórias muito livres, murmurava ele depois, enquanto desenhava um “d” que afinal, para si, era um novo castelo onde habitavam cem dinossauros vestidos com armaduras de ferro.

autor: rui almeida paiva

terça-feira, 10 de março de 2009

oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

René era um miúdo com pouca idade: sete anos. A sua estrutura óssea era frágil e de poucas distâncias. Por exemplo, a distância entre o pé e o cóccix, de seu nome perna, era uma componente celular demasiado estreita e demasiado curta de onde se distinguiam apenas dois enormes pés, que, vistos de longe, não hesitaria em classificar como sendo dois pedaços sólidos indesejáveis que desafiavam os limites da natureza. Por outro lado, a distância entre a primeira vértebra cervical e a última vértebra lombar, considerada por muitos a base de todo o sistema esquelético, era formada não por ossos, mas por algo gelatinoso que fazia lembrar plasticina. Por isso é que quando René decidia andar dava um passo de cada vez, porque o seu corpo parecia transformar-se num réptil comprido e porque os seus braços eram duas cordas maleáveis que receavam dar um nó uma na outra. O próprio René, sem querer, quando decidia avançar com as suas quase invisíveis pernas, transformava-se numa grande quantidade de movimentos flutuantes e circulares onde cada passo era considerado por si, um desafio da Estratégia Muscular e um desafio dos Desenhos Anatómicos do Espaço. Aqui vai um pé, dizia René, quando queria sair da cama para se levantar. E o pé, quando caía, sem que ele desse por isso, transformava-se num estrondo que se entranhava nos lugares sossegados e nos lugares distraídos da sua grande casa. Depois René tinha de se empoleirar de novo na sua grande cama, porque só aguentava com um pé de cada vez. Aqui vai o outro pé, dizia René de novo, como se fosse necessário avisar o chão de que existia uma substância pouco ética, mas muito invisível, a que ele tinha dado o nome de Queda. Uma Queda é sempre uma fórmula num peso inesperado, dizia René para dentro dos seus pensamentos mais profundos. Uma Queda é parte da fórmula utilizada por Deus para criar a dor. Com essa ideia ainda a circular no seu cérebro e já com os pés poisados no chão liso do quarto, o pequeno menino começava então o seu percurso diário: ir da cama do seu quarto até à janela do seu quarto. Cinco passos bastavam. Cinco passos certos em metros que demoravam cinco horas certas em tempo. E eram assim os seus dias. Acordar. Lançar os pés para o chão. E ir até à janela para ver o lado exterior do mundo. Para ver o rio. O Grande Rio que dividia as duas margens e que dividia os seus dois olhos arregalados de criança que diziam: um dia hei-de atravessar toda aquela água. Um dia chegarei ao outro lado. Um dia, e esse é o meu grande objectivo, terei a capacidade de chegar ao outro lado do meu sonho.
Como René era demasiado pequeno para tanta água, mas era demasiado grande para tão poucos sonhos, decidiu justificar a sua intenção fazendo uma marca no tempo: quando fizer dezoito anos vou tentar atravessar o rio. Nessa altura serei grande o suficiente, e serei forte o quanto baste para lutar contra as correntes vazantes.
Os anos foram passando e o corpo do menino, para seu desgosto, foi-se transformando em largura, mas não em altura. Cada dia de aniversário, o pequeno menino media-se e, frustado, dizia: estou exactamente na mesma, se continuar assim vou morrer mal entre dentro de água. Vou morrer porque os meus pés são demasiado pesados e porque o meu corpo ondulante é demasiado breve em altura.
Quando chegou o grande dia para concretizar o seu sonho, o dia do seu décimo oitavo aniversário, René tinha crescido quase cem centímetros de barriga, e tinha crescido quase zero centímetros de altura. René era agora um pequeno homem com uma grande barriga e com um sonho ainda maior que todas essas dimensões: atravessar o rio que tanto tinha admirado. E foi essa força que nos aparece quase sempre de olhos fechados, que o ajudou, mesmo sendo muito pequeno, a percorrer a praia até chegar à beira de água. E que o ajudou, mesmo com dois pés desajeitados e inoportunos, a entrar lentamente dentro da água fria e escura do Grande Rio. René estava trémulo de medo, mas isso não o deteve a dar um passo e de a água começar a invadi-lo a uma velocidade que não resistia ao seu sangue quente. Deu outro passo. E outro. E quando deu o quarto passo, apenas restava parte da boca de René fora de água. Apenas restava aquilo que diz as palavras e os pensamentos. René podia gritar nesse momento. Podia dizer socorro. Podia dizer salvem-me por favor. Mas decidiu não utilizar a parte do corpo que lhe restava: as palavras. Decidiu antes mergulhar e ver como o seu corpo ondulante e serpenteado se sabia mexer com uma exactidão inquebrável. Cada vértebra do menino René parecia já fazer parte da estrutura química que agora o abraçava. Os seus braços de alga. As suas omoplatas de tubarão. Os seus pés de golfinho. René, sem precisar de calcular mais os seus passos demorados, assistia reluzente à sua própria velocidade, chegando ao outro lado do rio e ao outro lado do seu sonho em meia dúzia de segundos.
Hoje, o pequeno René tem mais cinco anos e vive no outro lado do rio, onde, da janela do seu novo quarto, admira o belíssimo caudal que, um dia, segundo o próprio, há-de voltar a mergulhar.


autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 9 de março de 2009

sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Gosto de apreciar um canalizador a reparar um cano que desperdiça litros de água para uma sarjeta. Gosto, também, de apreciar uma criança a tapar um buraco que está a mais no meio de um jardim. Os dois (o canalizador e a criança) são apenas mais duas tentativas utilizadas por Deus para curar as feridas superficiais do mundo: para curar uns arranhões!, diriam os anjos, optimistas. Ou para curar as alergias, diriam os políticos, que costumam olhar para a vida com os olhos inflamados: olhos de quem só sabe fazer buracos para os outros taparem.

O Assassino falou ao Padre, o Padre falou ao Bispo, o Bispo falou ao Cardeal e o Cardeal falou ao Papa.
Nos pés do Assassino existe um desconforto azarento: logo hoje, que tinha tanta gente para assustar, é que calcei, por engano, os sapatos de uma outra pessoa. Os pés do Assassino incharam, em poucos minutos, e enquanto tentava percorrer uma curta distância, os poucos passos que deu tornaram-se insuportáveis para poder usufruir da locomoção. De súbito o assassino fecha os olhos para que não existam provas que o incriminem: quer dizer que o senhor não aguentou uma simples “dor de pés”, diria o advogado de acusação, com toda a certeza, no dia da sentença final. O Assassino tirou, então, os sapatos de olhos fechados: assim nem eu poderei servir de testemunha.
Quando o Assassino chegou perto da porta de entrada, passou pelo espelho como é de seu costume; ali era de seu hábito retocar a gola da camisa e a ponta da gravata; o que se tornara impossível neste dia porque, a cobrir a sua extensão corporal de Assassino, apenas um vestido preto e liso sem camisa e sem gravata, apenas um vestido liso, e todo preto, e muito justo à pele. Ao levantar um braço na direcção do seu reflexo – para satisfazer a necessidade assustadora de poder confirmar que aquele era mesmo ele – o vestido rasga-se na zona das axilas. Desanimado, pensa para si: levar uma roupa feminina para o tribunal não me deve ajudar. O Assassino fecha de novo os olhos para que não existam provas que o incriminem: para além de não aguentar uma simples “dor de pés”, ainda tem o descaramento de se apresentar de vestido em frente ao juiz; nem uma mosca, este homem conseguiria matar, quanto mais um ser humano!, diria o advogado de acusação, para justificar as suas insinuações com uma outra segurança, tentando, assim, convencer o público da sua fraqueza enquanto criminoso.
O Assassino tem de se despir, mas primeiro vira as costas ao espelho: um reflexo pode tornar-se numa testemunha?, é nisso que pensa ao rodar sobre si. Depois, de olhos fechados, tira o vestido preto e liso: enquanto não existirem provas, poderei continuar a ser perigoso, concluiu ele, motivado com a ideia de se defender da bondade a todo o custo.
