quinta-feira, 23 de julho de 2009

octogésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Uma doença neurológica pode oferecer como brinde uma maneira anormal de locomoção. Incapaz de flectir os joelhos, o rapaz portador do equívoco corporal sabe que não pode observar. Não pode encantar pelos atributos físicos. As únicas raparigas decentes têm-lhe afecto à partida. Pena, esse é o nome do afecto que sentem. As restantes têm-lhe desprezo, nojo. Se pudessem, as primeiras raparigas dar-lhe-iam a sensação dos seus lábios e nada mais. O resto do corpo (a barriga, as coxas, os seios, a vagina) não conseguiria ser tão permissivo, não conseguiria ser voluntário, o corpo, para ajudar o rapaz anormal – sensação dos seus lábios e nada mais. As segundas raparigas dar-lhe-iam parte dos seus salários miseráveis e nada mais. O desprezo não conseguiria ceder mais do que isto. Uma moeda também lhe serviria como satisfação, para se sentirem bem e para se distanciarem-se o mais possível deste rapaz de corpo esquisito, estranho. As raparigas procuram uma moeda na carteira porque olham para o rapaz com cara de enjoadas e depois nem uma moeda tiram das suas carteiras porque os coitadinhos talvez nem devessem viver. Uns entulhos, estes anormais.


Estória 2

Um furacão prestes a chegar às habitações torna os Homens mudos, pasmados e de mãos dadas formam um círculo e voltam-se para a natureza com respeito de formiga. O número de rezas triplica quando os ventos se tornam fortes e quadruplica quando os trovões atingem o solo.

Quando os furacões se aproximam a chuva cai e os bebés ficam presos aos edifícios. Um bom arquitecto pensa primeiro com a chuva e só depois com os tijolos. A arquitectura tapa os bebés de uma boa molha. Contudo, o aprisionamento é inevitável: permanecerão todo o dia trancados, protegidos injustamente.

Uma criança de um ano não tem a iniciativa para furtar nem a iniciativa para assassinar, por isso, não deveria ser permitido este aprisionamento injusto. Uma criança de um ano não pega numa faca para eliminar uma velha. Não crava o aço quinze vezes seguidas no peito da velha enquanto se ri freneticamente. Não tem perícia para ir descascando a pele até à carne. Até ao sangue da velha em carne viva.


autor: rui almeida paiva

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