sexta-feira, 3 de julho de 2009

septuagésima quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a rebeldia


1.

Existem pessoas que estudam pássaros porque sempre gostaram de olhar para pássaros. Existem outras pessoas (nas quais me incluo) que estudam morcegos porque sempre gostaram de olhar para a Lua.

2.

Nascem espinhos na força divina, nascem também insectos mas isso é outra coisa. Uma canção composta por cinco mil pessoas em procissão faz crescer o romantismo entre Deus e o Diabo. É como bater à porta do céu. É ser recebido como se recebe um florista. Cinco mil pessoas a cantarem ao mesmo tempo: flor que se entrega ao primeiro namorado. O personagem que é eleito para subir com o ramo de rosas brancas tem muito espaço na imaginação: é o poeta da cidade; Deus não o recebe: é o poeta da cidade.

3.

Podes mudar alguns pormenores. A onda é a consequência do vento e da teimosia da areia e da qualidade do relevo. No chão há terra, ou pedra, ou rocha. Da onda não podes modificar o seu desenho. Podes mudar a cor do fato-de-banho e o ritmo das braçadas, isso podes mudar. Tudo tem um centro de gravidade; o prazer, neste momento, tem o centro da gravidade na tua boca. E o desemprego, e as injustiças, e as crianças mal tratadas, e a violência doméstica, tudo isto serão pormenores alteráveis por ti? Vem aí uma vaga, passa por baixo, a onda é imutável. Aquilo que está no sangue da natureza segue o seu rumo dentro das veias: é, portanto, tempo perdido para o rebelde, que pensa ser capaz de salvar o sismo da próxima destruição.

4.

Uma bandeira em cima do mastro aponta para o patriota que chora. Existe muita pobreza, é um facto: talvez seja uma razão para as lágrimas aparecerem. Entra no mar, o patriota, e rema contra a corrente enquanto o seu cérebro responde com uma melodia: é o hino nacional. Dentro de água as lágrimas salgadas confundem-se com a revolta do homem. No mar quantas lágrimas são água e quantas lágrimas são mar?

5.

O professor salva o aluno de um sonho com um desfecho trágico. O aluno quer proteger pessoas que morrem de diarreia e de pequenas guerrilhas: dos incendiários, dos cobardes. O professor salva o aluno do seu sonho. Queima-lhe o dedo de propósito e deixa-o a pensar com a extremidade. Não se brinca com uma cultura financiada por animais, por bichos, por pedras, justifica o professor, repreendendo o aluno. Neste momento, num país muito longínquo, estão a incendiar uma aldeia completa, finaliza o professor. A única salvação é a água, retribui o aluno, que acabou por se convencer da realidade. O dedo do pé do aluno incha, precisa de gelo. É esse o seu próximo objectivo: proteger o próprio dedo do pé como se este fosse uma parte significante da ferida do mundo.

6.

O poder de decisão dos pombos é citadino: escolhe-se um bom prédio abdicando-se de uma boa árvore no centro da floresta. Num banco estão quatro pombos e um velho de camisa preta. Chegou o Verão. Quando é que um reformado faz as malas para ir de férias? Espera, o velho, que os dois filhos tenham tempo para o visitar, espera um ano inteiro. Poderá o reformado tirar o mês de Agosto para descansar deste pensamento? Talvez os dois filhos apareçam num fim-de-semana. Quatro pombos preferem um banco a um ramo – talvez o velho retire da sua mala a sua sandes de manteiga. É um trabalho de paciência, permanecer no mesmo banco. A mala de viagem mantém-se ao colo do velho, lá dentro tudo o que é necessário para desaparecer, para sair dali e fugir para longe. Um olhar vago e recto mantém-no fixo ao nada. O velho pensa em fugir daquele estado de espera (os dois filhos não aparecem há três anos consecutivos). Talvez os pombos sujem menos as ruas se colocados em gaiolas. O velho abre a sua mala: entram os quatro pombos (para estas aves uma sandes de manteiga tem sabor a migalhas). Fecha-a de repente, e apanha o primeiro autocarro que lhe aparece. Não vai para outro país, o autocarro, mas também não vai para muito longe – a porta de casa do velho é o destino mais provável.



autor: rui almeida paiva

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