quarta-feira, 8 de julho de 2009

septuagésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a dignidade

1.

Afligia-lhe ter de escolher a cor e o tipo da madeira da campa. Afligia-lhe a ideia de entrar numa funerária e ter de decidir entre o esqueleto e as cinzas. Afligia-lhe a ideia de ter de elaborar os convites para que todos comparecessem ao seu funeral. Afligia-lhe a ideia de estar a morrer; mas disto não poderia fugir, por isso foi adiando as outras tarefas.

2.

Eleger o cérebro como porta de saída é proteger aquilo que trava e não aquilo que avança. Constrói antes a tua porta num sorriso, aí precisarás de toda a vontade para forçar uma entrada digna.

3.

Sussurras o teu truque ao ouvido de quem está carente; dizes-lhe: estou solteiro e esperas que a excitação desperte derrotas consecutivas na dignidade da pessoa que te ouve. Precisas apenas de três derrotas consecutivas que seguem a seguinte ordem: o vestido, as cuecas e finalmente o pecado.

4.

Estudas o exercício intelectual que te permite distinguir exaustivamente um tijolo de um arquitecto; um cavalo de um turista; um ladrão de um pedinte; uma experiência de uma ambição; um vício de uma mania; um mistério de uma crença; uma decisão de uma opinião; um circo de uma traição; um cancro de uma faca. O trapezista atira-se com receio quando não tem qualquer rede entre o chão e a morte (entre a vida e o céu), e quando tem os filhos na plateia a assistirem aos truques em que se pode escorregar. Aquilo que distingue o Homem do Pássaro, é aqui que reside o problema do trapezista – que não consegue deixar de se recordar da experiência traumática que foi presenciar a morte do seu único pai.

5.

Mais tarde ou mais cedo o operário teria de abdicar da loucura. Já tinha sido avisado demasiadas vezes: mais dessas conversas esquisitas com as ferramentas de trabalho e estás dispensado. Calado, começou em poucos minutos a falhar na última palavra de cada martelada, entortando as peças em vez de as endireitar. Os consumidores queixaram-se severamente dos estragos, da fraca qualidade da peça vendida. O louco, enquanto homem que está proibido de se envolver com a sua mania, torna-se geralmente criminoso, ou então um mau operário, como de facto se pôde comprovar neste caso.



autor: rui almeida paiva

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