quarta-feira, 1 de julho de 2009

septuagésima quarta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a epidemia


1.

Sofro sem ter direito de o fazer. Tenho as vontades conectadas com a condição humana, por isso apetece-me continuar a sofrer. O mundo proíbe-te de passares o muro: de olhares para o outro lado. Foi ele (o mundo) que te colocou uma barreira a meio do caminho – lá para os teus trinta anos. Depois foi só manipular os pormenores: ou se subia a altura do muro, ou se descia a capacidade dos membros para executarem o salto.


2.

Até o fim tem um princípio. Uma rapariga é levada do restaurante: desmaiou com uma folha de salada entre os dentes. No restaurante procura-se o silêncio para não se perturbar aquele descanso forçado. Já todos sabiam que a epidemia tinha entrado pelos locais públicos. Três homens vestidos a rigor levaram a rapariga que não acordava nem com água fresca nos olhos. Os amigos dela (eram dois, um rapaz e uma rapariga) continuaram a almoçar. Não tardaria a acontecer-lhes o mesmo.
Reflexão:
De barriga cheia tem-se mais disposição para nos deixarmos apanhar pela fatalidade.


3.

A pobreza pode ser uma epidemia cientificamente manipulada em laboratório. Tiram-se condições de vida aos habitantes e facilmente te apercebes que foi o suficiente para que uma vaga de famílias inteiras frequentem o mesmo hospital. O velho da peruca abre o caixote do lixo para tirar e não para despejar. Encosta a camisa azul ao iogurte com sabor a estragado para chegar mais longe. Encontra uma cana lisa: instrumento eficaz de travar a dor na perna esquerda. Dirige-se para casa com a sua nova bengala improvisada; não segue os restantes que, em fila, optam por esperar nas urgências.


4.

Vendem-se tantas saias nesta altura do ano, que começo a suspeitar da sua função biológica inicial. Começo, também, a bocejar com tanta regularidade em andamento – atraem-me, não sei porquê, as mulheres que tapam as pernas com tecidos largos e compridos. Existe uma necessidade árdua de utilizar de vez em quando a imaginação no corpo de uma mulher. Se as pernas servissem apenas para andar, também não teriam tanta piada, e as saias não tinham tanta saída.


5.

Saciar a fome é tapar uma infecção que pode ser curta e benigna se estiveres junto a um restaurante. Não te afastes muito da civilização: uma variedade de medicamentos é vendida de acordo com o teu apetite. Num deserto um avião traz arroz e pacotes de leite. Nem todos se podem salvar com tão pouco. Trinta meninos correm porque querem ser os primeiros a chegar à mercadoria. Dez meninos ficaram sentados em casa: os olhos cheios de moscas e as barrigas inchadas de fraqueza e de fome. Estes dez meninos não aguentaram a epidemia da fome. Os outros vão esperando melhoras.


6.

O médico tem tanta capacidade para olhar para o doente como o rato para a ratoeira. Há momentos em que o senhor doutor caça a doença com as mãos, outros momentos precisa do auxílio de aparelhos. Há ainda a alternativa de lhe fugirem as doenças todas quando estas ultrapassam facilmente as suas competências profissionais. A percentagem de ratos que engole o queijo sem que o ferro lhes caia em cima é muito grande: para aí sessenta por cento. E quantas vezes leva o queijo para casa, o médico? para aí sessenta por cento das vezes; o resto são desgraças invisíveis que lhe acertaram em cima.


7.

Se estamos zangados com alguém que sai para a rua mesmo estando constipado, preocupamo-nos com o frio, primeiramente, porque o frio mistura-se livremente com a chuva. Esta proposição foi fundamentada pela rebeldia da personagem desta história: o espirro. Ouvem-se poucos pássaros a piar lá fora – uma sucessão de espirros vindos de várias direcções são confundidos com o disparar das espingardas. Os pássaros não gostam de conflitos, muito menos se estes forem disparados pelo vírus.


8.

Os pequenos prazeres são temíveis quando seguram uma espada. Ocupas o teu tempo em pedaços de satisfação e chegas ao final da vida um caco.



autor: rui almeida paiva

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