sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Um veículo desconhecido parou

Um veículo desconhecido parou à minha frente. Parece estar à espere que entre. Tentei perceber como aqui chegou. Ninguém está lá dentro para perguntas. A porta está aberta. Admito - estou tentado a partir de novo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Cheguei. Partirei novamente?

(finalmente no mesmo sítio, depois de cem viagens, percebo, olhando-me, que o sítio do meu corpo mudou-se)

Estória 0

De face redonda o homem é belo e desliza e é negro na pele e na forma. O negro avança: onde pode ele caçar se não seguir caminho? Que bonito, o preto, quando sorri. E apresenta-se com uma boina da cor da pele e tudo aquilo faz parte da encenação escolhida por si ao pormenor. O bar encheu e a caça alastra-se pelas mesas. Duas vezes seguidas pede a duas brancas para que lhe dêem a honra para a dança que mesmo agora deu início. As duas abanam a cara na horizontal. Está com pouca sorte, penso eu. Coitado, continuo a pensar, quando uma terceira tentativa lhe é recusada. Mas o preto continua a rir com vontade e com brilho: alguma terá as características de uma presa cansada ou de uma presa que já aqui chegou aleijada. Uma quarta tentativa, e lá vai o negro, neste caso na minha direcção. Abeira-se da mesa e do meu corpo. Uma dança? diz-me. Desculpe mas não sei dançar. Ele fixa-me. Não me faças uma coisa dessas. Ajoelha-se. É só um bocadinho! A música aninha-se no baloiço e empurra-me. Ergo-lhe a mão – aí vamos nós. Quantas cores tem um preto, quantas cores fixas ao modo de voar? O preto ajeita-se. Cola-se. O preto tem África nos pés e muito atrevimento nas mãos. Fechei os olhos, será esta a melhor maneira para tentar não fugir? Cinco músicas depois continuei de olhos fechados e com o atrevimento a ondular entre as pernas. Como pode cheirar a terra um homem que saiu de um ventre? Dez músicas depois: de olhos fechados. Inexplicavelmente percebi que não consegui fugir. Estávamos presos. Onde estarei, pensei eu, se não conseguir abrir os olhos? Décima quinta música: as mãos negras surgiram por baixo da blusa para averiguar quantas vezes o coração bate. Vigésima música: poderá alguém fugir da liberdade? Só da falta dela, reparo. Alguém que tem um reino e todas as leis por escrever, como pode esse homem fugir se não tem grades nem muros nem animais selvagens. Vigésima terceira música, abri os olhos e tinha o preto na minha boca.

autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

centésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Correm-lhe lágrimas e mais dez vêm a caminho. Vêm quantas forem necessárias para convencer uma aldeia inteira de que a viúva sente a falta do velho antipático.

Um milhão de crianças sabe o que é tirarem-lhe um brinquedo colorido das mãos – as lágrimas, neste caso, também sucedem às dezenas. Mas se morresse alguém importante, elas, as crianças, não trocariam por nada deste mundo aquele brinquedo específico e colorido pelo morto. A memória da criança é muito avançada: cinco minutos aqui, cinco minutos ali. E agora um bom caramelo substituirá o desgosto colorido em fracções de segundo.

A memória das viúvas é muito atrasada: sofre-se quarenta anos com um homem que as humilha com vontade e depois terão obrigatoriamente que fazer o seu papel apenas no dia do velório. Tudo acalma nos dias que sucedem ao luto e o silêncio, afinal, é tardio – demorou quarenta anos a aparecer. O silêncio até poderia ser divertido, mas não foi assim que se acostumaram. Maus tratos e muitos insultos faziam parte da única companhia que lhes era oferecida e agora um vazio de som não é aproveitado. O silêncio também se explica ao longo do tempo; também pode ser apreendido à força – nas prisões, por exemplo – também pode ser apreendido da forma que se ensina um rafeiro a pôr os talheres de forma correcta numa mesa em que vão ser servidos dois pratos: um de peixe e um de carne.

A viúva, como é seu costume, põe dois pratos na mesa e os talheres ao calhas: duas facas, dois garfos e duas colheres de sopa. Não está, evidentemente, preparada para o que se segue.

Como está a carne hoje? diz ela a meia voz, ouvindo-se em eco. Não existe resposta – as suas palavras naufragaram para dentro do seu coração. Também não falará mais sozinha como se ali existisse alguém – as palavras fizeram sentir-se material estragado. Resta-lhe a vontade para pensar que a solidão também tem medo de um metro quadrado de isolamento. Por incrível que pareça, a viúva apercebe-se que lhe tiraram o seu brinquedo colorido mas nunca se aperceberá do essencial – é preciso muito treino para se gostar deste tipo de silêncio em que não existe um único ruído.

Estória 2

As algemas são o jornal de negócios das autoridades. Abrem-se como páginas que contam extractos bancários e fecham-se porque existe um limite de notícias por página.

Porque era gordo e com muitos pêlos, o criminoso é isolado do resto do mundo que o atinge. O aço das algemas apertam-lhe os ossos que sofrem. Foi encontrado, o criminoso, com uma criança nos braços e a criança não tinha rosto porque o rosto estava desfeito e quando se elimina esta zona anatómica não só se dificulta a identificação do cadáver como se perde a possibilidade de se ouvir um último testemunho da ocorrência do crime.

Não foi o gordo que ateou fogo ao cabelo da criança. Foi a própria criança, que, com uma caixa ali à mão, foi tentando perceber, através de um conjunto de fósforos, de como funcionava a dor. O homem gordo ainda chegou a tempo de tentar combater as chamas: utilizou os lábios e, com beijos intensos, anulou o incêndio.

Dos crimes mais terríveis é encontrada justiça para tanto mal: «o senhor é acusado de um homicídio de último grau – vinte anos de prisão». A única filha do gordo era cadáver e o gordo não ouvia e não respondia porque a filha era a única resposta para os seus problemas. «Vinte anos de cadeia em isolamento total».

Vinte anos foram passados sem se entender que o tempo não se revolta. Por enquanto, nos últimos dias, deixaram o gordo respirar ao ar livre, no pátio. O gordo não queria nenhum pátio, queria era a sua filha, que não apareceu no escuro, da jaula, nem para um beijo de boa-noite.

autor: rui almeida paiva

terça-feira, 27 de outubro de 2009

nonagésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Com lealdade, o velho segura firme o objecto que contém um líquido e deposita um comprimido sobre a língua e depois despeja água pela goela. Um objecto pode-se manusear com destreza. Ao coração não o tratamos como objecto porque não nos podemos servir deste como um livro ou como um tacho ao lume. Completamente dissolvido nas paredes do estômago, o comprimido começa a cumprir a sua função: batimentos cardíacos menos velozes. Parece que o velho continua com o copo na mão; agora vazio, o copo não serve. Ele pensa: agora não tem função. Utilizei-me dele e posso deitá-lo fora. Deitá-lo fora, ao copo que ... ups ... é de vidro. Estilhaça-se no chão.
Temos que pensar sozinhos: o mundo atira-se contra nós e temos de o utilizar, temos de ter em atenção as qualidades dos utensílios.
Pensa – o velho não teve em atenção o material de que é feito o copo; atirou-o ao chão como plástico e não como vidro. Um empregado aproxima-se com uma pá e uma vassoura. «Não faz mal, acontece a qualquer um».
Quem reflecte agora é o causador do prejuízo – o velho está doente e pensa: como é injusta, a vida; posso tocar nos objectos mas não posso tocar nos órgãos com pouca saúde. Para ter acesso ao coração seria necessário um cirurgião e um rasgo no peito. Seria o seu desejo, um dia estar numa cama de hospital onde pudesse estar acordado e onde tivesse o corpo todo em alerta máximo. Facilmente o bisturi rasgaria aquela pele fina. Depois o buraco aberto levaria o idoso a tomar a atitude certa: uma mão apanha o coração. Segura-o. Poderia concerteza tocar nele e levantá-lo. Depois teria de agir: ou colocá-lo de novo no lugar (dentro do peito), ou deixá-lo cair para saber se este é de plástico ou de vidro.


Estória 2

Oportunamente faremos o nosso juízo.
Vinte meninos, num campo de jogos, dentro de uma escola, utilizam a emoção para cansar o corpo. Um dos alunos não faz aula, tem asma e tem medo de morrer mais uma vez. Um dos golos foi marcado com a mão. O asmático apaixona-se pela mão e pelo golo que foi marcado de forma irregular – se corresse atrás da bola durante quarenta minutos seria a respiração a cometer uma irregularidade.
À noite, quando adormece, o menino que não faz aula não tem qualquer problema – corre oito horas seguidas e marca golos com os dois pés. Mas hoje é dia de sonhar exaustivamente com o mesmo momento: a mão que empurrou a bola para dentro da baliza . Deseja aquela mão – um desejo carnal, sexual. Percorre a mão e o braço e o corpo do menino mais velho da turma que marcou o golo e fica com asma mesmo estando dentro de um sonho.
Está na altura de ajuizar este acontecimento: a homossexualidade também poderá ser lançado como se lançam dois dados de um jogo de sorte e azar, como se estivéssemos a jogar poker? Estaria hoje apaixonado por uma menina, o asmático, se a mão que marcou golo pertencesse à aluna mais reservada?


