sexta-feira, 26 de junho de 2009

septuagésima primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a coluna vertebral


1.

Doem-te as costas de tanto olhar para uma posição complicada? Muda então de cadeira, ou então desvia o olhar – o exercício é sempre aconselhável para os músculos que suportam posturas incómodas.


2.

Não é errado, de acordo com a convenção do padre, desconfiar da alma. Entra uma mulher na igreja, aproxima-se do altar, esforça-se (quando já está de joelhos) para encurvar as costas apesar da fraqueza: reza em voz alta, esta mulher diferente. Entra uma segunda mulher na igreja, senta-se no banco de pinho, reza em silêncio. O padre desconfia apenas da mulher que grita, não se apercebendo que a segunda mulher entrou na igreja apenas para fugir da chuva. Julgo que a senhora não tem o comportamento adequado para frequentar a casa de Deus, notifica o padre junto da primeira mulher. Grito para que Deus me oiça, é que em silêncio não tem resultado e hoje estou com muita pressa para que me salvem, respondeu a primeira mulher com um sofrimento comovedor vindo da zona lombar. Dentro de duas horas a operação teria obrigatoriamente de começar com um bisturi a rasgar-lhe a pele de cima a baixo.


3.

Se examinarmos o depravado, verificamos que tem uma coluna vertebral de crimes por iniciar. Cada vértebra é uma necessidade obscena prestes a explodir. Começarei por baixo, pela lombar, ou por cima, pela cervical? analisa ele, enquanto vê passar uma velhinha com um saco das compras numa mão e uma bengala na outra. Começarei por baixo, responde ele à própria dúvida.

4.

Não se pode hesitar entre a electricidade e a falta de luz. A minha cidade tem o princípio da actividade e as pessoas que nela habitam escondem-se imediatamente quando a luz da lâmpada se apaga. Os restaurantes fecham. Os bancos não cospem dinheiro. As joalharias têm medo dos que sabem apalpar na escuridão. A coluna vertebral da minha cidade é necessariamente uma sucessão de Watts posturalmente correctos em vez de uma sucessão de ruas desniveladas e tortas.

5.

Encolhem-se os dedos para se evitar a agressão – para se evitar o soco na sabedoria. O jovem de que vos falo aprendeu a roer as unhas como aprendeu a fumar. Aprendeu a imitar os outros, este jovem, que poucos anos depois tinha cancro nos pulmões e os dedos mostravam o princípio dos ossos da terceira falange.


6.

Um café curto, pede a velhota. O café curto dura-lhe três horas de ocupação. Antes de anoitecer tem que seguir caminho. Tira duas moedas da carteira. Na outra mão uma lupa, uma pequena lupa que se sobrepõe às lentes grossas dos seus óculos antiquados. Com os dedos a tremer verifica o valor de cada moeda. É confirmado o valor através da lupa: o café está pago.
Conclusão anatómica:
As lordoses, tal como as cifoses, são desvios que também podem aparecer de um mau jeito na visão.



autor: rui almeida paiva

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