Todos os Trabalhadores Exemplares agradecem à sorte o facto de terem um trabalho de que gostam; o Assassino, antes de partir para o julgamento, agradece à maldade o facto de saber utilizar a faca e a pistola. O Assassino costuma apenas segurar num colar de estimação e dizer obrigado antes de partir para algo de importante. Mas o próprio dia não estava disposto a seguir os rituais normais: para além de ser o dia em que saberá se será considerado culpado ou inocente do homicídio de doze homens muito femininos, o Assassino, à porta de casa, completamente nu, segura no seu colar de estimação e, quando está prestes a beijá-lo, apercebe-se de que acabou de tocar num crucifixo.
Já na rua, alguém o chama. É alguém que ficou dentro de casa. O Assassino, completamente nu, virou-se e apercebeu-se de que na porta está o tal Padre que disse ao Bispo, que por sua vez disse ao Cardeal, e que inevitavelmente acabou por dizer ao Papa. É o Padre, e está vestido de Assassino, reflecte ele para si, antes de continuar caminho. Vem cá depressa, disse de novo o Padre, erguendo nas duas mãos uma faca e uma pistola. O Assassino, no entanto, com medo, procurava não dar nenhuma atenção ao que ouviu da boca do Padre e, correndo com uma sensação confortável dentro de si – uma sensação de fé tranquilizante que permanecia dentro do seu corpo nu – começou a aperceber-se de uma dificuldade decisiva: a dificuldade de provocar o terror. Nessa corrida interminável, o Assassino, que nunca soubera avaliar um sorriso, acelerou os lábios como se estes fossem duas intenções honestas e iniciou uma admirável reza que só terminou no final do julgamento.
Hoje, passados vinte anos, o Assassino continua internado num hospício muito agradável, onde passa os dias sob intensas orações. Quanto ao Padre, num mês matou o Bispo, que por sua vez tinha morto o Cardeal, que inevitavelmente acabou por matar o Papa.


autor: Rui Almeida Paiva

domingo, 8 de março de 2009

sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Aos vinte e três anos fui ao médico, e este, com uma calma de médico veterano, disse-me sem me olhar nos olhos: ao senhor resta-lhe uma semana de vida.

Aos trinta e cinco anos fui ao mesmo médico; tinha passado tempo suficiente para ter a certeza concreta de que não tinha morrido como me tinha sido prescrito anos atrás. O médico, para meu espanto, não ficou surpreendido por me ver de novo; estendeu-me a mão, naturalmente, e utilizando os dedos como cinco belas espadas, aconselhou-me a sentar.
Deve estar cansado – disse-me ele – já não o via há uns tempos. Então o que o traz por cá?
Senhor Doutor, tenho algumas dores de garganta – disse-lhe eu para não ferir o lado profissional daquele homem, para não referir que se tinha enganado em relação ao tempo de vida que me restava.
No entanto, curioso, perguntei:
Então, Senhor Doutor, o que é que eu tenho na garganta?
Um cancro, querido paciente, não lhe restam mais de trinta dias; vinte e oito, quero eu dizer, visto estarmos no mês de Fevereiro.
O mês seguinte foi desgastante, é um facto, o tempo não parava de diminuir: quando um médico nos diz que vamos morrer, acreditamos. Deus e todos os seus seguidores devem, também eles, ser um pouco de cirurgiões ou um pouco de médicos de clínica geral, visto terem tudo bem descrito na Bíblia: um dia todos morremos, é uma fatalidade. Mas em padres hoje em dia, quem é que acredita? O que sabem eles de infecções mortíferas e de doenças com data marcada?
Contudo, o que me valeu no meio disto tudo, foi não ter morrido nesse mês nem nos seguintes.