Estória 3

Isto que vos vou contar de seguida é horrível porque se passou com a minha filha.
Num parque infantil, junto ao gradeamento, estava ela a descansar quando passou um casal de idosos. O homem ia de cadeira de rodas e quase não falava porque tremia da boca e dos dedos e dos joelhos e estava muito doente onde quer que fosse. A idosa tinha muita energia e distraía-se com um miúdo que devia ser neto. O velho furioso não queria sair de casa, quanto mais meter-se na confusão de um parque.
Ficaram frente a frente, a minha filha e o velho. Todas as crianças gostam de observar aquilo que lhes parece diferente. O velho incomodava-se com os olhos obcecados da minorca. Tentando disfarçar, insinuava-se aborrecido para a esposa e esfregava o rosto, fingindo-se ensonado. Mas quando passava visualmente pelo perigo, lá estava o raio da catraia a chateá-lo com aquele olhar irritante.
Se não fosse a minha filha, eu não estaria para aqui a escrever sobre isto; mas era ela e eu não soube o que fazer porque passaram muitos minutos e ela desenhava todas as rugas do velho – contava-as, possivelmente.
Era notório o que ali se estava a passar: o velho estava com uns ciúmes espinhosos daquela menina que era a minha filha: era essa a razão do seu incómodo. E eu quase chorei porque o velho, por fim, rendeu-se e cedeu fixar-se na pequena. A minha filha tem quinze meses. O velho não aguenta estar por cá mais quinze meses. Era esse o laço que os unia. E juro que esse ser humano prestes a sair (o velho) e este ser humano acabado de chegar (a minha filha) formaram uma linha florescente no ar que partia dos olhos de um e ia até aos olhos do outro. Os dois mantiveram um diálogo entre seres da mesma espécie. Ele, magoado, estava perante alguém que ainda agora começou e estava perante si, que estava quase a acabar-se. A criança, por sua vez, não tinha culpa de ainda ter tanta vida e antes de se voltar (sim, a minha filha, a minha única filha voltou-se cruelmente e foi brincar para o baloiço deixando o velho a chorar em cima da cadeira de rodas) antes de se voltar ainda acenou um adeus para aquele senhor diferente. A mãozinha rodou sobre si meia dúzia de vezes. Despedia-se do homem, a vida e a minha filha – as duas da mesma maneira inflexível e fria. E foi o que sentiu o velho: a vida a dizer-lhe adeus.


Estória 4

Frequentemente surgem os insultos entre um casal cansado. Alguém se transformou em mosca que nos passa junto ao aparelho auricular. O homem primeiro, depois a mulher – os dois moscas um do outro – atropelam-se. Zumbem as propriedades frágeis, propriedades com defeito. O homem deita-se no sofá com os pés descalços. Os pés descalços fazem confusão à mulher que acumula o dever de amar por sentido de obrigação. «Tira imediatamente os presuntos aí de cima, estás parvo ou quê?» Que grande perigo correu ela agora, que não aprende nunca. Dentro do peito deitado, algo tremeu; algo duro prestes a partir dentro do peito do homem que fecha os olhos e respira fundo. No trabalho, logo de manhã, alguém entrou no táxi e furiosamente disse: «vocês, os burros, nem para guiar estão aptos.» Ouviu também durante o dia frases como estas: «está estúpido ou quê, porque é que não passou o vermelho?», «com que então os atrasados mentais também têm possibilidades de passar no exame de código», «já não existem cabrões que sabem trabalhar com brio», «quanto recebe por fazer indecentemente o seu ofício?».
O homem está deitado com os pés descalços em cima do sofá e pega num lenço imaginário e limpa as frases que ouviu durante o dia de trabalho e de repente, mesmo aos seus ouvidos, a mosca varejeira: «agora também és surdo – estás a impregnar o sofá de chulé. Tira-me esses pés nojentos aí de cima.»
No lenço imaginário não ficou tinta nem sujidade nem ofensas. Parece que no peito do taxista existe uma lápide esculpida e não uma folha que se pode amarrotar e deitar fora.
Teria de começar a animação: o homem sente-se apto. Foi violado ininterruptamente nas profundezas. Da dignidade que caiu de uma falésia o homem levanta-se: já estou habituado. Está descalço e a mosca grita: «agora estás a sujar o chão. Estou eu o dia inteiro a esfregar para chegares e estragares todo o trabalho.» O homem enche a mão como a mercadoria enche o comboio: de objectos duros; e despeja a acumulação de pesos num único impulso, num só soco de pugilista que foi o resultado de todo um dia a ser beliscado pelo mundo. A mulher cai que nem uma mosca atarantada. É teimoso, o raio do animal, pensa o homem, ainda bate as asas.


Estória 5

Raquítica, a costureira tem por hábito produzir muitos buracos que se ligam. É como na fidelidade, explica às duas colegas, furamos a confiança dos maridos e ainda reclamamos por melhor. Para a costureira os anos passam como duas mangas de uma camisa: ou muito curtos ou muito compridos. Eles perfilam, os anos, e apresentam-se no seu exército que foi à guerra apenas uma ou duas vezes. Dessas poucas tentativas não teve coragem de pelotão: não feriu sequer a inutilidade. Outras vontades têm sido prioridade: é ouvida frequentemente a conversar com os tecidos. As colegas ouvem-na contar histórias às bainhas e aos colarinhos enquanto os retoca – personagens muito queridas e reais para a costureira. Parece que até fadas e monstros contêm os seus episódios inventados.
Quando chega a casa, nos dias tristes e chuvosos, a costureira parece um farrapo e prolonga-se, pela simples razão, de não conseguir acordar da sua imaginação. Bom dia meu escravo, diz ao seu marido que, com paciência, lhe responde bom dia alteza.
Aos domingos lá vão os dois à missa porque foi sempre um hábito e porque assim aproveita-se para passear um pouco. Para as cerimónias a costureira move os tecidos trabalhados com dom e veste-se de orgulho: foi ela que fez aqueles vestidos de alto gabarito e todos os fatos aprumados em que o seu homem se pendura. Antes de sair, o homem que a acompanha faz o favor de provar os casacos que lhe caem melhor. Mas se não há Deus, para que é que me interessam as camisolas e as calças elegantes. Não poderia ir tão bem de fato de treino? O que é que Deus tem que ver com aquilo que vestimos?
É o dia da semana em que posso exibir o meu trabalho e Deus é isso – ajuda-me a ter muita vaidade ao Domingo.
Nenhum dos dois é religioso. Riem-se por dentro quando o padre utiliza refrões em que todos parecem ser obrigados a levantarem-se. Eles também se levantam, não por Deus, mas pelas vestimentas que fazem inveja.
Diz a costureira: quem não gostaria de estar tão bem apresentado perante a fé?
A costureira, quando entra na igreja, segreda: aceitas casar comigo para sempre? É altura de viver como uma verdadeira personagem do país dos sonhos: és o meu príncipe encantado. O homem diz que «sim» porque a satisfação da costureira é uma verdade. Depois assistem à missa de mão dada. Todas as semanas me caso e peço um desejo.
Amo-te, segreda a costureira no final da cerimónia. Também te amo, responde o príncipe, que, quando chega a casa, só se quer enfiar na oficina e aparafusar peças para o motor de arranque da sua felicidade em estado lastimável. Só precisa de responder também te amo para adquirir o passe para o sossego dos próximos dias, para que a louca da sua mulher não se deite o dia inteiro a chorar e a berrar de desgosto. Duas das peças do motor precisam de óleo – suja as mangas da camisa mas a princesa já está a tratar disso. Em frente da máquina de costura prepara com entusiasmo o seu próximo casamento.


autor: rui almeida paiva

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

nonagésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

– Vai para ali e de longe diz-me que impacto tem a minha figura enquanto escrevo um poema.
– De longe só tens beleza quando não escreves, quando não te escondes.
– Vai agora para ali, para a frente, e diz-me se me consegues encontrar enquanto leio este livro?
– Consigo encontrar-te enquanto lês esse poema.
– Estranho, estava agora mesmo no capítulo em que percorria uma aldeia do século passado e mesmo assim tu viste-me. Já agora, o que é que achas dessa aldeia de onde acabaste de me encontrar?



Estória 2

Numa sala de aula um aluno participa, os outros não. Tem a cultura no cérebro como carga em cima do burro. O burro por vezes é teimoso e pára, e deixa cair a carga de propósito. O menino, nos intervalos, tenta deixar cair a carga, de propósito. Mas já não tem qualquer tipo de hipótese, foi identificado pelos restantes: ele é esquisito, sabe demais. Sempre sozinho diz «bom-dia» e «boa-tarde» aos professores e os professores não param, continuam. Destaca-se pelo abandono, o aluno. Alguém terá coragem para o abraçar uma única vez? Senta-se sempre no mesmo banco, junto ao porteiro, para poder ficar mais perto de uma ambulância no caso de o agredirem novamente. Mais uma aula, ainda agora começaram; o aluno sabe muito de Geografia mas não abre a boca, engana-se de propósito. Um dia, se continuar a falhar nas respostas, o aluno escorregará e não saberá subir as escadas novamente até ao topo. Novo intervalo: 15 minutos. O mesmo banco. Quinze minutos. Dois professores entram sorridentes e cumprimentam-no, mas ninguém vê o que sucede: um menino escorrega, e deixou a sabedoria lá em cima, no topo.


