sexta-feira, 24 de julho de 2009

octogésima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Metade do céu ri, a outra metade mente. A adolescente lança-se para a vida palpitante. Pertence à metade que ri, a jovem. Pele impiedosa que cheira a edifício por estrear. Metade da vida permanece no mesmo armário, na mesma posição de sempre. A outra metade não quer ficar, muda de sítio por iniciativa. A metade da menina que ri é a que toma iniciativa: a pele que ainda é apetecível move-se com inteligência, mas sem futuro.

Estória 2

Hesitante, o homem sai do barco com as muletas anexas ao desequilíbrio. Deixa as muletas junto a um poste alguns metros à frente. Tira de dentro da mochila um sapato. Arregaça as calças, um dos lados não tem perna. Enfia o sapato numa das mãos, ata o sapato, coloca a mão calçada no chão e começa a andar meio crocodilo meio gorila. A perna magra do homem confunde-se com o braço musculado do homem. Consegue disfarçar alguma coisa, mas quando entramos no jogo, descobrimos que a falta de um membro não se substitui assim tão facilmente. Aquilo que engana é o sapato colocado no lugar da luva: este é o dado valioso que faz batota. Impreterivelmente, um homem sem uma perna não tem os dois sapatos calçados. Este homem complicou o mundo. É um dos responsáveis por tudo o que começa a estar errado com a natureza. Um sismo pode começar ali, naquela tentativa de fintar as aparências. O mundo desequilibra-se com estas situações, fomentando o início das deslocações terrestres indesejáveis. O homem tem de assumir que não tem perna para salvar o planeta de um terrível desastre natural. Não pode trazer um sapato na mochila e substituir assim aquilo que aparenta. Uma mulher acha-lhe piada, decide conversar com ele. Confiante e decidida, a mulher aparece com um pano húmido na mão e começa a engraxar os dois sapatos do homem enquanto os dois se riem em gargalhadas partidas. Choram de tanto rir e de tanta situação engraçada. Agora estão os dois contentes, a respiração quase se vai com o sufoco. O homem sem perna ainda tem uma mão disponível. Agarra-se ao pescoço da mulher do pano que é bem negra na pele e bem branca nos dentes; prega-lhe um beijo daqueles. Automaticamente voltam a rir e não param de ignorar as condições climatéricas que se desenvolvem a partir de uma situação absurda como esta.

O sismo será sentido com raiva duas semanas depois e os cientistas tentarão decifrar o acontecimento que começou num homem sem uma perna que tirou de dentro da mochila um sapato.

autor: rui almeida paiva

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