sábado, 25 de julho de 2009

octogésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sírio

Estória 1

Agora que ele se arrasta, não distribui tão relaxadamente o seu olhar. A beleza cai-lhe em quantidades significativas, está no limiar. Toma banho todos os dias de manhã e o ralo da banheira entope constantemente. A beleza cai-lhe aos tufos. A raiz enfraqueceu muito nos últimos dois meses e as mulheres têm-lhe menos em conta por esta razão aqui assinalada. Parece-lhe conveniente ir guardando aquilo que lhe cai todas as manhãs e que fica agarrado ao ralo da banheira. Guarda cada um desses pedaços dentro de uma caixa de madeira. Dois meses de enfraquecimento, diz para si ao fechar a caixa de madeira. Nesse dia, foi estipulado por si que o final tinha aparecido porque no cimo da sua cabeça pouco restava do que se pudesse aproveitar. Nesse dia, que coincidiu com o final, apanhou o mesmo barco de sempre e ofereceu bolas de cabelo às mesmas senhoras que nestes dois meses o foram ignorando cruelmente. A beleza caiu-me aos tufos, explica ele, e eu não consegui acompanhar esta mudança no vosso olhar sobre mim. As mulheres, horrorizadas, gritaram e deixaram a cadeira do barco como se fugissem da cadeira eléctrica.

Estória 2

O menino nasceu por engano. Não era ovo para fecundar com sensatez. O menino nasceu com a vontade própria que lhe foi sendo destruída duramente nos primeiros quatro anos de vida. O óvulo foi fecundado sem vontade, a mãe estava para ali a gritar e a fingir que o grito pudesse agarrar aquele homem. A mãe gritava porque não tinha prazer (porque não sentia nada) e porque queria que o futuro pai se despachasse. Cada grito era um chamamento à ejaculação precoce. O pai ejaculou e foi-se embora. A mãe não sentiu nada e continuou a não sentir nada nas horas seguintes. Mais à frente o menino nasceu: a mãe, mesmo depois de um parto fácil, continuou a não sentir nada pelo menino e muito menos pelo pai. No órgão genital feminino o óvulo permite que lhe furem as paredes mesmo quando não existe amor nessa acção, talvez seja este o principal problema dos jovens desencantados de hoje. O pai não sentia nada quando por cima da futura mãe rodava as ancas freneticamente, mas os gritos fizeram-no pensar numa mulher que sofre de dor e não de prazer e isso fê-lo atingir a recta final. Mas depois de nascido o menino, o pai pensou que não valeria a pena perder tempo com pequenos seres que choram por tudo e por nada, por isso foi desaguar para outro lado mais silencioso. O óvulo foi fecundado sem convicção e sem prazer dos intervenientes. A futura mãe estava na presença de mais um homem dentro de si e o futuro pai estava na presença de mais uma mulher onde tinha entrado. No início eram apenas mais um homem e mais uma mulher que passavam pelos seus corpos. Mas infelizmente apareceu-lhes alguém entre esta atitude numérica: apareceu o menino. Agora é um homem e desde muito cedo decidiu o que queria fazer na sua vida: decidiu que não se importava de morrer. O menino desde muito cedo aprendeu a ser entulho, a tentar não incomodar, a tentar não aparecer, a tentar não existir. O menino também sabia que não podia desaparecer de um momento para o outro mesmo que quisesse, sabia que não era transparente. Portanto, desde muito cedo, decidiu dar alguma coisa à sociedade: decidiu dar a sua morte. Inscreveu-se no exército antes do tempo e foi para uma guerra entre dois países cobardes ainda menino pequeno. Lá, foi abatido três vezes. O menino tem três balas que ninguém consegue tirar. Ficaram lá dentro, como presente. O menino ainda não morreu, ainda espera por esse momento impacientemente. Não se concretizam os sonhos sem esforço, ouve o menino algures. O menino tem-se esforçado para morrer mas as balas permanecem lá dentro. Talvez um dia o menino morra, julgam alguns, os que o conhecem bem. Talvez o menino venha a ter vários outros meninos. Mas por enquanto apenas três balas, e ninguém tem conseguido tirá-las.

autor: rui almeida paiva

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