Estória 3

É para ela um bom método – utiliza as botas que aleijam prevenindo-se assim dos outros desgostos, dos outros sofrimentos. As botas não combinam com o resto, com o resto do corpo. Um corpo esquelético num par de botas gordas. Doentias, as botas têm aqui semelhanças com o seu utilizador, na doença. Previne-se porém um andar elegante coxeando-se como um cão atropelado. Sabe ladrar a quem se aproxima, o corpo. Quem não tem pena do bicho? Mas a garganta tem frio, o que é costume para quem não conversa há dias. Não se exercem as cordas vocais por impedimento dos outros, que são monstros devoradores. As botas, entre elas, são desagradáveis, agridem o calcanhar como a chuva agride a colheita fora de época. Veremos como se safa o calçado nesta subida íngreme. A meio, a meio da rua que cansa o corpo esquelético (que pertence a uma mulher de trinta e quatro anos), o esqueleto desiste porque o calçado não aguenta tanto chão que não anda por si. Dois homens aproximam-se, vêm de cima e são como uma função aritmética, como uma nódoa da humanidade. Ela geme. Não se desvia, geme. Eles só querem olhar para ela para aguentarem a pena o maior tempo possível. Não tiram os olhos. Conseguiremos lidar com tanta desgraça? Ainda não passaram os dois homens e uma dor no peito da mulher torna-se insuportável. Ela pensa que existe uma distância para tudo. Pensa na distância numerável do seu peito à extremidade inferior, aos pés ensanguentados. Os dois homens estão tão perto que ela não aguenta e alivia o seu peso, que se dirige para o chão. Um corpo estranho numas botas que não combinam tenta cair bem. Os dois homens esticam os braços e acolhem a desgraça num único gesto. Mesmo tendo desmaiado ela sente que está a ser tocada. Sente-se enojada. Não gosto quando me tocam. O chão fica finalmente duro. Os homens afastam-se. Ficam com medo. A mulher tem pouca respiração e muito pouca higiene e não acordada nem com um tiro numa perna. A mulher tem a face fria – uma boa sensação, finalmente. A saliva escorre-lhe, ou será sangue? pensa a mulher.


Estória 4

Como podes tratar a pobreza? Dando-lhe dinheiro ou dando-lhe um pouco de higiene? Um pouco de dignidade, talvez.
Embebes álcool etílico em algodão e ofereces a tua maneira de resolveres os problemas. Quem encontras com estes requisitos, com os requisitos da pobreza em estado puro? Ali está o desalojado que se parece com um animal, com um réptil pegajoso. Ele abre as mãos e resmunga porque não sabe o que fazer com o algodão encharcado. Não podes sarar a desgraça como se sara a carne, é a conclusão que tiras da tua boa-vontade.


autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

nonagésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Nem tudo começaria assim: sem personagens e sem diálogo e sem episódios incompletos: aos altos e baixos, tristeza e alegria.
Podíamos jogar uma partida de cartas antes de seguirmos caminho, disse o primeiro marinheiro. Tenho meio baralho, explicou o segundo marinheiro, a outra metade foi enterrada, lembraste? Jogamos na mesma: os pontos possíveis não são tantos mas será possível determinar um vencedor e um vencido. Metade de um vencedor e metade de um vencido, diz o segundo marinheiro, enquanto baralha as cartas velozmente.
Dois anos antes um subchefe do pelotão tinha utilizado uma estratégia para garantir a sua superioridade: um subalterno nunca poderá adquirir uma vitória completa enquanto não subir de posto, enquanto não matar muitos homens e muitos barcos. Dois desses marinheiros estão habituados a servir com um sonho: um dia também eles serão servidos por marujos novatos. Nesse dia (se esse dia chegar) teriam finalmente o baralho um baralho de cartas na mão e a possibilidade de uma verdadeira vitória. Uma vitória completa. Tirariam metade do baralho de cartas de um dos marujos para completarem, finalmente, um verdadeiro vencedor e um verdadeiro perdedor.



Estória 2

Num belo café de bairro, nos últimos dois anos, não se tem conhecido pessoas mais sábias: ali se sentam, de manhã à noite, e por ali ficam, sem fazer nada. Com grande sacrifício se consegue não fazer nada em dois anos: é muita dignidade junta para uma única pessoa. Um desses homens, muito de vez em quando, tenta falar sobre um assunto: sobre o aumento do custo cafeína e da pastelaria fina, mas não passa de uma tentativa porque ninguém lhe responde. Falar é quebrar esta coisa belíssima que é permanecer no mundo: por isso nenhuma resposta, nenhuma opinião. Seriam maltratados aqueles que o fizessem. É preciso muito mais inteligência para utilizar um bom silêncio do que um bom argumento. Seria visto como um traidor infiel da vida aquele que desse um passo, aquele que se esquecesse dos velhos tempos de inutilidade e de espera. Como é bom não fazer absolutamente nada, deixar de pensar é o próximo passo. Mas para isso são necessários pensamentos, que por enquanto ainda nem um se viu por aquelas bandas.



Estória 3

De face redonda o homem é belo e desliza e é negro na pele e na forma. O negro avança: onde pode ele caçar se não seguir caminho? Que bonito, o preto, quando sorri. E apresenta-se com uma boina da cor da pele e tudo aquilo faz parte da encenação escolhida por si ao pormenor. O bar encheu e a caça alastra-se pelas mesas. Duas vezes seguidas pede a duas brancas para que lhe dêem a honra para a dança que mesmo agora deu início. As duas abanam a cara na horizontal. Está com pouca sorte, penso eu. Coitado, continuo a pensar, quando uma terceira tentativa lhe é recusada. Mas o preto continua a rir com vontade e com brilho: alguma terá as características de uma presa cansada ou de uma presa que já aqui chegou aleijada. Uma quarta tentativa, e lá vai o negro, neste caso na minha direcção. Abeira-se da mesa e do meu corpo. Uma dança? diz-me. Desculpe mas não sei dançar. Ele fixa-me. Não me faças uma coisa dessas. Ajoelha-se. É só um bocadinho! A música aninha-se no baloiço e empurra-me. Ergo-lhe a mão – aí vamos nós. Quantas cores tem um preto, quantas cores fixas ao modo de voar? O preto ajeita-se. Cola-se. O preto tem África nos pés e muito atrevimento nas mãos. Fechei os olhos, será esta a melhor maneira para tentar não fugir? Cinco músicas depois continuei de olhos fechados e com o atrevimento a ondular entre as pernas. Como pode cheirar a terra um homem que saiu de um ventre? Dez músicas depois: de olhos fechados. Inexplicavelmente percebi que não consegui fugir. Estávamos presos. Onde estarei, pensei eu, se não conseguir abrir os olhos? Décima quinta música: as mãos negras surgiram por baixo da blusa para averiguar quantas vezes o coração bate. Vigésima música: poderá alguém fugir da liberdade? Só da falta dela, reparo. Alguém que tem um reino e todas as leis por escrever, como pode esse homem fugir se não tem grades nem muros nem animais selvagens. Vigésima terceira música, abri os olhos e tinha o preto na minha boca.



Estória 4

Com tanto silêncio por escolher, foste logo desabafar no corpo de uma jovem. Pequenos pormenores inventam-se, como: teres nas mãos a vontade de acudir aos seios duros. Outros pormenores não podem fugir à realidade: abres o fecho das calças e o membro encontra vida dentro das cuecas ingénuas e sensíveis da menina quase adulta.
Sabemos escavar porque existem vontades suicidas como esta: a de ter uma tela e um cadáver para desenhar.
Um homem abre um espaço na terra como abre uma ferida na amante porque é ambicioso. A amante jovem ouve-te e tu dizes-lhe já não me serves e ao mesmo tempo não encontras nada dentro da cova que fizeste. O homem tem um quintal: está velho, o homem e o quintal. O homem pensa na jovem que dormiu ao seu lado e não tem sementes, tal e qual como o seu quintal, que durante seis anos ao sol secou completamente por falta de água, por falta de chuva. Por falta de sensações o homem secou por falta de sensações. Ali nada pega, dali não nascerá vida. Nem um fruto. Infelizmente. A solidão é como uma dificuldade de dicção: tentamos utilizar palavras à justa e só saem sílabas que ninguém entende.
Poderás ainda reconciliar-te com a tua desgraça: pegas na inchada e na pá de manhã e depois de tarde: por ali procuras apenas animação. Sem dúvida que a menina que dormiu ao teu lado não te fez nada bem. Agora escava porque não tens outra solução e porque é muito cansativo estar ao Sol e ter tantos ossos em actividade. O buraco no quintal é agora enorme. Nem uma semente, nem um insecto – tudo seco. Ali está a tua ideia, concretiza-a. O homem salta para dentro do buraco. A ideia concretizou-se – um buraco e uma semente velha por germinar. Fez-se depois um silêncio profundo: alguém conseguiu perturbar a natureza por instantes.



