segunda-feira, 23 de março de 2009

décima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Nos prédios mais altos viviam os mais novos.
Um jovem gosta de viver com as ideias muito coladas ao cimo do Universo. Um jovem, no entender do mesmo, tem sempre razão, e será sempre invencível em qualquer confronto menos interessante. Só um jovem consegue ter uma série de convicções ousadas: não vale a pena perceber um metro quadrado de mundo quando se pode ter uma imagem distorcida de todo um continente, respondia, invariavelmente, cada um dos estudantes que ia para ali viver. A resposta era registada pelo Analista, um cargo importante preenchido por um professor de arquitectura. O Analista estava, por seu turno, encarregue de decidir algo de estrita importância para a formação daqueles seres de pele fresca: a sua habitação, onde iriam permanecer no seu tempo de formação – ou iriam para os andares mais rasteiros, ou para os andares mais aéreos; a decisão seria tomada ali mesmo, depois de preenchidos os formulários.
Era uma cidade cheia de alturas, uma cidade com três universidades construídas no tempo em que se deu início a um certo tipo de inteligência: a criatividade. A inovação aparece estritamente da criatividade, explicou um dia um dos mais importantes economistas, a criatividade é um tipo de inteligência que também se pode ensinar, e é nela que aparecem os países ricos, os países mais desenvolvidos. Nesse dia, o economista muito importante tinha, como plateia, os chefes de estado de muitos países subdesenvolvidos, um desses países anotou a frase ao canto de uma folha: «a criatividade é um tipo de inteligência que também se pode ensinar, e é nela que aparecem os países ricos.»
Passado um ano, o país subdesenvolvido estava preparado para uma nova aventura: uma cidade para novos estudantes, para formar inteligência criativa.
A cidade foi desenhada para se poder sonhar, explicava o analista, quando se despedia dos recém-chegados alunos. E a distribuição dos andares faz-se por número de sonhos, dizia ele ainda, quando sabia que já não seria ouvido por ninguém.
Se prefiro repousar num local onde tenha acesso a um metro quadrado de mundo, ou se prefiro repousar num local onde tenha acesso a quase um infinito de terra?, retorquiu Vincent, depois da pergunta do analista. Prefiro repousar no infinito, prefiro olhar para o mundo visto de cima, respondeu Vincent. Aqui está a tua chave, vais para o quadragésimo quarto andar, lá bem junto às nuvens, este é o teu lugar ideal para estudares. Lá terás todas as condições para analisares os teus sonhos, para provocares a tua criatividade a um outro nível.
Vincent saiu com pressa do gabinete do analista. A poucos metros encontrou o seu prédio, olhou-o: era tão alto que, obrigatoriamente, teve de exigir demasiada inclinação a dois músculos do pescoço. Vincent tentava chegar, cá de baixo, ao cimo do prédio – ver o seu fim, pelo menos. Se não consigo ver o topo do prédio aqui debaixo, será que conseguirei ver o chão quando lá estiver em cima? Uma boa pergunta, respondeu para si.
Ao chegar à porta do prédio, uma sensação cortante atingiu dois músculos do pescoço do recém-chegado aluno. Vincent tinha ficado com um torcicolo; conclusão: Vincent percebeu que não devia ter olhado para cima do prédio sem preparação.
Dentro do prédio, tudo parecia pequeno e estreito, depois chegou perto do elevador: um único elevador, disse para si, sem pensar nas consequências de tal afirmação. Carregou no botão para chamar rapidamente o único elevador; os efeitos das dores alastraram-se para o ombro direito. Só quero chegar ao meu quarto e deitar-me na minha caminha. O elevador não aparecia, o braço direito de Vincent começou, previsivelmente, a ficar também ele imobilizado: mas porque é que eu me pus a tentar olhar para o topo do prédio?
Quando o elevador chegou cá abaixo, tinham passado três longas horas, e todo o corpo de Vincent era uma única dor intermitente. Quando chegou ao quadragésimo quarto andar, entrou no seu quarto, mas eram tantas as dores, que optou por descansar antes de começar a estudar os seus novos manuais.
Vincent teve de permanecer deitado, as dores de dedos rudes e fortes prendiam os braços e as pernas do novo aluno que, sem muita resistência, se deixou adormecer. Ao acordar, Vincent estava como novo: estou pronto para dar início ao estudo dos meus sonhos. Vincent dirige-se à janela. Lá fora uma espaçosa varanda. Abre a janela. Um vento fresco e contaminado de pureza acariciava-lhe o rosto. Aproxima-se do limite da varanda. Olha lá para baixo e diz contente: estou numa posição privilegiada; estou numa altura tão elevada que nem consigo ver o chão. Vincent sobe ao parapeito da varanda e salta. O sonho de Vincent nunca esteve tão próximo: se lá debaixo eu não conseguia ver o topo do prédio, e se daqui de cima eu não conseguia ver o seu início, é porque se saltar nunca lá chegarei abaixo, pensou o recém-chegado aluno. Vincent tinha o sonho de um dia conseguir voar, por isso saltou do parapeito da varanda. Cinco segundos, foi o tempo máximo de voo conseguido pelo jovem Vincent. No entanto, mesmo antes de chegar ao chão, Vincent ainda pensou na pergunta do analista – ou um metro quadrado de terra, ou toda a extensão do mundo? – e admitiu: um metro quadrado de terra, sempre seria mais seguro.

autor: rui almeida paiva

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