sexta-feira, 28 de agosto de 2009

octagésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Tens quantos meninos que se perdem de cada vez que os pões a ler Antoni Artaud? Tenta colocá-los na verdadeira floresta. Leva-os de olhos vendados e deixa-os onde os ruídos são todos suspeitos e onde a natureza não é surda. Larga-os entre árvores complexas e onde a chuva cai com o tamanho dos dedos que apontam para dentro. Vem-te embora sem que estes se apercebam. Depois, passado um mês, deixa que te entrem de novo na aula e será altura de lhes apresentares um verdadeiro poema de Antoni Artaud. E se nem todos regressaram nesse prazo estabelecido? Tens que ter consciência que nem todos são capazes de sobreviver em terra dentro das suas próprias cabeças. Tens agora os que não se perderam em terra, basta saber os que se perderão nos pensamentos.

Estória 2

Adormeces como adormece a mulher que chegou aos quarenta anos. Adormeces esse tempo todo. Despedes-te da vida com pouco entusiasmo, com pouco ruído. Sem fervor e sem cerveja na mãos festejas o teu corpo a despedir-se. A beleza adormeceu definitivamente e a mulher de quarenta anos deixou de ter um pénis que a desejasse. Deve cantar, então, minha senhora. A voz vem do fundo e não da superfície; deve tratar, a partir de agora, melhor da melodia e menos da pele, que esta já não tem remédio. Traga cá para fora todas as monições que estão guardadas na cave e dispare em todos os sentidos sem receios de acertar aleatoriamente em tudo o que ainda se dispa devagar. Dispare para tudo o que ainda sente e não para tudo o que ainda veja.


Estória 3

Aninhas-te com todo o tipo de medos. Tens a camisola manchada e tens medo que a mancha seja uma ideia suja: esta a razão para te esconderes, pois está claro! Tenho a certeza que a sujidade tem evoluído, que as conversas têm tropeçado perto da lama. Eu próprio caí na lama e estou todo sujo de adjectivos sangrentos. A menina esconde-se da aparência que não facilita o contacto com a restante população. A menina é de uma raça diferente da maioria das raças e tem o corpo manchado. A nódoa está tatuada na pele. Está à força tatuada em toda a epiderme. Por ser tão simpática, a menina deveria deixar de chorar. Tente não amachucar o espírito como se este fosse correspondência indesejada, como se fosse mais uma conta por pagar, como se fosse uma despesa. Faltam cinco dias para a menina desidratar debaixo dos cobertores. Quando a menina sair aí de dentro, verá que o mundo tem a facilidade de ultrapassar quem treme. O mundo não espera por si, é uma certeza. É melhor correr enquanto tem forças, apanhá-lo. Uma maratona esgota quase todas as reservas de oxigénio e produz o dióxido de carbono em pequena escala. O atletismo que tem praticado não lhe tem feito bem à saúde, menina. Aí escondida não tente saltar para onde não pode: não tente saltar mais que o ódio. De altura, enquanto está aí deitada, tem quase quarenta centímetros. Imagine quando tiver de novo cento e sessenta e dois centímetros; o quanto se pode voar quando se está de pé, quando se tem altura! Importa-se de se levantar imediatamente! A menina encolhe-se ainda mais. Está a fazer muito barulho, responde-me ela. Faltam menos de cinco dias para desidratar.