Estória 5

Quem não tem muita força muscular e carrega dois sacos de compras muito pesados devia desistir. Muito peso para pouca fome. Muita raiva para pouco ócio. Entramos em pânico, hoje em dia, como facilidade: somos também desonestos facilmente mas isso é outra história.
Ainda não existem nomes para as fobias mais recentes.
Alguém carrega dois sacos de alimentos por preparar, por descascar, por confeccionar. Sentes-te mal: estás fisicamente agoniada: é muito peso para quem não tem apetite. É a raiva e o tédio, estes dois sacos. Gemes. Olham-te porque gemes e porque deixas cair os sacos e porque corres a chorar. Uma dúzia de ovos partem-se de imediato e escorrem: mancham o chão de vergonha. Como se chama esta fobia?
Tens a responsabilidade de alimentar três filhos insolentes e um homem que te enoja.
Como se chama esta fobia?
Encontrarão um nome para este problema, os psiquiatras, no dia em que te fizeres notar. Descansa que tudo um dia se torna doença. Um dia serás tratada como uma verdadeira doente, uma doente com direitos e deveres e não como uma mulher pouco funcional que já não consegue fazer refeições.
Os três filhos chegam a casa, procuram o jantar quente antes de procurarem pela mãe. Não há comida por ali. Saem de casa para procurarem uma refeição e não chegam a confirmar se ainda têm mãe. Isso já não lhes interessa. O homem chega depois: nem uma batata cozida nas várias panelas vazias. Também sai de casa sem se lembrar de procurar pelos filhos e pela esposa.
Deitada numa marquesa, a mulher nua e um neurologista que já começou a operá-la. Em vez de rasgar o cérebro da senhora que foi encontrada estranhamente a atirar os sacos das compras para o chão, o neurologista foi direito ao órgão que precisa de atenção. Cava-lhe o peito, o cirurgião, em busca da alma, será lá que encontrará o nome para a sua nova fobia.


autor: rui almeida paiva

terça-feira, 20 de outubro de 2009

nonagésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

A caligrafia do poeta nunca aparece no livro e o morto comeu arroz misturado com carne e nada lhe soube a veneno. Quem disfarça melhor? O poeta que se esconde atrás de um conjunto de letras que saem de uma máquina, ou o assassino, que preparou um molho de natas forte para não ser apanhado a meio da refeição?
Finalmente alguém percebeu que no estrangeiro tornamo-nos um utensílio, um móvel, um armário. Ninguém te percebe e tu gritas: que alívio, estou livre. No estrangeiro não existem patrões e pessoas chatas. Existem pessoas, apenas, e cada uma delas diz coisas indecifráveis. Será que eles também percebem o que dizem uns aos outros? Duvido. Com sons tão desnorteados não se pode construir um mapa que nos leve ao tesouro. Talvez seja mesmo verdade que não se entendam e que sua língua materna seja isso mesmo: dizer sons estranhos ao calhas para poderem comunicar, para se poderem perceber. Na Rússia, onde nunca estive, existem conversas impróprias; principalmente na cama das meninas que são vendidas aos Americanos. Nessas camas comunica-se por sons estranhos, mas mais audíveis. Berram, essas meninas, quando deitadas: parece que só assim as percebem. Parece que só assim é que se conseguem fazer entender.
Quem foi envenenado, o poeta ou a sua poesia? E onde foi encontrado o veneno, na máquina de escrever ou na caneta?



Estória 2

A avó aprendeu a matar a galinha e não a pensar sobre ela. Ensinaram-lhe a cortar o pescoço num único golpe e esqueceram-se de emprestar o machado para eliminar com tal perícia o seu destino. O destino também se mata cortando-lhe o pescoço. Isso sabia ela, mas isso era um outro instinto que não chegou a ser desenvolvido: não passou de mãe para filha. À galinha também nunca lhe ensinaram a voar, embora as asas lhe apareçam, sucessivamente, geração atrás de geração: de mãe para filha. E nisso um dia pensou a avó, por si, pois ninguém lhe ensinou a pensar. A galinha não é piloto nem nada do género; nem sequer vai à escola de aviação e graças a isso é muito realista. Quanto mais se voa mais se sonha. A galinha é a única ave que é ave e que nunca sonhou. Dentro da espécie não há melhor operário. E disso a avó não tem pena, não tem pena do trabalho, tem pena é de nunca ter visto uma galinha a voar.



Estória 3
Assim que dás início à tua caminhada apercebes-te que deixaste algo de importante dentro de casa. Entras em casa e não queres acreditar: deitadas no sofás estão as tuas duas pernas a ler uma bom livro. É de facto uma tentação, mas lá foste tu sem elas, sem as tuas pernas, passear até à praia. Não sei como consegues mas eu cá nunca saiu de casa sem um bom livro.



autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

nonagésima quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1
Fazes uma ideia de quantas vezes o mundo se encontrou com a verdade? Nenhuma, aqui tens a tua resposta. Encontrou-se com o marginal, com a massagista, com o cineasta, com a lojista, com a prostituta, mas não com a vida. Tens à tua frente a mulher que amas e chegou o momento; engoles saliva para amolecer a voz e dizes: aceito casar contigo e passar o resto dos meus dias ao teu lado e amar-te até que a morte nos separe. Um dias as tuas palavras tornar-se-ão falsas e tens consciência disso, mas mesmo assim continuas a tentar porque, de facto, o amor é aquilo que se aproxima mais de uma verdade inventada.



Estória 2
A paciência pode ir ao velório mas não pode esperar pela vontade que tens de ir à casa de banho.
A menina acha que tem dois truques para ser feliz; a menina acha que tem ossos e músculos e que estes dois truques podem funcionar a qualquer altura. O que é que tens de especial para conseguires tudo o que te apetece? pergunta-lhe uma amiga recente. Ossos e músculos, responde-lhe ela. Também tenho uma casa e uma piada que resulta para desimpedir o engarrafamento.


Autor: rui almeida paiva

terça-feira, 6 de outubro de 2009

nonagésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Sabes quantos olhos tem um Homem que vê mal?

O homem vestiu-se de boneco para divertir as crianças que têm défice de magia por utilizar. Duas crianças adormecem a ouvir o boneco a contar uma história que fala de uma floresta escura e misteriosa. As outras duas crianças não adormecem, entram para dentro da floresta e descobrem o mistério mal lá entram. As crianças, por natureza, têm no instinto um animal e na mão um detective abstracto que as ajuda a não tropeçar nos medos previsíveis. Só quando regressaram da floresta é que as duas crianças viram o lobo, viram o lobo no lado de cá e não no lado de lá, deixando de seguida o homem vestido de boneco (vestido de lobo) cheio de nódoas negras.

Estória 2

Compreendes agora porque te digo que com os sapatos enfiados não se sente a verdadeira solidão?

Uma dieta à base de batidos não emagrece mais que um bom dia em frente do televisor.

Não tens vergonha de acrescentares um osso em vez de uma ideia?

A beleza de tudo isto (a beleza do mundo) reside nas certezas que não se esgotam: oferece uma navalha afiada a um bebé de catorze meses e verás como é feliz o desenho que dali sairá. A criança não confundiu a navalha com uma caneta. Reflecte e não tenhas medo de engordar: és tu que tens andado enganado: tens trocado o essencial pelo elementar: a caneta pela navalha.

autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

nonagésima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Imagina duas mil vozes a zumbir baixinho e ao mesmo tempo. Minutos e minutos intragáveis. ZZZZZZZZZZ, ZZ, ZZZZ, ZZZZZZZZZ. Tu estás ali, no altar, para ser admirado e é de ti que falam baixinho as duas mil vozes (sentes-te um animal raro dentro de uma jaula de um jardim zoológico evoluído). Querias poder sair ou então que o silêncio se manifestasse. Na realidade, querias apenas não existir e querias não mostrar a tua figura próxima da decadência: as costas encurvadas, a calvície saliente, o suor a manchar a camisa. Em pouco tempo chegaria a tua vez de falar e todos os presentes fariam a ligação lógica entre aquilo que escreves e aquilo que aparentas. Podiam fazer o favor de se manterem calados? gritas, enervado. Enlouqueceste?, dizem-me dos lados. Nunca tiveste medo de ser incómodo. Metade da plateia saiu logo, a outra foi saindo enquanto lhes ias contando episodicamente e detalhadamente o ridículo de se terem deslocado para ouvir falar um escritor. O vosso problema está nas palavras escritas, são tão estúpidos que nem conseguem limitar-se ao acto de ler. Logo que apanham uma oportunidade, lá vêm vocês por aí a baixo para matarem a curiosidade. Não vos bastam as palavras, seus desgraçados?

Estória 2

Temos o vento para nos fazer lembrar do fumo e do horrível desespero que é caírem-nos os dias como folhas. O velho goza com o nunca mais e despede-se com a mão levantada. Acena para o longe, dentro do seu quarto, em cima da cama. É para si que acena e aquele dia está prestes a entrar directamente para o esgoto, para onde os resíduos intragáveis são armazenados. Serão eliminados, serão exterminados como fezes, os dias. Como imundice. É para lá que o velho acena, não para se despedir ou dar as boas-vindas, mas para escorregar para o caixão onde se vai esconder do mundo. O esgoto do Homem está concentrado numa vala comum, é para lá que defecamos diariamente. É levado, o corpo, pelas artérias e pelas canalizações até chegar ao mar, até chegar ao cemitério onde toda a podridão desagua. Reduzido a matéria orgânica que alimenta os bichos esfomeados, o velho é capaz de continuar de mão elevada, e a acenar para si durante mais uma dúzia de meses. Mas a vida é como vos conto, é um horror; cheira mal, a vida.

Autor: rui almeida paiva

sábado, 3 de outubro de 2009

nonagésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Cuspires na cara de um amigo ou rasteirares alguém que admiras é um truque que resulta quando se pretende ser mau. Um avião posiciona-se entre o céu e o solo do teu crânio. Estás pronto para aterrar sem grandes percalços.

O peso que o estudante carrega na mochila não é utilizado para pensar, faz mal às costas: é burrice ter carga inútil e ter tantos livros por abrir.

