quinta-feira, 26 de março de 2009

vigésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Sem explicação, Clopin esticou a mão perto de uma rua agitada. Duas moedas caíram na mão direita daquele homem de rosto movimentado – as rugas, dignas de atenção, torciam-se de fúria – seria um problema de pele?, não, não era um problema de pele, era apenas um problema de idade, ou de esforço, reclamaram em tempos os médicos.
Clopin queria saber se estava a chover ou se estava a fazer sol, por isso é que esticou os dedos naquela rua movimentada, depois adormeceu, ali, sentado; adormeceu como se a rua fosse uma boa cama para se contemplar pesadelos.
Clopin não dormia há pelo menos sete dias: de olhos abertos as preocupações são mais verdadeiras, costumava afirmar. Clopin, antes de adormecer, pensou nos dois filhos que têm fome e que não param de chorar: de olhos abertos estou mais atento, assim os problemas não me apanham desprevenido. Contudo, a perturbação da insónia tornara-se insuportável. Desgastado, Clopin adormece de mão estendida, porque quer saber se está a chover ou se está a fazer sol: uma mão com sensibilidade climatérica, murmura para si, enquanto os olhos se fecham inesperadamente.
A dormir, o peso da mão de Clopin, em poucos minutos, torna-se insuportável. Deve ter sucedido um desvio – pensa Clopin, com uma secura na boca, característica privilegiada de quem dormiu pouco tempo – , só estava habituado a carregar um único peso: a cabeça, e agora esse peso ocupou outro local: a minha mão. Apetece-me crer, então, que apenas tenha ocorrido um desvio de qualidades: o peso da doença interior (a cabeça) passou a ser uma doença exterior (a mão). Clopin, por este facto, e ainda de olhos fechados, concluiu o seguinte: o peso da minha mão direita é uma doença menos dolorosa, mas é, sem sombra de dúvidas, uma doença mais cansativa.
Clopin tinha a mãos cheia de moedas, moedas pesadas.
Clopin abre os olhos e apercebe-se de que no seu corpo trémulo, os olhos tristes e a respiração cansada trouxeram a vantagem monetária para compensar os recursos emocionais frágeis: a tortura tinha chegado há uma semana, quando conseguiu apenas alimentar um dos filhos – o mais novo – com um resto de leite que tinha comprado com o pouco dinheiro que ganhara no seu último emprego.
Da primeira vez que esticou a mão para saber as condições climatéricas, Clopin percebeu que o dinheiro lhe surgia sem esforço; ali estava uma esplêndida forma para obter a compreensão da Humanidade: exponho a desgraça, tornando-a pior do que ela já é, respondia Clopin, quando alguém tinha coragem de lhe dirigir a palavra; quando lhe perguntavam: o que é que se passou com o senhor para ter de se submeter a isto? Clopin tinha a resposta estudada, a resposta mais curta e mais verdadeira, e repetia-a sempre que fosse necessário: exponho a desgraça, tornando-a pior do que ela já é, nada demais, ... , antes tinha a desgraça toda dentro da cabeça, porque não sabia como havia de ganhar a vida, agora tenho a desgraça na minha mão direita, e é ela que me ajuda a sobreviver.

Susy falava uma outra língua que Clopin nunca poderia perceber. Susy tinha assento na Assembleia e era muito conhecida pela população e aqui está uma diferença linguística da civilização: ter um bom trabalho e ser bastante popular.
Susy passou durante dois meses na mesma rua que Clopin. A sua distinção não a deixava ocupar o outro lado do passeio, onde os menos favorecidos se sentiam mais à vontade com a pouca higiene; nem para lhes sentir o cheiro, reflectia Susy, que não conseguia, desde criança, resistir a certas experiências práticas. O cheiro era o mais importante para aquela situação: como é que deve ser o odor de quem se rebaixa ao ponto de ter de pedir? De facto aquele corpo caído sobre si atraía-a, talvez fosse a necessidade de lhe espreitar o rosto; um rosto tem sempre mais palavras que um nome próprio, reflectia a senhora Susy, que era uma das deputadas da Assembleia mais reconhecidas pelo seu profissionalismo extenuante.
Nos dois meses que Clopin ali esteve, Susy não atravessou a estrada, embora fosse essa a tentação; não analisou aquela mão, embora fosse essa a sua necessidade; mas também não recuou, apesar da vontade de se aproximar.
Um dia, ao regressar da Assembleia, a rua quase deserta deixou que uma respiração diferente frequentasse a coragem da senhora deputada. Susy decide atravessar a estrada, de perto o horror tem mais carne viva, pensa ela para si. Junto a Clopin, Susy decide não tirar dinheiro da sua carteira. Decide que a solução não está na riqueza nem na pobreza. Decide apenas segurar na mão que suporta o monte de moedas: amparo-lhe o peso, explica para si, o peso de ter de pedir. Clopin, instantaneamente, sente uma leveza. Abre os olhos, vê uma mulher bem vestida e cheia de jóias junto a si. Ela não diz uma palavra. Não acontecem nem perguntas nem respostas. Clopin está feliz, uns minutos de felicidade, é o que sente; uns minutos de felicidade por não estar a acontecer qualquer peso em qualquer parte do seu corpo. A senhora deve ser médica, observou o mendigo. Susy abana a cabeça, dizendo que «sim» apenas para não ter de revelar a sua voz. Clopin apercebe-se desse silêncio contagioso e pensa que talvez esteja enganado: algumas doenças não são tratadas pelos médicos, são tratadas por pessoas. Susy sorri para Clopin e vai-se embora. Clopin soube por momentos o que era não ter uma única dor, por isso levanta-se. Optimista, passa a estrada para o outro lado. Cá fora encontra um letreiro que diz precisa-se de um empregado de balcão. Entra no café, o seu aspecto provoca um desconforto no paladar dos utentes de vestidos compridos e de jóias nos dedos. Clopin tenta disfarçar e, perto de uma porta que dá para a cozinha, pede exaustivamente ao gerente do estabelecimento que lhe dêem uma oportunidade. O gerente pede ajuda aos empregados de balcão para lhe retirarem aquele mendigo sujo rapidamente. Foram precisos três homens para o retirarem dali – mas as forças, quando se tornam inúteis, só servem para atrasar ainda mais certas medidas. Clopin cai mesmo no chão, mesmo à frente da porta do café. Três senhoras muito parecidas passam por cima dele, uma delas pisa-o duas vezes de propósito por este lhe ter estragado o lanche. Clopin, exausto e com os olhos inchados do esforço, estica o braço e pergunta-se: estará hoje a chover ou a fazer sol?


autor: rui almeida paiva

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