segunda-feira, 29 de junho de 2009

septuagésima terceira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre o desequilíbrio

1.

Um pequeno carro vermelho atravessou uma auto-estrada em contramão. O desequilíbrio, aqui, não chegou ao destino de quem conduzia o carro vermelho – um morto, um ferido grave e um ferido ligeiro. Outro desequilíbrio: o condutor do carro vermelho corresponde ao ferido ligeiro do acidente.


2.

Um homem vaidoso tem mais espelhos na casa de banho do que livros interessantes na sua biblioteca. Passear ao longo de toda uma rua com o cabelo bem penteado dá mais nas vistas do que passear a inteligência pelo meio do quarto. A opção é sair de casa e esperar que a inveja dos outros homens produza desequilíbrio: que os faça acelerar o passo na direcção de uma mercearia que venda pentes consistentes. E ao lado da mercearia uma livraria deserta de gente: apercebe-se disso, o homem vaidoso, e fica contente pela sua influência. Consegue-se, hoje em dia, convencer melhor pela aparência do que pela apetência.


3.

Um amigo de infância entra na mesma festa em que me encontro e não me cumprimenta. Fica intimidado. Está velho e não sabe lidar com as rugas que lhe começam a estragar os anos que se avizinham. Será a velhice um saco de produtos fora do prazo? Ou a digestão é um problema grave que afecta apenas certas e determinadas pessoas?


4.

Situamos uma canção vinda do fundo do mar. Os peixes comunicam para sobreviverem por detrás das algas. É assim que o marinheiro passa as noites: a ouvir o fundo do mar. Maneira fácil de adormecer, pensa. Quase a entrar no primeiro sonho continua a ter ideias: como será que um náufrago comunica? Não pode ser através de uma braçada mal conseguida, pois não? No fundo do mar o marinheiro ainda vai encontrando aspectos que o convencem a não ter medo de fechar os olhos. Mais tarde, talvez quando tiver a responsabilidade de todo o navio, nessa altura as insónias tornar-se-ão insuportáveis. Como será que um náufrago comunica com a superfície? pensa o marinheiro, não conseguindo enganar o receio de um dia o atirarem ao mar.



autor: rui almeida paiva

Sem comentários:

Enviar um comentário