Feliz, e com uma outra maturidade para enfrentar os incompetentes, decidi, aos meus quarenta e oito anos, ir ter com o Doutor que não sabia adivinhar a medicina dos seus clientes.
Quando lá cheguei o médico tinha falecido. Peço imensa desculpa, mas o Doutor que procura morreu no ano passado, foi baleado por um doente pouco convicto. Sem que se notasse, esbocei um sorriso irónico ao ouvir tal notícia. Mas mal saí do consultório, o inesperado aconteceu: tinha a sensação de me faltar algo. Espreitei primeiro para dentro dos bolsos, depois para a pele e, por fim, para o meu interior. Falta-me a Crença, é isso, falta-me a Crença com que saía do consultório de cada vez que cá vinha. Daqui saía sempre com uma meta e com uma grande convicção: o Doutor diz que vou durar apenas uma semana, mas vamos ver quem é que tem razão... agora é que vamos ver, insistia eu na altura em que ainda era jovem, o Doutor deve estar é louco.
Agora tinha quarenta e oito anos e, ao sair do consultório, a falta de Crença não era só um estado de espírito, era também um estado físico: de repente senti-me tonto, sem apoio, e os pés fugiram-me do chão e desequilibrei-me com uma facilidade impertinente. No lancil da estrada sentei-me com as duas mãos agarradas à cabeça. Sentia-me pela primeira vez perdido, desorientado: e agora quem é que vai tentar adivinhar o dia da minha morte? Agora seguro-me a quem?

O dia passou, como devem imaginar, impregnado de uma agonia terrível: faltar a Crença a alguém pode ser o seu fim, já diziam os teólogos do século treze.
Na manhã seguinte, ao acordar, os acontecimentos simples, sem que tivesse reparado, tinham também eles desaparecido: não coloquei os pés nos chinelos, fiz a barba que conservava desde a adolescência, tomei chá ao pequeno-almoço em vez de leite e fui-me deitar em vez de ir trabalhar. Quando cheguei à cama apercebi-me que não existiam razões úteis para continuar a viver.
Quem pode, hoje em dia, continuar a viver sem saber o dia da sua morte?


Autor: Rui Almeida Paiva

sábado, 7 de março de 2009

Quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Pai, hoje, finalmente, decidi escrever-te porque se tornou importante fazeres parte daquilo que tenho sentido por ti. Pai, hoje também fui pai, e o que tenho para te oferecer são frases que te pertencem; aqui estão elas, são tuas:

Um filho que não tem ninguém para o ajudar a vestir não está formado fisicamente: faltam-lhe as duas mãos que precisava para ficar completo.

Um filho nasce sempre pelo menos com quatro mãos. Duas fazem parte do seu corpo: são Anatomia, são Ciência e são muito pequeninas. As outras duas estão fora de si: são como o Vento, como a Temperatura e são muito grandes.

Um filho que tem de aprender a vestir-se sozinho antes do tempo veste tudo ao contrário (não sei se já reparaste numa criança a tentar calçar o sapato certo no pé certo: erra sempre, é azarenta por natureza, a criança): as camisolas com as etiquetas presas ao queixo, a camisa abotoada em casas trocadas, as calças com a braguilha virada para trás.

Um filho que nasceu apenas com duas mãos demora sempre mais tempo a equilibrar-se quando se tenta levantar pela primeira vez. Andar para a frente é um ofício da Natureza que é apreendido apenas pelos corredores mais resistentes. Um filho apenas com Mãos Anatómicas e sem Mãos de Pai está sujeito a uma queda inevitável, e começar a cair cedo demais pode provocar lesões irreversíveis no desequilíbrio.

Um filho que tem apenas duas mãos para se alimentar morre sempre um pouco à fome. As mãos de uma criança servem para brincar em todas as ocasiões, não podem servir para trabalhos forçados como colocar uma centena de colheradas de sopa entre os lábios. Passar fome, neste caso, pode ser ficar desidratado na diversão.

