quarta-feira, 25 de março de 2009

vigésima primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Ignoramos a verdadeira grandeza do sorriso. Se alguém nos quer mal, afastamos os cantos da boca, submissos, e convencemo-nos que somos os principais discípulos da infelicidade; e depois, perante a instabilidade da conversa, ainda dizemos: desculpe, Senhor Windsor; desculpe se estou a incomodá-lo, mas ao que parece maltratou e abusou novamente da minha filha, e ela continua a jurar a pés juntos, que foi o Senhor o principal agressor. Depois ouvimos o silêncio e um rosto de incómodo como resposta, e o que nos resta é sairmos apressadamente: peço imensa desculpa, Senhor Windsor, espero não lhe ter feito perder o seu tempo precioso. Ao proferir «o seu tempo precioso» o sorriso ainda lá tem de estar. Os cabelos caem para a frente, porque a cabeça cai para a frente, de vergonha, obediente. Com a cara tapada não é preciso saber esconder as lágrimas: o sorriso desaparece, decidido a não voltar noutros momentos mais agradáveis. Fechamos a porta com grande pontaria, e na porta deixámos mais uma oportunidade de mostrarmos alguma dignidade. Um verdadeiro pai deveria lutar contra tudo e contra todos para amparar a sua filha da tortura.
De volta a casa, o frio é uma presença muito jovem. Cristhy, a mãe, dobra duas peças de roupa escuras: é para levares amanhã ao funeral. Olho para o quarto, a porta entreaberta deixa prever meia dúzia de velas e um corpo que reconheço como sendo “a minha menina”. Não aguentou, explicou-me Cristhy, a nossa filha não aguentou as feridas que a rasgaram por baixo. Outro sorriso atinge-me nestes momentos menos credíveis. O sorriso, arrastado pela desgraça, divide o que está entre um coveiro e a cova ainda por fazer. Cristhy apagou o lume do tacho e disse que já vinha. A faca que cortava as batatas e parte da casca permaneceu nas mãos de Cristhy. Em cima da mesa, a casca de metade de uma batata descascada.
Quando Cristhy chegou, já me tinha deitado, era muito tarde.
No dia seguinte, ao me levantar, recebi a notícia que o Senhor Windsor tinha sido morto com uma faca espetada num ouvido; lá dentro, dentro do ouvido do Senhor Windsor, o verdadeiro mistério confundia os familiares: como é que casca de batata pode ter sido encontrada no cérebro de tão distinta personagem?
Aqui tens o teu fato fúnebre, hoje terás o funeral da tua filha e do teu patrão para preparar. Peguei na pá, entrei no cemitério privado da família Windsor e, enquanto escavava o buraco daquele homem que costumava abusar da minha filha, um sorriso interessante colocou-se em posição de avançar, mas a dúvida manteve-se: seria aquilo, finalmente, um sorriso verdadeiro?


autor. rui almeida paiva

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