autor: rui almeida paiva

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

octogésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Mesmo que a disponibilidade tenha apanhado a mulher comprometida com as próprias pernas abertas. Mesmo depois de toda a sociedade entrar por ali a dentro num único gesto de esperança, num tremer, num vento. Mesmo que o nervo se tenha aproveitado da nudez e a criminalidade do perdão. Mesmo tendo sonhos que utilizem a fisicalidade como história. Mesmo que a dormir e mesmo que acordada a mulher pense em ser bombardeada nas gengivas e que a utilizem como comida plástica. Mesmo que em pensamento as operações intimas não sejam saudáveis e sejam brutalidade e uma quantidade de submissões intragáveis. Mesmo tendo um cérebro que se possa comparar a uma pocilga onde as moléculas se pareçam com piolhos que andam e que falam como bichos pouco civilizados. Mesmo que a sabedoria da mulher possa comunicar sobre teatro, sobre política e sobre costumes de países estrangeiros. Mesmo que a mulher se esfregue diariamente nas arestas dos móveis, mesmo que se esfregue até às cólicas intoleráveis. Mesmo que a vontade seja invariavelmente esta: rasgarem-lhe a roupa e a ciência que procura o esconderijo do espírito. Mesmo que a roupa para se rasgar na mulher seja muito maior que os calafrios vindos do espírito. Mesmo que a punam por estar agasalhada e por não ter espírito que se veja a olho nu. Mesmo que a vergonha mereça ser afiada. Mesmo que o sangue seque e as regras se tornem unicamente uma carne por abater. Mesmo que a mulher seja forçada a abrir as pernas e que seja esse o seu desejo: que lhe abram as pernas à força e que a obriguem a engolir trapos tingidos de azia. Mesmo que não lhe restem dores que conheça. Mesmo que a novidade tenha desaparecido e a dor surja como aparição da existência de um corpo que vive. Mesmo que se transforme em jardim respeitosamente pisado e abandonado. Mesmo que lhe tenham confessado que um segredo quando enfiado num corpo insensível se torna numa declaração pública. Mesmo que sem armas e sem corpo e sem apontaria para disparar em todos os que suportam a vida e as suas redondezas. Mesmo sendo e aparentando máquina, a mulher, a mulher sabe que deixou por completo de comer e de beber com a humanidade: os alimentos agora são outros e não têm fome. Mesmo tendo feridas por todo o lado que se vê e que não se vê; mesmo sabendo que não se vê, a mulher continua a dizer que não se alimenta pela boca mas sim por todas estas feridas que mastigam como ninguém. Mesmo que lhe tenham aparecido os impulsos cedo demais. Mesmo a ladrar como uma cadela. Mesmo a cantar como um rouxinol sem pata. Mesmo não estando disponível para aprender, foi a pele que lhe ensinou a estalada e a joelhada que tanto tem vindo a suplicar. Mesmo cadela, a mulher ganiu até à morte. Mesmo depois de morta a mulher não foi absolvida das dores. Mesmo depois de morta rasgaram-lhe o exterior visível de alto a baixo sem uma única manifestação de desgosto por si anunciada. Mesmo animal, mesmo morta, mesmo irreconhecível a mulher continuou a não sentir nada. Tudo como dantes, portanto, tal e qual como se nada se passasse.

Estória 2

Com fome as mãos põem-se em alerta e devoram a linguagem animal e matam, as mãos, matam tudo o que encontram pela frente. Sabes que se aproxima o bom tempo? O calor. O suor. O Sol aparece-te pela frente e tentas matá-lo utilizando as mãos junto à testa e sobre os olhos uma pequena sombra. Uma pequena morte, pensas tu. Uma morte nunca acontece por fases ou por migalhas. Ou se morre de uma só vez ou se vive de uma só vez. O homem que tem fome tem anulado tudo o que encontra pela frente. É, todo ele, um estômago que não mastiga e um maxilar que seca. As mãos desse pobre homem alteram caminhos, arrancam plantas e descascam laranjas que estavam dentro de um caixote do lixo; que estavam no seu caminho (as plantas e o caixote), e não se desviaram da sua fome e das suas mãos miseráveis. O homem defende-se dos pensamentos estabelecidos pelo censo comum: as minhas mãos não matam de uma só vez, estragam, apenas. Não tiram vidas. Tiram partes do que ainda sobrevivia. O homem mata tudo o que lhe aparece à frente, mas mata pouco, mata apenas um pouco da morte. Abre o tampo do caixote do lixo, o homem, e dá uma trinca num bife com molho, com sabor a sabonete. O bife já estava morto e eu só o matei mais um pouco. O homem arranca uma pétala de uma flor presa ao passeio. Tirou-lhe um braço e não a sua pulsação. O homem tem fome e quer matar de vez essa necessidade; para saciar essa vontade julga-se parte de um assassino: uma perna, uma dentada de assassino. O homem coloca as mãos junto à testa para matar parte daquele Sol que lhe apareceu á frente.


