quinta-feira, 25 de junho de 2009

septuagésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre o apoio facial invertido (pino)

1.

Um homem muito pálido atravessa a estrada. Percebe-se, através de um conjunto de sinais mais ou menos evidentes, quando a saúde não nos abraça. O homem muito pálido carrega uma doença muito pouco irrigada – deitar de cabeça para baixo uma cor pode originar a falta de sangue dessa cor? A palidez colorida, por exemplo, será isto possível? Um homem muito pálido atravessa a estrada e confunde (inverte) o significado da sobrevivência: confunde o semáforo vermelho com o semáforo verde. É atropelado imediatamente. Existirá palidez no vermelho? – no sangue, no chão, no alcatrão?


2.

Comparar um sem-abrigo com um passarinho é uma asneira que me parece cruel. Comparar o passarinho preso numa gaiola com um sem-abrigo – talvez seja mais apetecível olhar desta forma o mundo.


3.

A estudante tinha as pernas tão arqueadas que os meninos gostavam de espreitar os monumentos pelo espaço que existia entre um joelho e o outro. Era como se as pernas da estudante fossem binóculos presos a um miradouro. Mas neste caso (no caso específico das pernas da estudante) a lente invertia tudo o que os meninos observavam. Era uma lente que dava a imagem das suas partes íntimas. E era por isso que os meninos espreitavam atentamente, era para ver o monumento.


4.

Quando Deus finalizou a leitura aconselhada pela sereia (quando acabou de ler o dicionário como se este fosse um romance) sentiu imediatamente a necessidade de escrever aquilo a que hoje chamamos erradamente Bíblia. Título original: «a história do espelho», este sim deveria ser o nome a aparecer na capa.


5.

Será, neste caso, correcto dizer que este louco tem bastantes responsabilidades a cumprir. Chegar a horas à aula de ginástica é a sua responsabilidade preferida. Meia hora três vezes por semana é a duração desta actividade lúdica. O professor ajusta os colchões e sem perder muito tempo (o louco torna-se insolente quando espera, torna-se atrevido) dá ordens para que se faça o pino contra os espaldares. O louco, de pernas para o ar, sente um alívio incalculável – meia hora de normalidade, é o que sente.


6.

Tudo isto se tornará mais claro se considerarmos que a pedra é um animal de escutar. Uma pedra oval e negra escuta, neste momento, as preces do homem solitário. Não responde ao homem solitário, a pedra, e é desta característica dura (o saber ouvir o outro ou a compreensão exaustiva) de que são feitos os animais grandiosos.


7.

Considerando a sorte como parte activa de um recreio cheio de números pouco honestos, sugerimos, quando alguém se aproxima, uma cautela muito rigorosa. O diabo anda à solta com a ternura na ponta dos dedos e o velho entra pela primeira vez no casino com a submissão de joelhos e com dez notas num dos bolsos (o valor total da sua reforma). Ao sair do casino, o velho perdeu peso num dos bolsos e toda a sorte que lá existia. Não se pode fugir ao azar, quando se procura a sorte nos sítios errados.


8.

Existe uma tendência para a depressão quando subestimamos a felicidade. Apercebe-te, enquanto te deslocas, que as solas dos sapatos estão bem assentes ao início do chão: contrariamente ao que tu pensas, temos o direito de não ficar quietos. O cavaleiro utiliza os cascos do cavalo para adiantar a sua felicidade: chegará mais depressa à princesa se for em cima da velocidade – aqui as solas dos seus sapatos estão bem assentes no sonho: manifestação aérea, a do cavaleiro, que sofre de saudades de poder conquistar um reino inteiro através de um único beijo.


autor: rui almeida paiva

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