Um filho que nasceu apenas com duas mãos nunca aprendeu a abraçar: ninguém aprende sozinho aquilo que é obrigatório fazer-se acompanhado.

No final da carta não me despeço, como supostamente o deveria fazer, prefiro continuar a observar as minhas mãos muito demoradamente – é que tem sido nelas que tenho encontrado frequentemente as tuas Mãos de Pai.
Até já...


Autor: Rui Almeida Paiva

sexta-feira, 6 de março de 2009

literatura

Quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Um zumbido subia de tom dentro do quarto. Um zumbido desconfortável. Era como se nos colocassem a redigir um texto numa posição desagradável. Imagina um conjunto de frases a dormir a noite toda na mesma posição. Sem se poderem mexer, as frases são um condicionamento terrível. As palavras, nestas ocasiões, são as nódoas negras desse esforço; são a consequência de um chão duro e desnivelado; são as nódoas negras dos verbos temíveis e dos substantivos tristes.
Aproximemo-nos, então, desse zumbido. Quatro pessoas de bata branca tentam não ser escutadas, aqui está a única razão para tal barulho: na boca dessas quatro pessoas as frases querem sobreviver a um esconderijo de ideias vazias. A voz, nas suas bocas, é um conjunto de abelhas que se cruzam, que medem forças no espaço aéreo. ZZZZ, ZZZZZZZZZZZ, ZZZZZZ. Estará uma colmeia dentro da sala? poderia ser perguntado. Não, nada disso, são apenas as vozes, que, para não serem identificadas, se encontram disfarçadas. ZZZZZZZZZZ, ZZZZZ, ZZZZZZZ.
Aproximemo-nos ainda mais um pouco, ou não será a curiosidade uma das grandes virtudes do Homem? As quatro pessoas zumbem porque tentam não ser ouvidas. Nem sempre, lá por se falar baixo, isso significa que se está dentro de um segredo, e aquilo era maior que um segredo a ser desvendado, era uma infelicidade, uma desgraça.
A quatro metros desse acontecimento, dentro do mesmo quarto, uma mãe dorme. Os olhos fechados explicam todos os pesadelos que lhe foram surgindo noutras alturas da vida. Parece estar a ressonar, a fadiga tem destas coisas!
Aquela mulher, deitada, era mãe apenas há quatro horas e, apesar dos sinais de cansaço – as olheiras marcadas e escuras, os lábios pálidos e secos, o rosto pigmentado e inchado – apesar de tudo isto, ela não conseguia adormecer. Preferiu ocupar o tempo, talvez utilizar um dos seus jogos preferidos, os jogos interiores, jogos domésticos como os costumava designar: se quiser ganhar este jogo tenho de conseguir decifrar o que estão a conversar aqueles que sussurram; e lá começou ela a jogar dentro do seu cérebro, ou dentro do seu ouvido, tudo depende do nome que quisermos oferecer ao órgão da concentração.
E quando a criança começar a querer chuchar, quem tratará dela? compreendeu a mãe daquela conversa a quatro. Nessa altura, localizou certas sensações. Num dos seus seios sentiu a força de dois pequenos lábios, que a sugavam, ansiosamente.
Será que o problema dele permitirá segurar nos brinquedos? ouviu ela de uma voz agora masculina.
Acho que será muito difícil um dia conseguir levantar-se. E terá, com toda a certeza, de usar duas pinças metálicas para que possa abrir os olhos.
Então, isso quer dizer que conseguirá ver?
