segunda-feira, 6 de julho de 2009

septuagésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre o desejo


1.

Ingenuamente, o rapaz deita-se com outro rapaz muito mais velho. Um deles não adormece, tenta aproveitar-se do momento como o alfaiate do alfinete. Os dedos vão direitinhos ao assunto quando a vontade é ordinária. O rapaz mais novo assusta-se com o tamanho das mãos que lhe envolvem o dorso: aquilo é um homem e nos seus sonhos estava habituado apenas a mãos tenras, a mãos femininas. Uma vontade violenta, uma vontade errada, é o que pensa. Mas já não pode voltar atrás: tem medo, e é muito novo para recusar o discurso da imoralidade. Finge que dorme, enquanto o outro rapaz muito mais velho o despe – nos sonhos não era assim, nos sonhos era ele que despia.

2.

Uma barriga exposta pode atrair um desvio no trânsito ou então um desvio no beijo. A atitude mais decente é aproveitar os deslizes; é deslizar atempadamente e em segurança pela zona abdominal e tentar explicar com a ponta da língua os desenhos utilizados pelas abelhas antes de utilizarem o ferrão.

3.

Um grupo de cidadãos, apoiados por governantes empolgados, verificam que uma ameaça ordinária os atormenta – sentem desejo uns pelos outros. Uma cidade inteira sente desejo entre si, concluem. O que a carne tem de soberbo também tem de obsceno, insinua um dos cidadãos mais entusiasta. Quanto ao apetite, é tudo uma questão de sabores, alerta uma mulher atraente que tem estado calada e que logo a seguir despe subtilmente as cuecas por baixo da saia. Argumento reprovador, o desta mulher, que deixou quase todos os homens concentrados em apenas duas pernas.

4.

Os esconderijos do corpo também lutam por arrumação. Oraste à dignidade durante décadas e quando estás em cima da mulher com que te casaste tornas-te deselegante: abres-lhe as pernas e cospes-lhe para as coxas como se aquilo fosse um ritual doentio vindo de trás. Não desprezes as décadas em que te dedicaste a orar, mas experimenta, de vez em quando, nos intervalos entre as longas jornadas eclesiásticas, ir arrumando pequenas atrocidades que te passam pela cabeça. Não é desejável encontrares a fase adulta sem teres venerada com tanto afinco a perversão como fizeste com o santo em que acreditaste.

5.

Duas crianças pensam pouco quando a batalha da sexualidade atinge as zonas desprevenidas dos seus pequenos corpos. Juntam os lábios entre elas e gesticulam acções como fazem os filósofos quando accionam probabilidades consideradas verdadeiras. Acções grotescas são próprias destes meninos e meninas que têm a vantagem de ignorarem o que é aleijar. A natureza desperta-os cedo, mas eles não se importam; quem consegue achar impróprio um beijo inocente entre duas crianças que ainda só agora começaram um duelo com o desejo?

6.

Um lugar apetecível para acasalar é no corpo da mulher que amo. Existe também a água, que também consegue ser agradável, mas é na mulher que amo que costumo saber mergulhar sem bater com as costas em centenas de coisas que me vão incomodando todos os dias.

7.

Dois grupos de militares inimigos reúnem-se no mesmo refeitório para almoçar. Entre o meio-dia e as duas da tarde a guerra pára para hora de almoço, institui o órgão máximo do exército. Vários olhares furiosos se cruzam enquanto se segregam os alimentos – é pertencente à ciência da humanidade construir o ódio e o medo através de sinais. Mas entre os dois grupos dois soldados têm tempo para se apaixonar. Entre o meio-dia e as duas da tarde namoram à distância: namoram com os olhos. Depois das duas horas voltam a ser inimigos: um amor proibido pode levar à morte dos seus intervenientes, esta ideia está bem estabelecida dentro das suas mentes quando fazem pontaria ao indivíduo que se atravessa entre a espingarda e o tiro.

8.

Um segredo constrói-se com a intenção falsa de se esconder um assunto com vontade própria. Em pleno acto reprodutivo a mulher grita ACONTECEU. O homem gritou outra coisa, gritou um vocábulo indecifrável e todo o esperma de uma só vez. Devia ser um momento de convicção e de partilha de responsabilidades. Só a mulher tem o segredo a mover-se dentro do útero. É só seu, o segredo, por enquanto, o que a leva a tornar-se ansiosa. Quando um óvulo é fecundado deveria libertar fogo de artifício, pensa a mulher, deveria, o corpo, ter uma alavanca inserida na maternidade ou então um guiador que nos fizesse desviar dos acidentes – situações indesejáveis podem fazer tropeçar um casal que se ama pouco.


autor: rui almeida paiva

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