Ela chegou e nem te falou. Enfiou-se no quarto com um amigo e o amigo viu-te e também não te falou. Foram os dois para o quarto dela. A tua filha está com um rapaz dentro da tua casa e é sempre o mesmo rapaz e é sempre para o quarto para onde eles vão sem te cumprimentarem. Não podes obrigá-la a falar, foi ela que te avisou: pai, se continuas a bater-me deixarei de te falar. Há nove meses que ela deixou de me falar. Há nove meses que não lhe bates. Pensas: talvez uma boa estalada a reanime. Mas hesitas em entrar no quarto embora seja essa a tua vontade. Não tens amigos que te possam aconselhar no momento, a estes cuspiste-lhes na cara e eles agora circulam noutras estradas á procura de outro tipo de afectos. Levantas-te. É melhor não arriscares, olha que a tua filha é a única pessoa decente que ainda aguenta estar ao teu lado. Apercebes-te: é a única pessoa ao meu lado. Sabes que seria pior que lhe cuspires na cara se entrasses dentro daquele quarto sem avisares. Entras no quarto sem a avisares e ela está a fazer aquilo, aquilo que todos nós sabemos. Fá-lo com calma e na perfeição. O pai assiste à sua filha a fazer aquilo e sente-se envergonhado e verbaliza qualquer coisa: peço desculpa por interromper. O pai sente-se aleijado. Foi-lhe amputado parte do corpo: a dignidade, nesse dia, foi servida quente e com um tempero eximiamente escolhido: a filha com um pénis na boca.



Estória 2

Não penses que um móvel se pode equilibrar se o encostares à parede. A parede também ela tem hipóteses de ser frágil. Encosta antes a parede ao móvel que tanto te custou a construir para que tudo te parece credível. Embeleza a tua inteligência com metal e com ângulos que provoquem lesões no cérebro. Abre o teu diário no dia certo e copia o que tens escrito nas páginas anteriores. Sabes e confias na tua sabedoria de doutor por isso não tens que te preocupar com os imbecis. Já com o diário na próxima página, na página em branco, transportas a caneta para o papel porque nas tuas mãos corre tédio e não tinta. Porque és um móvel de ferro escreves «NADA» com um ar soberano, com superioridade de letrado; mas, sem te aperceberes, o teu diário é um conjunto de paredes frágeis que precisam de se apoiar algures para não caírem no ridículo.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

nonagésima primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Alguém que leva um saco cheio às costas pode ser alguém que não leva um saco cheio de prendas às costas. O saco não entra pela chaminé e não entra num lar de órfãos que utilizam as pedras para se divertirem uns com os outros. O saco dirige-se para o caixote do lixo, vem de um restaurante e contém peixe que não foi servido. O saco que agora é desperdício poderia ser felicidade para o estômago de todas aquelas crianças e para todas aquelas pedras em que se transformaram. Também pode ser divertimento, matar a fome. Pena é não existirem instituições que recolham todos os alimentos abandonados e não os convertam em formas geométricas revolucionárias. Ser revolucionário também pode ser ter vontades cívicas. Dar condições para que os meninos deixem de utilizar a brutalidade como jogo e que sintam vontade de se vestirem de piratas e de bruxas e de constituírem uma verdadeira peça de teatro onde os piratas atiram pedras às bruxas e as bruxas atiram vassouras aos piratas.


Estória 2

Duas amigas tentam sobreviver comprando uma mentira. Entram numa boa livraria e compram quatro volumes do zodíaco. Duas amigas, frente a frente, lêem o signo uma da outra e riem-se entusiasmadas com aquilo que as espera. Gargalhadas são largadas para treinar a sorte. Para baralhar o azar que nascerá e morrerá com elas. A vida corre-lhes bem sobre cada uma das páginas e percebem que a mentira as faz sonhar com o que virá a seguir. «No mês de Agosto tente reparar em quem está à sua volta. No seu grupo de amigos poderá encontrar o seu verdadeiro amor.» A amiga morena olha em redor porque é Agosto e porque já está à espera há muitos anos por alguém para partilhar o corpo. Nessa altura a amiga loira deixa de se rir e a canção interior torna-se o princípio de uma ferida. A morena olha à volta e não a encontra a ela, à loira, que tem feito de tudo para ser descoberta.


Estória 3

Mais um parto que correu mal. Sobreviveu o pequeno e morreu a mãe do pequeno. Lá fora nasceu o Sol e o dia é para quase todos. Os outros, aos outros a noite continua com os olhos fechados.

Depois do pequeno almoço fiquei agoniado. Faz muito calor no meio do mar mas é no meio do estômago que a temperatura da água se manifesta com velocidade. O arroto não é aplicação directa de uma previsão meteorológica mas é indicador precioso para prever quando a praga chega à cidade, à população. Estou agoniado porque morreu a mãe e não o filho – o Sol teima em nascer para menos uma pessoa de cada vez.

autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

nonagésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Farias fosse o que fosse para ultrapassar a meta isolado dos outros. Alguém ameaça-te constantemente.

«Está a chegar atrasado ao trabalho porque estive lá de manhã e você ainda não tinha chegado. Voltei lá à tarde e também ainda não tinha chegado.»

«E agora encontra-me num banco de um jardim a descansar, não é? – disse-lhe com um sorriso desprezível. – Se vem aqui para falar de trabalho pode voltar e marchar para outro beco, aqui não se fala de trabalho, aqui espera-se.»

«Mas eu não lhe pago para isto, pago-lhe para estar lá, não aqui.»

Fostes-te embora. Sentaste-te noutro banco num outro jardim, à espera. Não lhe deste, portanto, mais explicações porque todos os dias voltarias a ter de esperar para chegares à meta isolado dos outros: para seres o último. E terias o teu reconhecimento de persistente um destes dias. Um dia fazer-te-ias notar. Um trabalhador destacável não pode andar sempre com pressa para apanhar o tempo certo – foi no que pensaste – não se pode andar sempre feito doido atrás do cronómetro.


Estória 2

Quase por todo o lado a preguiça faz filhos. Quando um homem tem vontade de atacar a fêmea que não se mexe, que tenta passar despercebida, não vem armazenado de respeito, traz armazenado prazer e um balde cheio de vontade de ser entornado. Um bom macho necessita de uma boa submissão e faz das coxas e do pescoço da vítima um bom salão de livros, faz dela uma verdadeira biblioteca importante. Incendei-a, portanto. Faz calor num incêndio e junto ao fogão do baixo-ventre. Está tudo a ser queimado como o previsto. Debaixo dele a mulher é preguiçosa no acto de intervir, no acto de manifestar a sua vontade. Deixa-se levar, a mulher, pela força quando a inacção atinge a língua e quando todos os restantes órgãos não são utilizados para fugir. Está amordaçada por baixo de um corpo e não está à vontade para dizer «não carregues aí» ou «tem cuidado, com pouca força» ou «não vás até ao fim para que não me aconteça nada de indesejável; para que não nasça nenhuma criança desta minha incapacidade para dizer não, incapacidade para dizer basta». Mas a mulher e a sua língua. Os dois problemas residem aí: a mulher e a sua língua pouco utilizada. Língua presa na vergonha, que, neste caso, se confunde com preguiça porque foi anestesiada, a língua, não à nascença, mas muito depois: na altura em que o corpo se ajeita nas formas. Linhas exigentes que atraem. A mãe da mulher chegou-se junto à mulher ainda menina (nesse dia em que as linhas se tornaram formas e se tornaram bonitas) e injectou-lhe o veneno. Espetou-lhe a agulha de cinco centímetros de comprimento e expulsou todo o medo possível: o teu primeiro homem será o teu único homem senão serás mulher de todos os homens e o teu pai verá em ti uma puta e não uma filha. A mulher, debaixo do homem, tinha a língua paralisada de muito daquele veneno que lhe tinha sido injectado porque aquele era o seu primeiro homem mas não o último. Aquele era um qualquer que se aproveitou da sua incapacidade para travar, então ele acelerou e não parou mais. Foi ali mesmo que se despistou: para dentro da mulher incapaz de se mexer.


autor: rui almeida paiva


sexta-feira, 18 de setembro de 2009

octagésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Tomaste como certa a felicidade tal e qual como o jornal que sai impreterivelmente naquele dia da semana. Ela tinha olhos claros, sardas salpicadas, cabelos lisos. Tu tinha-la a ela e não tinhas metade da sua beleza mas tinhas o dobro da sua provocação. Ela continha-se e tu expunhas-te. Era ela, no entanto, que em qualquer parte onde se dirigiam, que tinha a capacidade de se fazer reparar sem precisar de abrir a boca. Concentra-te. Esperaste dias inteiros com a ideia na cabeça, com a ideia de encontrar um homem que faça justiça a tal beleza que se anda a perder junto a ti. Procuraste na rua e todos os homens bonitos eram fixados e trabalhados na tua mente. Nas ruas procuravas a beleza que encaixasse nela, na sua pele pálida, nos olhos claros, no sorriso subtil. Falaste a alguns amigos que te conheciam e que não a conheciam de que estavas à procura de alguém bonito porque tu não eras bonito e ela era muito bonita para perder o seu tempo ali, junto a ti. Falaste-lhes das sardas pouco salientes, os cabelos loiros e lisos e naturalmente escorregadios. Ela tem tanto de brilho como tu de atrevimento, e tu gostavas de ser um pouco menos imperfeito para te sentires melhor ao seu lado. Memorizavas todos os homens bonitos e fazias com que eles se encontrassem com ela, um para cada dia. Hoje encontrar-se-ia com aquele dos transportes, seria definitivamente alguém do seu nível. E não te importas de ir pensando assim para aliviares um pouco da sua elegância. Mais tarde, soubeste por um amigo pouco chegado, que ela soube que tu a traias com duas colegas lá do escritório. Ela soube nesse momento, e apenas nesse momento, que eras demasiado feio para ela.


