quarta-feira, 4 de março de 2009

segunda tentativa

segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio


Um vestígio mínimo de moralidade sobrevive sempre depois de uma fatalidade.

Começamos por aprender o fazer: estar de pé sem cair, comer com garfo e faca, trocar palavras por outras mais eficazes; aprendemos a ler e depois a escrever, e depois a ouvir e no final a escutar; sobretudo a ter olhos que reparam. E depois de aprendermos a sermos normais? Depois, depois é preciso sermos cuidadosos na arte de irmos perdendo a normalidade.

René, que estava proibido de estabelecer uma relação física com a natureza, ainda não tinha um único segredo guardado; e uma criança sem segredos é uma criança sem amparo: cai sempre mal em cima da realidade.
Uma queda do segundo andar da realidade provocou em René uma lesão nos tímpanos. Com sete anos adquire-se a totalidade da audição – tinha-lhe confidenciado um dos médicos – com sete anos o corpo está finalmente apto a exercer uma interpretação da melodia; o ritmo torna-se significado; o ritmo aloja-se nas análises de uma teoria. Apenas nesta idade os arrepios se agarram à pele quando um trovão embate no solo, já verificaste isto alguma vez, meu querido paciente? René ainda não havia experimentado o arrepio: as paredes do seu quarto eram objectos sem som, por isso, quando René fez sete anos, não aguentou mais e saltou do segundo andar à procura da sua musicalidade. Como todas as previsões anunciavam, René caiu mal, e mesmo por baixo das nódoas negras apenas uma ponta ruidosa da realidade.
René aos sete anos deixou de ouvir a mãe.
Aos oito deixou de ouvir o pai.
Aos doze anos deixou de ouvir os sons desagradáveis.
Com vinte e oito anos deixou de ouvir o mar, a floresta, a chuva, a tosse e os espirros.
Aos quarenta e seis anos apercebeu-se de que os outros se tinham tornado mudos.
Por volta dos cinquenta e nove anos deixou-se de ouvir a si próprio.
Quando fez setenta e sete anos René ficou completamente surdo.
Nesse ano René poderia finalmente descansar delicadamente: enquanto estiver surdo, poderei cair todas as vezes que quiser sem me aleijar.

Autor: Rui Almeida Paiva

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