Não se pode confirmar esse facto. Aquilo que a criança tem não lhe permitirá falar. Os dois maxilares estão cerrados, estão fixos um no outro. Nunca poderemos confirmar se conseguirá ver.
A mãe, apenas a quatro metros, ouvia todas aquelas observações, mas era tão recente aquela ideia de ter um filho, que, por momentos, deixou-se levar pela emoção e, sem esperar, sentiu que duas pequenas mãos deslizavam sobre o seu pescoço, como que o estudando.
Necessitará de algumas intervenções clínicas, as evidências confirmam os factos patológicos: os pulmões estão preenchidos de água suja, a língua tem o tamanho de um coração, e o coração, pelo que foi verificado no último exame, tem o tamanho de uma pequena língua gustativa.
Será um poeta, então – exclamou a voz masculina – ter um coração no sítio da boca tem uma vantagem: aquilo que se diz está sempre mais perto daquilo que se sente. Nasceu mais um poeta, apesar das dificuldades físicas que se avizinham.
A mãe não conseguiu controlar um sorriso depois de ouvir esta última intervenção. Ainda agora nasceu e já dizem que é poeta, pensou ela. Os quatro indivíduos de bata branca pararam. A mãe sorria tão naturalmente depois de ter dado à luz algo de tão esquisito e trágico, que os quatro indivíduos pensaram, simultaneamente, que aquela manifestação poderia muito bem ser um dos princípios da loucura. Rir com vontade da desgraça é encontrar um parque de diversões dentro de uma bomba, e aqui está o primeiro indício da loucura: o riso. Naturalmente que não seria um riso qualquer, pensámos nós, que apenas assistimos a estas ocorrências de fora. Talvez se pareça com um riso despropositado, pensaram os quatro indivíduos de bata branca, justificando as nossas dúvidas. Alguém que ri sozinho é alguém que ri de alguma coisa que é coisa nenhuma, é desequilíbrio, explicou um deles. A mãe riu ainda mais alto, as gargalhadas entravam e saíam da imagem irrisória que tinha sido avançada pelos quatro: um bebé poeta, olhem-me as ideias destes indivíduos, como é que alguém pode afirmar tal coisa se apenas se aprende a ler e a escrever a partir dos cinco anos!
Os sussurros pararam. Os quatro indivíduos de bata branca deixaram-se ficar quietos. A mãe, ainda a jogar o seu jogo doméstico, parou de expelir gargalhadas. O silêncio tenso era agora um som agressivo e agudo. A mãe, de olhos fechados, sente o calor de um bebé deitado junto ao seu peito, isso acalma-a. O jogo acabou, mais uma vez ela sabe que ganhou, conseguiu ouvir tudo o que estavam a dizer à sua volta. Decide, então, abrir os olhos – olhos de mãe – meditou ela. Uma respiração ligeira sopra no seu ouvido ainda antes de afastar as pálpebras, é a voz do seu filho, que comunica sons desorientados. A mãe abre os olhos: no centro dos seus braços uma série de movimentos. É ele – pensa para si – é o meu filho. É a primeira vez que ela abre os olhos depois de ter sido internada com uma barriga de oito meses. Primeiro olha para o tecto, está nervosa – como é que será ele? – interroga-se. Depois olha para baixo, para o que tem nos braços. E, lá dentro, por mais estranho que pareça, apenas um livro. Um livro de poesia com três quilos e trezentos, com boa vitalidade, e com todos os reflexos muito bem apurados.

