domingo, 15 de março de 2009

décima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

A barriga cresceu tanto que poderiam existir quatro crianças lá dentro. O pai e a mãe, por decisão de ordem Ética para com a Natureza Animal, não quiseram saber o sexo do seu primeiro filho: existem surpresas de ordem natural e surpresas de ordem artificial, disse o pai, e esta, a de sabermos se vamos ter uma menina ou um menino, é uma surpresa natural. É também uma surpresa dinâmica, acrescentou a mãe, porque, para além de ser um presente em mudança, visto manter um crescimento constante ao longo do tempo, tem também uma outra característica importante: sou o seu embrulho.
No dia do parto, o marido disse: hoje a curiosidade aumentou mais em tamanho do que a barriga nos últimos nove meses.
O filho, felizmente, nasceu saudável: quase quatro quilos de peso, mas muito cansado do esforço de cinquenta e seis horas para conseguir passar pelo intervalo da sua mãe, e talvez fosse essa a razão para ainda não ter despertado. Quanto ao casal, passavam momentos muito felizes juntos, a contemplar aquele corpo perfeito de olhos fechados. Passados dois dias, levaram o recém-nascido para casa; como o recém-nascido ainda dormia, decidiram, por conveniência, não acordá-lo – o pequeno ainda soluçava do esforço que tinha feito para nascer – e àqueles pais foi-lhes ensinado imediatamente o essencial: não se esqueçam que o ritmo da criança deve ser respeitado religiosamente.
A alimentação, que podia ser um dos problemas para quem não acorda, estava resolvida: de três em três horas a mãe aproximava o seu seio da boca do seu filho e ele mamava vinte minutos seguidos, sempre a dormir. Arrotava, posteriormente. E defecava quando passavam duas horas da refeição ter sido ingerida.
Quando a criança fez seis anos, os seus pais depararam-se com um novo problema: e agora como é que vamos fazer?, se não o acordarmos, perderá o primeiro dia de aulas.
Era dia um de Outubro, o rapaz entrou no carro ao colo do pai; os soluços já tinham passado, mas os suspiros não: talvez ainda demore mais algum tempo a recuperar completamente do nascimento. Ao entrar na sala de aula, ao colo do pai, a mãe do miúdo foi explicar a situação à professora. O casal lá pôde ficar a assistir à aula, mas só naquele dia, aconselhou a professora.
Aos nove anos de idade, na sala de aula, uma cama confortável tinha sido construída lá ao fundo, onde apenas raramente um ou dois alunos teriam de permanecer virados para a parede, sob ordens de castigo. Era óbvio que, com o passar dos anos, já ninguém se lembrava do miúdo que lá dormia, já ninguém reparava na sua presença – o silêncio, quando em exagero, leva-nos à capacidade de passarmos despercebidos.
Naquela altura do ano, aproximava-se o exame da quarta classe e, sem este exame, o rapaz não poderia prosseguir os seus estudos. Os pais, preocupados, sabiam que o seu filho tinha parado de suspirar enquanto dormia, agora virava-se para os lados para encontrar melhores posições de descanso, e proferia alguns sons parecidos a uma estrutura verbal que surgia, muito escassamente, do interior do seu ressonar suave. Sons de quem está quase a acordar, explicava a mãe, a sussurrar, para não o despertar daquele sono revitalizante: ainda deve estar cansadinho, o meu menino, e com razão: nascer exige muito dos bebés, é uma violência, um esforço sobre-humano.
No dia do exame da quarta classe, Grace, a menina que passou directamente do primeiro para o último ano deste ciclo de ensino, devido ao seu estado avançado de maturação intelectual, apercebeu-se de que não era comum existir uma cama dentro de uma sala onde coabitavam alunos e professores; mas achou uma excelente ideia e, como apenas demorou dez minutos a realizar o exame, olhou para a cama e pensou: ora ali está uma boa actividade para repousar o resto do tempo. Quando se deitou na cama, percebeu que não estava sozinha: deve ser mais um dos que achou o exame demasiado simples. Intrigada, não aguentou as dúvidas que atacavam a sua curiosidade: Grace, num impulso, inclinou-se na direcção do ouvido do menino para lhe perguntar o nome. O menino acordou imediatamente com a voz exigente de Grace, abrindo os olhos pela primeira vez. Nesse instante, ouviu-se um choro agressivo a inundar todos os que estavam presentes. Era um choro estridente, e vinha da cama. O que é que se passa aí?, perguntou a professora, quando se apercebeu de que um menino, de nove anos de idade, estava sentado na cabeceira da cama, a lacrimejar de pânico. Quem és tu?, prosseguiu a professora, esquecida da situação do pobre rapaz sonolento. Não ouviste, eu perguntei-te o nome? O rapaz, com um aspecto obviamente abatido, encarou a professora com um olhar tímido e disse: DADADA, GU GU, DA DA, DADADAGUGUDADA.


Autor: Rui Almeida Paiva

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