sábado, 14 de março de 2009

décima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Uma mulher que costuma brincar muito com o destino, acaba, a maior parte das vezes, com um filho nos braços.

Hoje Marie fez algo de diferente: perdeu um filho.
Marie decide, então, depois de uma breve reflexão, procurar parte da infância.

Marie chega cansada: os seus primeiros anos de vida tinham-se distanciado do seu corpo como um cavalo que sobrevive cheio de feridas. Pela sua infância tinha passado uma Guerra na qual tinha sobrevivido com mais feridas invisíveis do que com feridas que se podem mostrar. Marie não podia chegar ao juiz e baixar as calças para dizer: fui violada. O corpo de Marie estava apenas um pouco arranhado: ninguém é violado por ter pequenas feridas nas costas e por ter pequenas feridas no rosto, diria o juiz e a população que conhecia aquela criança de vista. A ferida, neste caso, está escondida na vagina, anunciaria Marie, se pudesse explorar o espaço concreto da verdade. Marie tinha sobrevivido a uma guerra também ela invisível; uma guerra onde as armas metálicas eram os braços de um homem, e onde as bombas feitas de chumbo eram feitas de uma saliva que caía no seu rosto como se fossem um conjunto de bombas feitas de chumbo; caíam pingos pesados de saliva no seu território parado e desprotegido onde, lá dentro, o seu cérebro tentava fugir para outro local menos escuro. Marie em criança tinha sido um soldado sem armadura e as únicas lindas espadas que poderia utilizar estavam já presas no seu coração de soldado. Tinha sido um soldado abusado pelos gestos agressivos, pelas palavras feias, e pelas vozes aos gritos: nada de visível, diria o senhor Juiz.
Hoje, Marie fez algo de diferente: perdeu um filho, e esse foi o motivo para querer andar durante várias horas seguidas, tal e qual como fazia quando era uma menina. Chegou a um areal, percorreu-o, descalçou-se: tinha chegado perto do mar. Tinha chegado, finalmente, a uma parte feliz da sua memória. Para aquela menina a praia começava na água, e a areia, que era onde tudo acabava, fazia apenas parte de um instrumento emprestado: o mundo.
Hoje Marie é uma mulher adulta que se descalça apenas quando passa alguém verdadeiramente importante. Marie, à frente do mar, vê uma onda verdadeiramente importante a passar, descalça-se, entra dentro de água, e os dedos dos pés, vistos lá de cima, parecem-lhe dez segredos importantes: dez segredos demorados, reflecte ela para si.
Hoje, já mulher, Marie quer ficar a conhecer melhor a sua Praia Feita de Água Salgada, porque se encontra numa zona feliz da sua memória. Avança, tira a saia e a camisola. Está nua. Ali Marie sente que a Guerra não funciona. Dentro de água não existe a saliva dos homens armados, existe apenas a saliva dos Peixes Pensadores – murmurou ela com todos os membros quase submersos – e é por isso que o mar é salgado.
Hoje Marie descalçou-se e tirou toda a roupa, porque já lhe fazia impressão ter ossos fora da pele e porque a roupa eram esses ossos que já não funcionavam no seu corpo de mulher. Marie sentia-se verdadeiramente nua pela primeira vez. Os Peixes Pensadores não têm a maldade dos Homens Vestidos – explicava ela no momento em que a água lhe chegou ao queixo – os Peixes Pensadores não compreendem a dificuldade que uma mulher tem em esconder as feridas das pernas e do pescoço. Marie começa então a pensar, enquanto mergulha a cabeça, que nem com roupa se consegue tapar as feridas da alma. E nesse preciso momento, já a bater as pernas na direcção do fundo do mar, olha-se, e apercebe-se que é novamente criança e que o seu corpo nada ao lado dos grandes Peixes Pensadores.
No entanto, dentro da sua alma, Marie tinha perdido um filho hoje.


autor: Rui Almeida Paiva

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