quarta-feira, 26 de agosto de 2009

octogésima quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Os homens de idade arregalam os olhos presos ao rabo funcional da empregada de balcão. Tornou-se tique baixar os olhos e largar saliva para os lábios esfomeados de carne tenra enquanto a empregada passa obrigatoriamente por ali: a caixa registadora é o único objecto valioso e obrigatório no estabelecimento e os homens sabem-no, por isso sentam-se junto a esse objecto de render dinheiro por onde ela tem necessariamente que passar. O tique pior destes homens com alguma idade é não repararem nos seus truques mal executados: truques cheios de imperfeições. Todo o corpo se manifesta para o rabo da empregada: rasteja desesperado para essa direcção. O rapaz novo, no outro lado da sala, roda apenas ligeiramente os olhos e basta-lhe apenas um breve segundo para memorizar as formas que cintilam naquele corpo feminino. Não se expõe e mostra a capacidade dos reflexos para que não seja reparado a mirar. A empregada não descobre a subtileza do jovem e sente-se desprezada por um dos homens que frequentam o seu espaço, o seu território de tirar proveito dos arranques e solavancos do seu corpo ainda em dia estão a ser desprezados. Gosta de amachucar, gosta de entrar com balanço para dentro das cabeças masculinas: é a libido o seu destino predilecto. Os homens de idade, ao contrário do jovem, rodam o tronco e rodam o pescoço e ajeitam o membro dentro dos dedos e esticam os pés um sobre o outro. A empregada chega-se a eles. Provoca-os. Sonha de noite com os homens todos de uma só vez a sonharem para dentro dela. Para dentro da sua boca. Usa frequentemente aquelas calças porque são as mais justas e as mais escaldantes: é por elas que os olhos espirram e gozam prolongadamente por uma hipótese. A empregada levanta-se bem cedinho para escolher a toalhete porque o seu corpo é uma fábrica que produz e uma boa fábrica precisa necessariamente de todas as máquinas bem tratadas e bem lavadas. Calças que insinuam ou calças que escondam, pensa a empregada, em frente ao roupeiro, de manhã, tentando perceber a sua vontade animal. A empregada pensa nas calças como um químico, como uma bica curta, como um excitante. O marido, que continua a dormir e que há seis anos adormeceu para ela, não faz parte destes homens que a influenciam na escolha do químico a utilizar. Calças curtas ou calças largas, tudo depende da vontade que hoje sente de ser jubilada com maior ou menor desespero. Os velhos hoje vieram todos ao exercício, vieram todos à aula, e os seus corações frágeis aceleram a pique mal a empregada lhes dirige atenção. As calças escolhidas para hoje estão rotas de propósito junto a uma das nádegas. O exercício físico em excesso pode tornar-se maléfico na sua idade, explica a empregada ao velho mais atrevido que está todo esticado e que tenta chegar com os dedos ao espaço livre entre o tecido das calças, entre as formas redondas, diz-nos ele, completamente exausto da aula de hoje e da sua exigente professora.



Estória 2

No quintal, um dos alunos de teatro desloca-se com embaraço. Um embaraço desconfortável. O exercício para desenvolver a postura expressiva não lhe está a correr bem. O aluno explica ao funcionário da escola que o professor ordenou que ficasse dois dias a pensar sobre o movimento do corpo em acção quando andasse para algum lado e que só depois de não se sentir estranho nessa habilidade é que poderia entrar na sua aula de teatro. O aluno está há dois dias a treinar intensamente. Sente-se o imbecil da anatomia. Não consegue pensar e ser natural ao mesmo tempo. Desajeitado, confirma o funcionário. Um aluno não pode ter dois tipos de locomoção, um para ser utilizado quando se está a ser observado e outro para quando não se está a ser observado. O aluno ao pensar nas pernas e nos braços enquanto anda sente-se observado por alguém mesmo estando isolado dos restantes humanos. Sente-se observado por si. O professor, para além de obrigar o aluno a pensar no próprio corpo enquanto este se desloca, também o obrigou a parar e a repetir a frase “estou presente” por cada dez metros percorridos. Um aluno de teatro não pode ter dois tipos de acções, uma para quando estiver parado num quarto solitário e outra para quando estiver parado junto à multidão. Não podemos estar parados e sem trajectória ao mesmo tempo. Estar parado é movimento e é verbalidade, explica o professor. O aluno, no final do segundo dia de treino chegou à aula e disse alto “estou presente”. O professor gostou da forma como o aluno conquistou uma posição favorável para subir a voz com firmeza. O professor aproxima-se do seu mais recente adversário. O agora aluno de teatro poderia pisar o palco pela primeira vez. O aluno sobe ao palco pela primeira vez e com um golpe de pertinência conquista a zona do cérebro que tinha memorizado as obras completas de Harold Pinter. Um golpe fora do alcance do adversário, este.



Estória 3

É difícil terminar com um homem que vomita o verbo para fora das frases. Escolheu a viagem de barco, o velho, para realizar a sua última aparição artística. Todos tinham essa mesma impressão: o último espectáculo. O barco, cheio de público, interessava-se pelo seu possível silêncio final. Tinha entrado em cena o homem mais velho do mundo. Ali estava ele, não velho de idade mas velho de pele. Se o velho se desfizesse ali, se um dos braços caísse sem justificação ninguém se assustaria. De aparência o velho era aberração. O velho quis sentar-se, a plateia agrupou-se para apreciar este número de difícil execução: quem se conseguirá agachar naquele estado? O suspense anestesia os poros venenosos como a serpente anestesia o instinto de sobrevivência da presa. Quem não apoiaria o homem mais velho do mundo no seu truque de encenação planeado e treinado de antemão? O velho inclina o tronco ligeiramente, reduzindo o seu silêncio ao zumbido áspero de duas articulações coladas e ossificadas. Ouvem-se os sons dos ossos e estes esbarram contra a curiosidade compreensível do povo atento. Inclina-se tão demoradamente, o velho. Que agilidade! Quase lá, quase no acento, algo estremece. O barco estremece porque é barco utilizável, o que não estava previsto pelo artista. De súbito os joelhos enfraquecem e o velho começa a cair como se fosse um jarro de porcelana a baloiçar em cima de um móvel de madeira maciça. Entre os curiosos a respiração é travada nas goelas porque a cerimónia tornara-se altamente pavorosa. Os gritos suspendem-se. Todos engolem saliva espessa e fazem força por dentro para que o velho não caia. Mas lá vai ele, aos poucos, no sentido do piso violento. Este truque, o truque da queda, ainda é mais demorado que o anterior e o significado deste truque está bem estudado. A queda demora uns bons dois minutos. O sofrimento instala-se, primeiro no olhar do homem mais velho do mundo, e só depois nos que assistem à tragédia. O velho é horrivelmente velho na pele e tem toda a ruína dos homens assustados. O velho, para finalizar o espectáculo em apoteose, cai como estava previsto e o publico admira-o por isso. O artista, cansado de sobreviver a cada dia através daquele monte de pele e osso, cai e desfaz-se em centenas de cacos difíceis de apanhar. Um anão vestido de palhaço aparece então rapidamente e começa a varrer delicadamente todos os pedaços sólidos do homem mais velho do mundo.



autor: rui almeida paiva

Sem comentários:

Enviar um comentário