Autor: Rui Almeida Paiva


quinta-feira, 5 de março de 2009

terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Carrego na mão uma bolsa. Lá dentro seguro uma fortuna. É muito importante ter a noção de que não se podem perder as coisas preciosas: aperto, então, com mais força, os dedos que abraçam a alça da bolsa. Sai-o de casa, o destino ainda é longe.

Há uma semana atrás abri a bolsa e gritei lá para dentro: estou triste porque nasceu hoje o meu primeiro filho.

A meio do percurso a bolsa começa-me a pesar, troco-a para a outra mão.

Depois de ter dito a frase estou triste porque nasceu hoje o meu primeiro filho, fechei imediatamente a bolsa e escondi-a por baixo da cama.

Estou quase a chegar. Seguro a bolsa como dois terramotos seguram um pedregulho. Entro no edifício. Subo as escadas. Entro no quarto três. Na primeira cama a primeira mãe e a primeira criança. As duas deitadas, lado a lado. Trouxe-te um presente, digo-lhe. Obrigado, diz-me ela.
A primeira mãe, ainda deitada ao lado do primeiro filho, abre a bolsa. Lá de dentro sai a frase estou triste porque nasceu hoje o meu primeiro filho.
Sai-o do quarto, do edifício. Para trás deixo o que poderia ser a minha vida. O ar expande-se na diagonal. Fora do edifício, no meu corpo: os braços doridos, os pulmões gastos, as pernas presas. Ando dois quilómetros. Nessa altura estou tão longe do edifício que só assim é que percebo que o meu corpo, sem nada nas mãos para transportar, se tornou apenas muito mais leve no coração. Volto para trás. Subo o edifício. Entro dentro do quarto três. Agarro na bolsa. Abro-a. Seguro no meu primeiro filho. Coloco-o lá dentro e levo-o.


autor: Rui Almeida Paiva

quarta-feira, 4 de março de 2009

segunda tentativa

segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio


Um vestígio mínimo de moralidade sobrevive sempre depois de uma fatalidade.

Começamos por aprender o fazer: estar de pé sem cair, comer com garfo e faca, trocar palavras por outras mais eficazes; aprendemos a ler e depois a escrever, e depois a ouvir e no final a escutar; sobretudo a ter olhos que reparam. E depois de aprendermos a sermos normais? Depois, depois é preciso sermos cuidadosos na arte de irmos perdendo a normalidade.

René, que estava proibido de estabelecer uma relação física com a natureza, ainda não tinha um único segredo guardado; e uma criança sem segredos é uma criança sem amparo: cai sempre mal em cima da realidade.
Uma queda do segundo andar da realidade provocou em René uma lesão nos tímpanos. Com sete anos adquire-se a totalidade da audição – tinha-lhe confidenciado um dos médicos – com sete anos o corpo está finalmente apto a exercer uma interpretação da melodia; o ritmo torna-se significado; o ritmo aloja-se nas análises de uma teoria. Apenas nesta idade os arrepios se agarram à pele quando um trovão embate no solo, já verificaste isto alguma vez, meu querido paciente? René ainda não havia experimentado o arrepio: as paredes do seu quarto eram objectos sem som, por isso, quando René fez sete anos, não aguentou mais e saltou do segundo andar à procura da sua musicalidade. Como todas as previsões anunciavam, René caiu mal, e mesmo por baixo das nódoas negras apenas uma ponta ruidosa da realidade.
René aos sete anos deixou de ouvir a mãe.
Aos oito deixou de ouvir o pai.
Aos doze anos deixou de ouvir os sons desagradáveis.
Com vinte e oito anos deixou de ouvir o mar, a floresta, a chuva, a tosse e os espirros.
Aos quarenta e seis anos apercebeu-se de que os outros se tinham tornado mudos.
Por volta dos cinquenta e nove anos deixou-se de ouvir a si próprio.
Quando fez setenta e sete anos René ficou completamente surdo.
Nesse ano René poderia finalmente descansar delicadamente: enquanto estiver surdo, poderei cair todas as vezes que quiser sem me aleijar.

Autor: Rui Almeida Paiva

terça-feira, 3 de março de 2009

primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

para quem possa vir a escutar estas letras, esta será a primeira de cem tentativas para chegar ao mesmo sítio que serão diáriamente aqui reveladas ...



1.

Estudos sobre a música



Primeiro Estudo


No quarto, o tempo não continuava. O tempo, estagnado, optava por assobiar enquanto assistia. Um homem enforcado lá dentro, mais precisamente dentro do armário, e estava quase a ser analisado como alguém que desistiu da própria vida. Embora, verdade seja dita, o morto – quando vivo – preferisse ser reconhecido como homem dos tempos em que respirava: alguém que conquistara a própria morte com bravura.
O cheiro a podre enjoava a respiração e entupia as narinas. Havia um ar pesado, um nevoeiro que caminhava lentamente e que fugia para o exterior. A confusão era desnecessária; os fantasmas riam-se das almas, e as almas não paravam de rezar. A confusão é transparente, no mundo dos mortos, embora esteja empestada de poluição, anunciava uma das almas menos elegantes que, irritada, tentava insultar um fantasma que tinha acabado de cuspir para o chão.

