sábado, 4 de julho de 2009

septuagésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a ignorância

1.

Tenho considerado ir ao banco para depositar todos os meus livros. Ficou insustentável a capacidade para pagar a luz e, ler de dia, está fora de questão: só à noite consigo concentrar-me: é quando os olhos estão dispostos ao silêncio. Quanto a livros, continuo a comprá-los, deste vício não me consigo livrar.

2.

Um saco de laranjas que escorrega da mão do corcunda fere meia dúzia de frutos mas salva o corcunda de meia dúzia de operações. Este homem fisicamente estranho volta atrás e compra um saco pesado de maçãs, atira-as ao chão. Laranjas e maçãs misturam-se no mosaico da mercearia. Sabe-lhe bem, ao corcunda, presenciar a tanta matéria podre que não se queixa. Também ele tinha caído em tempos, mas nos olhos de uma mulher. Tinha escorregado das mãos dessa jovem que fugiu com outro rapaz mais bonito. E agora, no chão da mercearia, escolhia com os olhos os frutos podres com a sensação de ser uma mulher que foge com o rapaz mais bonito.

3.

Quatro ignorâncias podem concorrer ao mesmo homem e levá-lo em ombros ao desespero? Esperar que o tempo passe é uma das ignorâncias mais produtivas neste homem que se senta à beira do passeio e que adormece com uma lata vazia de feijão branco na mão. Duas moedas sonoras encontram o fundo da lata – é a recompensa, a motivação para que ela (a ignorância) continue ali.

4.

Sucede como nos enganos: há quem os coma, há quem os deite fora. Quem tem o direito de segurar no meu filho sem que lhe dê autorização? insinua a mãe à frente da juíza, talvez sob o efeito de calmantes. O bebé não chora, repousa dentro dos pulmões maternos: na música de embalar. Cada vez mais enervada, verifica que o seu filho adormeceu: música mais barulhenta pode surpreender alguns jovens mais irrequietos. A mãe toma um calmante como toma o seu filho nos braços: obsessivamente. E ainda ignora o facto de que é quando o seu coração se acalma e a sua respiração tranquiliza, que o seu bebé sofre de insónias. A música para embalar bebés tem que ser escolhida a dedo. Leve a criança e traga-a daqui a doze anos, sentenciou a juíza, sempre quero ver se manter-se-á nessa posição quando a criança tiver o dobro do seu tamanho.

5.

Com a ponta do braço temos a habilidade de assobiar para o alto e temos a energia necessária para desenterrar um morto que foi escondido: temos habilidade de assobiar para baixo, se for caso disso. E qual dos dois assobios pode fazer acordar o que já por si perdeu a vida? Esperemos que a chuva seque e que o morto vomite. Enquanto existir ignorância podemos utilizar a ponta do braço para assobiar em vez de o utilizarmos para desenterrar.

6.

Pedi lume a um homem que não me disse tome lá mas que me estendeu a mão quase que obrigado a fazê-lo e que com o braço estendido foi como se dissesse: tome lá mas não abuse. Reparei que tinha um dos olhos inflamados e vermelhos e inchados. Um dos olhos chorava (o inflamado) enquanto o outro olho via, assim conseguia ver e sentir ao mesmo tempo (capacidade prevista só para alguns). Estive mesmo para perguntar mas não perguntei. Disse-lhe muito obrigado e ele não gostou: respondeu-me com o olho que chorava. Estive mesmo para lhe perguntar qual dos dois olhos deveria utilizar quando fosse visitar a minha mãe ao hospital (o que chorava ou o que via), mas não perguntei. Ignorou-me severamente mal obteve de novo o seu isqueiro. Aquele cigarro soube-me a cinzas, a cinzeiro: teria acendido um pedaço morto daquele homem?

7.

Em plena conferência tento ser inteligente quando estou calado e, por outro lado, um animal com fome quando utilizo as palavras. Os alunos vieram a pedido dos vários professores e eu fui o único convidado a ter disponibilidade para lhes contar mentiras. Vesti-me de forma adequada à situação (gravata preta e calças azul-escuras) e desloquei-me como se tivesse quatro patas. Tudo isto é inteligência até ser apresentado ao auditório como alguém com grande vocação para comover. As quatro patas elevam-se. Levanto-me. Agradeço os aplausos. Sou um animal de aparências que gosta de provocar – as quatro patas bem assentes na provocação.



autor: rui almeida paiva

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