Estória 2

Não, disse ele aos outros, deixem-me, acontece-me frequentemente, de repente agarro em dois ou três livros e deito-os pela janela. Um homem que cai no meio de uma dor interior, que cai no meio de uma solidão faz barulho? Sim, disse ele aos outros, agarrando aleatoriamente num monte de livros, livrando-se deles pela janela. Mais tarde, quando ele procura determinado título e não o encontra na sua biblioteca privada entra em crise. Deixa-o paralisado, a crise. Sem agir por momentos. Porém, subitamente fecha-se no quarto e tapa a cabeça com a almofada. É um alívio, a cabeça debaixo de alguma coisa que abafa: o mundo pára como se não tivesse ouvidos para realmente estar a postos de avançar. Um deus que acorda na extremidade de uma cidade pobre, na extremidade de uma cidade suja, terá vontade de rezar? Talvez, disse ele aos outros. Deixem-me. A crise mais uma vez leva-o à biblioteca: nem um livro em nenhuma prateleira. Os livros e as prateleiras tinham-se esgotados com todas as crises anteriores. De certo modo sinto-me aliviado, disse ele aos outros, ler também é não abrir os olhos. É a fechar os olhos e a dormir que as paisagens se distinguem. Ler é também lembrar a oportunidade que temos de sermos esquecidos em pouco tempo.

Autor: rui almeida paiva

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

octagésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Cada espaço perde a graça quando ocupado pela não-mudança. O condutor do veículo utiliza o volante para encostar a testa e para encostar a falta de paciência. Encheram-se as principais artérias da cidade e os nervos dos apressados são um saco cheio de soro que os mantém vivos. Tendo em conta que a revolução se desenrola ali mesmo ao lado, verificamos que o país mudou de governantes e que o espaço ocupado pelo condutor estagnou por completo. Está por ali há mais de duas horas sem tocar no pedal que acelera. Esfrega então os olhos como dois arbustos expostos ao vendaval. Tem calma, homem, a revolução não tem pressa para incendiar alguém que não se manifesta. O regime acabou por ceder e o poder mudou de mãos porque um milhão de pessoas escolherem o mesmo sítio para gritar ao mesmo tempo “rua, seus ladrões”. O condutor, desesperado, verifica que milhares içam bandeiras e milhares de olhos húmidos contêm ódio. A filha do condutor espera-o no colégio: está triste e o condutor certifica-se que em cada um dos revoltados está a desilusão da sua filha. Está revoltado com os revoltados porque não o deixam avançar na direcção do colégio. Decide buzinar para que acabem imediatamente com os protesto. A angustia da espera, dentro da minha filha, pode-lhe provocar danos irreparáveis: a criança sofre. Deixem o país como estava, existem crianças à espera dos seus pais, grita o condutor com a cabeça fora do vidro. Uma revolução atinge as proporções de uma massa que não consegue pensar muitas vezes. Uma massa como os dois ossos de um pulso, como um único braço de pugilista. O braço aproxima-se do carro do condutor que protesta e devora-o sem deixar rasto. Foi engolido por um grupo de formigas que trazia todo um novo país nas mãos. Uma menina, no outro canto da cidade, não sabe vocalizar a palavra «revolução» mas sabe na perfeição a dicção da palavra «pai». Esperou, a menina, horas e dias e anos que aquele homem que a costumava encher de beijos regressasse. Até que muito mais tarde a menina teve coragem de perguntar por ele e do outro lado tiveram a coragem de responder: o teu pai morreu na revolução, era um grande homem.

Estória 2

Estes meninos são a extensão de um afecto nunca iniciado. Assiste-se, no lar, ao combate do anão contra o gigante. Lá fora, o átrio. É lá que se tenta fazer compreender que a força do gigante é comparável à habilidade do anão. Passeia-se nos intervalos e aquele intervalo tem outro valor porque existe alguém que luta por teimosia. Alguém sairá aleijado: um intervalo perfeito. Nos intervalos anteriores passeou-se, apenas, para se apanhar o distraído que comete erros à socapa: não é aconselhável mostrar os pontos fracos em qualquer um destes corredores aparentemente não vigiados. Sem se aperceber, o menino que ali foi deixado pela avó devido ao jeito que esta tinha em lhe acertar brutalmente com o cotovelo, apaixonou-se pela menina do gigante. O gigante é um cadáver por dentro e um atleta por fora. Consegue cuspir na cara e na boa vontade dos professores e deixa-os a chorar repetidamente para seu divertimento (esta a sua faceta de cadáver), e consegue espancar qualquer menino mais pequeno do que ele (faceta de atleta). Quando o toque soou dentro da sala o menino seguiu a menina do gigante até às escadas mais sombrias e foi ali que deram o primeiro beijo e isso foi imediatamente antes de conseguirem explicar alguma coisa com as palavras. O beijo foi identificado pela comunidade que espreita e este, o menino, foi chamado a depor junto do gigante. O menino disse: estou apaixonado, e isso não é bom? O gigante riu-se: coitado do rapaz, não sabia que se estava a meter com a minha namorada, e todos se riram porque o gigante dissera uma piada sem graça nenhuma. Riram-se com pena do menino. Eu sabia que a namorada era tua, mas o amor tem destas coisas, tem destas coisas fortes. O gigante levantou-se e tocou imediatamente no tecto de tão mau que era. O menino ajoelhou-se de tão bom que era. O gigante contra o anão, a luta dar-se-ia no átrio do lar – a força do gigante contra o amor do menino.


Autor: rui almeida paiva



sexta-feira, 28 de agosto de 2009

octagésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Tens quantos meninos que se perdem de cada vez que os pões a ler Antoni Artaud? Tenta colocá-los na verdadeira floresta. Leva-os de olhos vendados e deixa-os onde os ruídos são todos suspeitos e onde a natureza não é surda. Larga-os entre árvores complexas e onde a chuva cai com o tamanho dos dedos que apontam para dentro. Vem-te embora sem que estes se apercebam. Depois, passado um mês, deixa que te entrem de novo na aula e será altura de lhes apresentares um verdadeiro poema de Antoni Artaud. E se nem todos regressaram nesse prazo estabelecido? Tens que ter consciência que nem todos são capazes de sobreviver em terra dentro das suas próprias cabeças. Tens agora os que não se perderam em terra, basta saber os que se perderão nos pensamentos.

Estória 2

Adormeces como adormece a mulher que chegou aos quarenta anos. Adormeces esse tempo todo. Despedes-te da vida com pouco entusiasmo, com pouco ruído. Sem fervor e sem cerveja na mãos festejas o teu corpo a despedir-se. A beleza adormeceu definitivamente e a mulher de quarenta anos deixou de ter um pénis que a desejasse. Deve cantar, então, minha senhora. A voz vem do fundo e não da superfície; deve tratar, a partir de agora, melhor da melodia e menos da pele, que esta já não tem remédio. Traga cá para fora todas as monições que estão guardadas na cave e dispare em todos os sentidos sem receios de acertar aleatoriamente em tudo o que ainda se dispa devagar. Dispare para tudo o que ainda sente e não para tudo o que ainda veja.


Estória 3

Aninhas-te com todo o tipo de medos. Tens a camisola manchada e tens medo que a mancha seja uma ideia suja: esta a razão para te esconderes, pois está claro! Tenho a certeza que a sujidade tem evoluído, que as conversas têm tropeçado perto da lama. Eu próprio caí na lama e estou todo sujo de adjectivos sangrentos. A menina esconde-se da aparência que não facilita o contacto com a restante população. A menina é de uma raça diferente da maioria das raças e tem o corpo manchado. A nódoa está tatuada na pele. Está à força tatuada em toda a epiderme. Por ser tão simpática, a menina deveria deixar de chorar. Tente não amachucar o espírito como se este fosse correspondência indesejada, como se fosse mais uma conta por pagar, como se fosse uma despesa. Faltam cinco dias para a menina desidratar debaixo dos cobertores. Quando a menina sair aí de dentro, verá que o mundo tem a facilidade de ultrapassar quem treme. O mundo não espera por si, é uma certeza. É melhor correr enquanto tem forças, apanhá-lo. Uma maratona esgota quase todas as reservas de oxigénio e produz o dióxido de carbono em pequena escala. O atletismo que tem praticado não lhe tem feito bem à saúde, menina. Aí escondida não tente saltar para onde não pode: não tente saltar mais que o ódio. De altura, enquanto está aí deitada, tem quase quarenta centímetros. Imagine quando tiver de novo cento e sessenta e dois centímetros; o quanto se pode voar quando se está de pé, quando se tem altura! Importa-se de se levantar imediatamente! A menina encolhe-se ainda mais. Está a fazer muito barulho, responde-me ela. Faltam menos de cinco dias para desidratar.



autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

octogésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Mesmo que a disponibilidade tenha apanhado a mulher comprometida com as próprias pernas abertas. Mesmo depois de toda a sociedade entrar por ali a dentro num único gesto de esperança, num tremer, num vento. Mesmo que o nervo se tenha aproveitado da nudez e a criminalidade do perdão. Mesmo tendo sonhos que utilizem a fisicalidade como história. Mesmo que a dormir e mesmo que acordada a mulher pense em ser bombardeada nas gengivas e que a utilizem como comida plástica. Mesmo que em pensamento as operações intimas não sejam saudáveis e sejam brutalidade e uma quantidade de submissões intragáveis. Mesmo tendo um cérebro que se possa comparar a uma pocilga onde as moléculas se pareçam com piolhos que andam e que falam como bichos pouco civilizados. Mesmo que a sabedoria da mulher possa comunicar sobre teatro, sobre política e sobre costumes de países estrangeiros. Mesmo que a mulher se esfregue diariamente nas arestas dos móveis, mesmo que se esfregue até às cólicas intoleráveis. Mesmo que a vontade seja invariavelmente esta: rasgarem-lhe a roupa e a ciência que procura o esconderijo do espírito. Mesmo que a roupa para se rasgar na mulher seja muito maior que os calafrios vindos do espírito. Mesmo que a punam por estar agasalhada e por não ter espírito que se veja a olho nu. Mesmo que a vergonha mereça ser afiada. Mesmo que o sangue seque e as regras se tornem unicamente uma carne por abater. Mesmo que a mulher seja forçada a abrir as pernas e que seja esse o seu desejo: que lhe abram as pernas à força e que a obriguem a engolir trapos tingidos de azia. Mesmo que não lhe restem dores que conheça. Mesmo que a novidade tenha desaparecido e a dor surja como aparição da existência de um corpo que vive. Mesmo que se transforme em jardim respeitosamente pisado e abandonado. Mesmo que lhe tenham confessado que um segredo quando enfiado num corpo insensível se torna numa declaração pública. Mesmo que sem armas e sem corpo e sem apontaria para disparar em todos os que suportam a vida e as suas redondezas. Mesmo sendo e aparentando máquina, a mulher, a mulher sabe que deixou por completo de comer e de beber com a humanidade: os alimentos agora são outros e não têm fome. Mesmo tendo feridas por todo o lado que se vê e que não se vê; mesmo sabendo que não se vê, a mulher continua a dizer que não se alimenta pela boca mas sim por todas estas feridas que mastigam como ninguém. Mesmo que lhe tenham aparecido os impulsos cedo demais. Mesmo a ladrar como uma cadela. Mesmo a cantar como um rouxinol sem pata. Mesmo não estando disponível para aprender, foi a pele que lhe ensinou a estalada e a joelhada que tanto tem vindo a suplicar. Mesmo cadela, a mulher ganiu até à morte. Mesmo depois de morta a mulher não foi absolvida das dores. Mesmo depois de morta rasgaram-lhe o exterior visível de alto a baixo sem uma única manifestação de desgosto por si anunciada. Mesmo animal, mesmo morta, mesmo irreconhecível a mulher continuou a não sentir nada. Tudo como dantes, portanto, tal e qual como se nada se passasse.

Estória 2

Com fome as mãos põem-se em alerta e devoram a linguagem animal e matam, as mãos, matam tudo o que encontram pela frente. Sabes que se aproxima o bom tempo? O calor. O suor. O Sol aparece-te pela frente e tentas matá-lo utilizando as mãos junto à testa e sobre os olhos uma pequena sombra. Uma pequena morte, pensas tu. Uma morte nunca acontece por fases ou por migalhas. Ou se morre de uma só vez ou se vive de uma só vez. O homem que tem fome tem anulado tudo o que encontra pela frente. É, todo ele, um estômago que não mastiga e um maxilar que seca. As mãos desse pobre homem alteram caminhos, arrancam plantas e descascam laranjas que estavam dentro de um caixote do lixo; que estavam no seu caminho (as plantas e o caixote), e não se desviaram da sua fome e das suas mãos miseráveis. O homem defende-se dos pensamentos estabelecidos pelo censo comum: as minhas mãos não matam de uma só vez, estragam, apenas. Não tiram vidas. Tiram partes do que ainda sobrevivia. O homem mata tudo o que lhe aparece à frente, mas mata pouco, mata apenas um pouco da morte. Abre o tampo do caixote do lixo, o homem, e dá uma trinca num bife com molho, com sabor a sabonete. O bife já estava morto e eu só o matei mais um pouco. O homem arranca uma pétala de uma flor presa ao passeio. Tirou-lhe um braço e não a sua pulsação. O homem tem fome e quer matar de vez essa necessidade; para saciar essa vontade julga-se parte de um assassino: uma perna, uma dentada de assassino. O homem coloca as mãos junto à testa para matar parte daquele Sol que lhe apareceu á frente.


Estória 3

Vamos supor que um dia a barba passa a fazer parte obrigatória dos adereços comuns, tal e qual como uma camisa ou um par de sapatos. Vamos imaginar que todos os homens deixam crescer a barba para não se sentirem despidos. Roupa prolongada, a barba, que demora duas semanas a vestir-se e dois minutos a despir-se. Vamos tentar ser racionais e criar um adereço novo também para as mulheres que não têm barba; pelo menos que compense aquela ordinarice que é estarem constantemente com o rosto à vista dos depravados.


autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

octogésima quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Os homens de idade arregalam os olhos presos ao rabo funcional da empregada de balcão. Tornou-se tique baixar os olhos e largar saliva para os lábios esfomeados de carne tenra enquanto a empregada passa obrigatoriamente por ali: a caixa registadora é o único objecto valioso e obrigatório no estabelecimento e os homens sabem-no, por isso sentam-se junto a esse objecto de render dinheiro por onde ela tem necessariamente que passar. O tique pior destes homens com alguma idade é não repararem nos seus truques mal executados: truques cheios de imperfeições. Todo o corpo se manifesta para o rabo da empregada: rasteja desesperado para essa direcção. O rapaz novo, no outro lado da sala, roda apenas ligeiramente os olhos e basta-lhe apenas um breve segundo para memorizar as formas que cintilam naquele corpo feminino. Não se expõe e mostra a capacidade dos reflexos para que não seja reparado a mirar. A empregada não descobre a subtileza do jovem e sente-se desprezada por um dos homens que frequentam o seu espaço, o seu território de tirar proveito dos arranques e solavancos do seu corpo ainda em dia estão a ser desprezados. Gosta de amachucar, gosta de entrar com balanço para dentro das cabeças masculinas: é a libido o seu destino predilecto. Os homens de idade, ao contrário do jovem, rodam o tronco e rodam o pescoço e ajeitam o membro dentro dos dedos e esticam os pés um sobre o outro. A empregada chega-se a eles. Provoca-os. Sonha de noite com os homens todos de uma só vez a sonharem para dentro dela. Para dentro da sua boca. Usa frequentemente aquelas calças porque são as mais justas e as mais escaldantes: é por elas que os olhos espirram e gozam prolongadamente por uma hipótese. A empregada levanta-se bem cedinho para escolher a toalhete porque o seu corpo é uma fábrica que produz e uma boa fábrica precisa necessariamente de todas as máquinas bem tratadas e bem lavadas. Calças que insinuam ou calças que escondam, pensa a empregada, em frente ao roupeiro, de manhã, tentando perceber a sua vontade animal. A empregada pensa nas calças como um químico, como uma bica curta, como um excitante. O marido, que continua a dormir e que há seis anos adormeceu para ela, não faz parte destes homens que a influenciam na escolha do químico a utilizar. Calças curtas ou calças largas, tudo depende da vontade que hoje sente de ser jubilada com maior ou menor desespero. Os velhos hoje vieram todos ao exercício, vieram todos à aula, e os seus corações frágeis aceleram a pique mal a empregada lhes dirige atenção. As calças escolhidas para hoje estão rotas de propósito junto a uma das nádegas. O exercício físico em excesso pode tornar-se maléfico na sua idade, explica a empregada ao velho mais atrevido que está todo esticado e que tenta chegar com os dedos ao espaço livre entre o tecido das calças, entre as formas redondas, diz-nos ele, completamente exausto da aula de hoje e da sua exigente professora.



Estória 2

No quintal, um dos alunos de teatro desloca-se com embaraço. Um embaraço desconfortável. O exercício para desenvolver a postura expressiva não lhe está a correr bem. O aluno explica ao funcionário da escola que o professor ordenou que ficasse dois dias a pensar sobre o movimento do corpo em acção quando andasse para algum lado e que só depois de não se sentir estranho nessa habilidade é que poderia entrar na sua aula de teatro. O aluno está há dois dias a treinar intensamente. Sente-se o imbecil da anatomia. Não consegue pensar e ser natural ao mesmo tempo. Desajeitado, confirma o funcionário. Um aluno não pode ter dois tipos de locomoção, um para ser utilizado quando se está a ser observado e outro para quando não se está a ser observado. O aluno ao pensar nas pernas e nos braços enquanto anda sente-se observado por alguém mesmo estando isolado dos restantes humanos. Sente-se observado por si. O professor, para além de obrigar o aluno a pensar no próprio corpo enquanto este se desloca, também o obrigou a parar e a repetir a frase “estou presente” por cada dez metros percorridos. Um aluno de teatro não pode ter dois tipos de acções, uma para quando estiver parado num quarto solitário e outra para quando estiver parado junto à multidão. Não podemos estar parados e sem trajectória ao mesmo tempo. Estar parado é movimento e é verbalidade, explica o professor. O aluno, no final do segundo dia de treino chegou à aula e disse alto “estou presente”. O professor gostou da forma como o aluno conquistou uma posição favorável para subir a voz com firmeza. O professor aproxima-se do seu mais recente adversário. O agora aluno de teatro poderia pisar o palco pela primeira vez. O aluno sobe ao palco pela primeira vez e com um golpe de pertinência conquista a zona do cérebro que tinha memorizado as obras completas de Harold Pinter. Um golpe fora do alcance do adversário, este.