Estória 3

Vamos supor que um dia a barba passa a fazer parte obrigatória dos adereços comuns, tal e qual como uma camisa ou um par de sapatos. Vamos imaginar que todos os homens deixam crescer a barba para não se sentirem despidos. Roupa prolongada, a barba, que demora duas semanas a vestir-se e dois minutos a despir-se. Vamos tentar ser racionais e criar um adereço novo também para as mulheres que não têm barba; pelo menos que compense aquela ordinarice que é estarem constantemente com o rosto à vista dos depravados.


autor: rui almeida paiva

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

octogésima quinta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Os homens de idade arregalam os olhos presos ao rabo funcional da empregada de balcão. Tornou-se tique baixar os olhos e largar saliva para os lábios esfomeados de carne tenra enquanto a empregada passa obrigatoriamente por ali: a caixa registadora é o único objecto valioso e obrigatório no estabelecimento e os homens sabem-no, por isso sentam-se junto a esse objecto de render dinheiro por onde ela tem necessariamente que passar. O tique pior destes homens com alguma idade é não repararem nos seus truques mal executados: truques cheios de imperfeições. Todo o corpo se manifesta para o rabo da empregada: rasteja desesperado para essa direcção. O rapaz novo, no outro lado da sala, roda apenas ligeiramente os olhos e basta-lhe apenas um breve segundo para memorizar as formas que cintilam naquele corpo feminino. Não se expõe e mostra a capacidade dos reflexos para que não seja reparado a mirar. A empregada não descobre a subtileza do jovem e sente-se desprezada por um dos homens que frequentam o seu espaço, o seu território de tirar proveito dos arranques e solavancos do seu corpo ainda em dia estão a ser desprezados. Gosta de amachucar, gosta de entrar com balanço para dentro das cabeças masculinas: é a libido o seu destino predilecto. Os homens de idade, ao contrário do jovem, rodam o tronco e rodam o pescoço e ajeitam o membro dentro dos dedos e esticam os pés um sobre o outro. A empregada chega-se a eles. Provoca-os. Sonha de noite com os homens todos de uma só vez a sonharem para dentro dela. Para dentro da sua boca. Usa frequentemente aquelas calças porque são as mais justas e as mais escaldantes: é por elas que os olhos espirram e gozam prolongadamente por uma hipótese. A empregada levanta-se bem cedinho para escolher a toalhete porque o seu corpo é uma fábrica que produz e uma boa fábrica precisa necessariamente de todas as máquinas bem tratadas e bem lavadas. Calças que insinuam ou calças que escondam, pensa a empregada, em frente ao roupeiro, de manhã, tentando perceber a sua vontade animal. A empregada pensa nas calças como um químico, como uma bica curta, como um excitante. O marido, que continua a dormir e que há seis anos adormeceu para ela, não faz parte destes homens que a influenciam na escolha do químico a utilizar. Calças curtas ou calças largas, tudo depende da vontade que hoje sente de ser jubilada com maior ou menor desespero. Os velhos hoje vieram todos ao exercício, vieram todos à aula, e os seus corações frágeis aceleram a pique mal a empregada lhes dirige atenção. As calças escolhidas para hoje estão rotas de propósito junto a uma das nádegas. O exercício físico em excesso pode tornar-se maléfico na sua idade, explica a empregada ao velho mais atrevido que está todo esticado e que tenta chegar com os dedos ao espaço livre entre o tecido das calças, entre as formas redondas, diz-nos ele, completamente exausto da aula de hoje e da sua exigente professora.