Só pode ser música, o que está escrito nas veias do morto, disse o primeiro pianista dois segundos antes.
A cabeça não tem nem um pingo de sangue, não tem cor, disse o segundo pianista.
É música e da boa, avançou o primeiro pianista, enquanto segurava num dos braços inertes e lia as notas musicais que tinham aparecido na superfície da pele do morto.
Tinha a música no sangue, este coitado, não o podemos negar.
É claramente uma ópera, o que aparece ao longo das veias.
BRILHANTE, BRILHANTE, a perna esquerda é uma composição para violino, BRILHANTE.

Duas horas antes, dois bombeiros entraram à força no quarto, rebentando a porta.
Depois entraram dois médicos que conversavam sobre quem tinha sido o último a pagar o pequeno-almoço; os médicos repararam que já não existia porta, esse trabalho tinha sido realizado pelos bombeiros.
Dois investigadores entraram num passo curto, era um caso simples de resolver, tinham a certeza de que o homem estava morto, esse trabalho tinha sido realizado pelos médicos.
Dois pianistas entraram apressados no quarto, foram chamados de urgência, era um caso de suicídio, e esse trabalho tinha sido realizado pelos investigadores: o enforcado tinha uma composição musical nas várias veias que sobressaíam na epiderme.

Dois dias antes, Kremer decidiu avançar com o pé esquerdo, era canhoto desde que nascera. O corpo caiu. A corda esticou com o peso da queda. Ouviu-se um som forte e seco (craque). O som vinha de duas vértebras do pescoço, que se tinham separado. Os braços foram-se abaixo. A cabeça inclinou-se para cima. Os olhos fecharam-se. A língua engrossou e saiu para fora. O tronco tremeu por instantes. As pernas sacudiram os pés meia dúzia de vezes. Depois os membros pararam brutalmente de intervir. O corpo ficou doze minutos a baloiçar, suspenso, só. Pontualmente só.

Dois dias e dois minutos antes, estava tudo pronto dentro do armário. Por enquanto a morte estava aborrecida. A morte tinha-se sentado fazia dez dias e poucos movimentos tinha exercido sobre as pernas. Levantou-se três vezes, a morte, desde a primeira tentativa. A morte ofereceu apoio com uma das mãos a Kremer, porque o armário era alto e tinha as portas altas. Era essa a sua função: ajudá-lo a entrar para dentro do armário. A morte sorria enquanto isto acontecia. A morte era uma víbora, uma serpente muito parecida a uma forca. A morte não se movia, aparentemente. A morte atingia a rapidez invisível. A morte era uma puta, fodia com todos os cadáveres que queriam voltar a viver por um dia e depois cuspia os ossos desses cadáveres pelas narinas e pelo ânus.

Duas semanas antes, Kremer abriu a última carta, esta maior que a anterior e maior que todas os outras que tinha analisado. Apontou o dedo indicador, que tremia. Seria a última tentativa, já estava decidido. A corda estava pendurada dentro do armário. O armário estava limpo de tralha para ele caber lá dentro e para a corda caber no seu pescoço. A única coisa que faltava era o seu corpo; depois era só colocar-se em cima de um banco, envolver-se no pescoço, com a corda previamente içada, e deixar-se cair. Desdobrou a carta e leu: infelizmente devo anunciar que não apreciei a sua obra, como tal não vai ser possível editá-la.

Dois anos antes, Kremer tinha-se fechado no quarto, quase às escuras, e escrevera uma ópera.



autor: Rui Almeida Paiva