Estória 3

É difícil terminar com um homem que vomita o verbo para fora das frases. Escolheu a viagem de barco, o velho, para realizar a sua última aparição artística. Todos tinham essa mesma impressão: o último espectáculo. O barco, cheio de público, interessava-se pelo seu possível silêncio final. Tinha entrado em cena o homem mais velho do mundo. Ali estava ele, não velho de idade mas velho de pele. Se o velho se desfizesse ali, se um dos braços caísse sem justificação ninguém se assustaria. De aparência o velho era aberração. O velho quis sentar-se, a plateia agrupou-se para apreciar este número de difícil execução: quem se conseguirá agachar naquele estado? O suspense anestesia os poros venenosos como a serpente anestesia o instinto de sobrevivência da presa. Quem não apoiaria o homem mais velho do mundo no seu truque de encenação planeado e treinado de antemão? O velho inclina o tronco ligeiramente, reduzindo o seu silêncio ao zumbido áspero de duas articulações coladas e ossificadas. Ouvem-se os sons dos ossos e estes esbarram contra a curiosidade compreensível do povo atento. Inclina-se tão demoradamente, o velho. Que agilidade! Quase lá, quase no acento, algo estremece. O barco estremece porque é barco utilizável, o que não estava previsto pelo artista. De súbito os joelhos enfraquecem e o velho começa a cair como se fosse um jarro de porcelana a baloiçar em cima de um móvel de madeira maciça. Entre os curiosos a respiração é travada nas goelas porque a cerimónia tornara-se altamente pavorosa. Os gritos suspendem-se. Todos engolem saliva espessa e fazem força por dentro para que o velho não caia. Mas lá vai ele, aos poucos, no sentido do piso violento. Este truque, o truque da queda, ainda é mais demorado que o anterior e o significado deste truque está bem estudado. A queda demora uns bons dois minutos. O sofrimento instala-se, primeiro no olhar do homem mais velho do mundo, e só depois nos que assistem à tragédia. O velho é horrivelmente velho na pele e tem toda a ruína dos homens assustados. O velho, para finalizar o espectáculo em apoteose, cai como estava previsto e o publico admira-o por isso. O artista, cansado de sobreviver a cada dia através daquele monte de pele e osso, cai e desfaz-se em centenas de cacos difíceis de apanhar. Um anão vestido de palhaço aparece então rapidamente e começa a varrer delicadamente todos os pedaços sólidos do homem mais velho do mundo.



autor: rui almeida paiva

sábado, 25 de julho de 2009

octogésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sírio

Estória 1

Agora que ele se arrasta, não distribui tão relaxadamente o seu olhar. A beleza cai-lhe em quantidades significativas, está no limiar. Toma banho todos os dias de manhã e o ralo da banheira entope constantemente. A beleza cai-lhe aos tufos. A raiz enfraqueceu muito nos últimos dois meses e as mulheres têm-lhe menos em conta por esta razão aqui assinalada. Parece-lhe conveniente ir guardando aquilo que lhe cai todas as manhãs e que fica agarrado ao ralo da banheira. Guarda cada um desses pedaços dentro de uma caixa de madeira. Dois meses de enfraquecimento, diz para si ao fechar a caixa de madeira. Nesse dia, foi estipulado por si que o final tinha aparecido porque no cimo da sua cabeça pouco restava do que se pudesse aproveitar. Nesse dia, que coincidiu com o final, apanhou o mesmo barco de sempre e ofereceu bolas de cabelo às mesmas senhoras que nestes dois meses o foram ignorando cruelmente. A beleza caiu-me aos tufos, explica ele, e eu não consegui acompanhar esta mudança no vosso olhar sobre mim. As mulheres, horrorizadas, gritaram e deixaram a cadeira do barco como se fugissem da cadeira eléctrica.

Estória 2

O menino nasceu por engano. Não era ovo para fecundar com sensatez. O menino nasceu com a vontade própria que lhe foi sendo destruída duramente nos primeiros quatro anos de vida. O óvulo foi fecundado sem vontade, a mãe estava para ali a gritar e a fingir que o grito pudesse agarrar aquele homem. A mãe gritava porque não tinha prazer (porque não sentia nada) e porque queria que o futuro pai se despachasse. Cada grito era um chamamento à ejaculação precoce. O pai ejaculou e foi-se embora. A mãe não sentiu nada e continuou a não sentir nada nas horas seguintes. Mais à frente o menino nasceu: a mãe, mesmo depois de um parto fácil, continuou a não sentir nada pelo menino e muito menos pelo pai. No órgão genital feminino o óvulo permite que lhe furem as paredes mesmo quando não existe amor nessa acção, talvez seja este o principal problema dos jovens desencantados de hoje. O pai não sentia nada quando por cima da futura mãe rodava as ancas freneticamente, mas os gritos fizeram-no pensar numa mulher que sofre de dor e não de prazer e isso fê-lo atingir a recta final. Mas depois de nascido o menino, o pai pensou que não valeria a pena perder tempo com pequenos seres que choram por tudo e por nada, por isso foi desaguar para outro lado mais silencioso. O óvulo foi fecundado sem convicção e sem prazer dos intervenientes. A futura mãe estava na presença de mais um homem dentro de si e o futuro pai estava na presença de mais uma mulher onde tinha entrado. No início eram apenas mais um homem e mais uma mulher que passavam pelos seus corpos. Mas infelizmente apareceu-lhes alguém entre esta atitude numérica: apareceu o menino. Agora é um homem e desde muito cedo decidiu o que queria fazer na sua vida: decidiu que não se importava de morrer. O menino desde muito cedo aprendeu a ser entulho, a tentar não incomodar, a tentar não aparecer, a tentar não existir. O menino também sabia que não podia desaparecer de um momento para o outro mesmo que quisesse, sabia que não era transparente. Portanto, desde muito cedo, decidiu dar alguma coisa à sociedade: decidiu dar a sua morte. Inscreveu-se no exército antes do tempo e foi para uma guerra entre dois países cobardes ainda menino pequeno. Lá, foi abatido três vezes. O menino tem três balas que ninguém consegue tirar. Ficaram lá dentro, como presente. O menino ainda não morreu, ainda espera por esse momento impacientemente. Não se concretizam os sonhos sem esforço, ouve o menino algures. O menino tem-se esforçado para morrer mas as balas permanecem lá dentro. Talvez um dia o menino morra, julgam alguns, os que o conhecem bem. Talvez o menino venha a ter vários outros meninos. Mas por enquanto apenas três balas, e ninguém tem conseguido tirá-las.

autor: rui almeida paiva

sexta-feira, 24 de julho de 2009

octogésima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Metade do céu ri, a outra metade mente. A adolescente lança-se para a vida palpitante. Pertence à metade que ri, a jovem. Pele impiedosa que cheira a edifício por estrear. Metade da vida permanece no mesmo armário, na mesma posição de sempre. A outra metade não quer ficar, muda de sítio por iniciativa. A metade da menina que ri é a que toma iniciativa: a pele que ainda é apetecível move-se com inteligência, mas sem futuro.

Estória 2

Hesitante, o homem sai do barco com as muletas anexas ao desequilíbrio. Deixa as muletas junto a um poste alguns metros à frente. Tira de dentro da mochila um sapato. Arregaça as calças, um dos lados não tem perna. Enfia o sapato numa das mãos, ata o sapato, coloca a mão calçada no chão e começa a andar meio crocodilo meio gorila. A perna magra do homem confunde-se com o braço musculado do homem. Consegue disfarçar alguma coisa, mas quando entramos no jogo, descobrimos que a falta de um membro não se substitui assim tão facilmente. Aquilo que engana é o sapato colocado no lugar da luva: este é o dado valioso que faz batota. Impreterivelmente, um homem sem uma perna não tem os dois sapatos calçados. Este homem complicou o mundo. É um dos responsáveis por tudo o que começa a estar errado com a natureza. Um sismo pode começar ali, naquela tentativa de fintar as aparências. O mundo desequilibra-se com estas situações, fomentando o início das deslocações terrestres indesejáveis. O homem tem de assumir que não tem perna para salvar o planeta de um terrível desastre natural. Não pode trazer um sapato na mochila e substituir assim aquilo que aparenta. Uma mulher acha-lhe piada, decide conversar com ele. Confiante e decidida, a mulher aparece com um pano húmido na mão e começa a engraxar os dois sapatos do homem enquanto os dois se riem em gargalhadas partidas. Choram de tanto rir e de tanta situação engraçada. Agora estão os dois contentes, a respiração quase se vai com o sufoco. O homem sem perna ainda tem uma mão disponível. Agarra-se ao pescoço da mulher do pano que é bem negra na pele e bem branca nos dentes; prega-lhe um beijo daqueles. Automaticamente voltam a rir e não param de ignorar as condições climatéricas que se desenvolvem a partir de uma situação absurda como esta.

O sismo será sentido com raiva duas semanas depois e os cientistas tentarão decifrar o acontecimento que começou num homem sem uma perna que tirou de dentro da mochila um sapato.

autor: rui almeida paiva