Estória 2

No quintal, um dos alunos de teatro desloca-se com embaraço. Um embaraço desconfortável. O exercício para desenvolver a postura expressiva não lhe está a correr bem. O aluno explica ao funcionário da escola que o professor ordenou que ficasse dois dias a pensar sobre o movimento do corpo em acção quando andasse para algum lado e que só depois de não se sentir estranho nessa habilidade é que poderia entrar na sua aula de teatro. O aluno está há dois dias a treinar intensamente. Sente-se o imbecil da anatomia. Não consegue pensar e ser natural ao mesmo tempo. Desajeitado, confirma o funcionário. Um aluno não pode ter dois tipos de locomoção, um para ser utilizado quando se está a ser observado e outro para quando não se está a ser observado. O aluno ao pensar nas pernas e nos braços enquanto anda sente-se observado por alguém mesmo estando isolado dos restantes humanos. Sente-se observado por si. O professor, para além de obrigar o aluno a pensar no próprio corpo enquanto este se desloca, também o obrigou a parar e a repetir a frase “estou presente” por cada dez metros percorridos. Um aluno de teatro não pode ter dois tipos de acções, uma para quando estiver parado num quarto solitário e outra para quando estiver parado junto à multidão. Não podemos estar parados e sem trajectória ao mesmo tempo. Estar parado é movimento e é verbalidade, explica o professor. O aluno, no final do segundo dia de treino chegou à aula e disse alto “estou presente”. O professor gostou da forma como o aluno conquistou uma posição favorável para subir a voz com firmeza. O professor aproxima-se do seu mais recente adversário. O agora aluno de teatro poderia pisar o palco pela primeira vez. O aluno sobe ao palco pela primeira vez e com um golpe de pertinência conquista a zona do cérebro que tinha memorizado as obras completas de Harold Pinter. Um golpe fora do alcance do adversário, este.



Estória 3

É difícil terminar com um homem que vomita o verbo para fora das frases. Escolheu a viagem de barco, o velho, para realizar a sua última aparição artística. Todos tinham essa mesma impressão: o último espectáculo. O barco, cheio de público, interessava-se pelo seu possível silêncio final. Tinha entrado em cena o homem mais velho do mundo. Ali estava ele, não velho de idade mas velho de pele. Se o velho se desfizesse ali, se um dos braços caísse sem justificação ninguém se assustaria. De aparência o velho era aberração. O velho quis sentar-se, a plateia agrupou-se para apreciar este número de difícil execução: quem se conseguirá agachar naquele estado? O suspense anestesia os poros venenosos como a serpente anestesia o instinto de sobrevivência da presa. Quem não apoiaria o homem mais velho do mundo no seu truque de encenação planeado e treinado de antemão? O velho inclina o tronco ligeiramente, reduzindo o seu silêncio ao zumbido áspero de duas articulações coladas e ossificadas. Ouvem-se os sons dos ossos e estes esbarram contra a curiosidade compreensível do povo atento. Inclina-se tão demoradamente, o velho. Que agilidade! Quase lá, quase no acento, algo estremece. O barco estremece porque é barco utilizável, o que não estava previsto pelo artista. De súbito os joelhos enfraquecem e o velho começa a cair como se fosse um jarro de porcelana a baloiçar em cima de um móvel de madeira maciça. Entre os curiosos a respiração é travada nas goelas porque a cerimónia tornara-se altamente pavorosa. Os gritos suspendem-se. Todos engolem saliva espessa e fazem força por dentro para que o velho não caia. Mas lá vai ele, aos poucos, no sentido do piso violento. Este truque, o truque da queda, ainda é mais demorado que o anterior e o significado deste truque está bem estudado. A queda demora uns bons dois minutos. O sofrimento instala-se, primeiro no olhar do homem mais velho do mundo, e só depois nos que assistem à tragédia. O velho é horrivelmente velho na pele e tem toda a ruína dos homens assustados. O velho, para finalizar o espectáculo em apoteose, cai como estava previsto e o publico admira-o por isso. O artista, cansado de sobreviver a cada dia através daquele monte de pele e osso, cai e desfaz-se em centenas de cacos difíceis de apanhar. Um anão vestido de palhaço aparece então rapidamente e começa a varrer delicadamente todos os pedaços sólidos do homem mais velho do mundo.



autor: rui almeida paiva