terça-feira, 10 de março de 2009

oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

René era um miúdo com pouca idade: sete anos. A sua estrutura óssea era frágil e de poucas distâncias. Por exemplo, a distância entre o pé e o cóccix, de seu nome perna, era uma componente celular demasiado estreita e demasiado curta de onde se distinguiam apenas dois enormes pés, que, vistos de longe, não hesitaria em classificar como sendo dois pedaços sólidos indesejáveis que desafiavam os limites da natureza. Por outro lado, a distância entre a primeira vértebra cervical e a última vértebra lombar, considerada por muitos a base de todo o sistema esquelético, era formada não por ossos, mas por algo gelatinoso que fazia lembrar plasticina. Por isso é que quando René decidia andar dava um passo de cada vez, porque o seu corpo parecia transformar-se num réptil comprido e porque os seus braços eram duas cordas maleáveis que receavam dar um nó uma na outra. O próprio René, sem querer, quando decidia avançar com as suas quase invisíveis pernas, transformava-se numa grande quantidade de movimentos flutuantes e circulares onde cada passo era considerado por si, um desafio da Estratégia Muscular e um desafio dos Desenhos Anatómicos do Espaço. Aqui vai um pé, dizia René, quando queria sair da cama para se levantar. E o pé, quando caía, sem que ele desse por isso, transformava-se num estrondo que se entranhava nos lugares sossegados e nos lugares distraídos da sua grande casa. Depois René tinha de se empoleirar de novo na sua grande cama, porque só aguentava com um pé de cada vez. Aqui vai o outro pé, dizia René de novo, como se fosse necessário avisar o chão de que existia uma substância pouco ética, mas muito invisível, a que ele tinha dado o nome de Queda. Uma Queda é sempre uma fórmula num peso inesperado, dizia René para dentro dos seus pensamentos mais profundos. Uma Queda é parte da fórmula utilizada por Deus para criar a dor. Com essa ideia ainda a circular no seu cérebro e já com os pés poisados no chão liso do quarto, o pequeno menino começava então o seu percurso diário: ir da cama do seu quarto até à janela do seu quarto. Cinco passos bastavam. Cinco passos certos em metros que demoravam cinco horas certas em tempo. E eram assim os seus dias. Acordar. Lançar os pés para o chão. E ir até à janela para ver o lado exterior do mundo. Para ver o rio. O Grande Rio que dividia as duas margens e que dividia os seus dois olhos arregalados de criança que diziam: um dia hei-de atravessar toda aquela água. Um dia chegarei ao outro lado. Um dia, e esse é o meu grande objectivo, terei a capacidade de chegar ao outro lado do meu sonho.
Como René era demasiado pequeno para tanta água, mas era demasiado grande para tão poucos sonhos, decidiu justificar a sua intenção fazendo uma marca no tempo: quando fizer dezoito anos vou tentar atravessar o rio. Nessa altura serei grande o suficiente, e serei forte o quanto baste para lutar contra as correntes vazantes.
Os anos foram passando e o corpo do menino, para seu desgosto, foi-se transformando em largura, mas não em altura. Cada dia de aniversário, o pequeno menino media-se e, frustado, dizia: estou exactamente na mesma, se continuar assim vou morrer mal entre dentro de água. Vou morrer porque os meus pés são demasiado pesados e porque o meu corpo ondulante é demasiado breve em altura.
Quando chegou o grande dia para concretizar o seu sonho, o dia do seu décimo oitavo aniversário, René tinha crescido quase cem centímetros de barriga, e tinha crescido quase zero centímetros de altura. René era agora um pequeno homem com uma grande barriga e com um sonho ainda maior que todas essas dimensões: atravessar o rio que tanto tinha admirado. E foi essa força que nos aparece quase sempre de olhos fechados, que o ajudou, mesmo sendo muito pequeno, a percorrer a praia até chegar à beira de água. E que o ajudou, mesmo com dois pés desajeitados e inoportunos, a entrar lentamente dentro da água fria e escura do Grande Rio. René estava trémulo de medo, mas isso não o deteve a dar um passo e de a água começar a invadi-lo a uma velocidade que não resistia ao seu sangue quente. Deu outro passo. E outro. E quando deu o quarto passo, apenas restava parte da boca de René fora de água. Apenas restava aquilo que diz as palavras e os pensamentos. René podia gritar nesse momento. Podia dizer socorro. Podia dizer salvem-me por favor. Mas decidiu não utilizar a parte do corpo que lhe restava: as palavras. Decidiu antes mergulhar e ver como o seu corpo ondulante e serpenteado se sabia mexer com uma exactidão inquebrável. Cada vértebra do menino René parecia já fazer parte da estrutura química que agora o abraçava. Os seus braços de alga. As suas omoplatas de tubarão. Os seus pés de golfinho. René, sem precisar de calcular mais os seus passos demorados, assistia reluzente à sua própria velocidade, chegando ao outro lado do rio e ao outro lado do seu sonho em meia dúzia de segundos.
Hoje, o pequeno René tem mais cinco anos e vive no outro lado do rio, onde, da janela do seu novo quarto, admira o belíssimo caudal que, um dia, segundo o próprio, há-de voltar a mergulhar.


autor: rui almeida paiva

Sem comentários:

Enviar um comentário