terça-feira, 23 de junho de 2009

sexagésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre a mímica



1.

Obedecia aos gestos, o mudo. Esperava pela hora de entrar pela porta do café do bairro e estudava as próprias mãos como o linguista estuda a própria semântica. Apontava, quando não se sabia explicar, para os objectos como os romancistas apontam para o vocabulário. Mas não poderia ser poeta, o mudo – os adjectivos são palavras sem dedo indicador.


2.

Utilizando a linguagem oral, o que é que prevalece, a conversa ou a expressividade? Dez dedos e um rosto são onze dedos que conseguem dizer muito pouca coisa. Responder sim, para o mudo, é como responder não: é tudo demasiado fácil se não exigirmos explicações. O pior é justificar a resposta (justificar o sim ou o não), que atrapalha inevitavelmente a conversa que deveria ser exacta. E nos restantes casos, não se passará o mesmo? – a explicação não é muda, é surda, quando nos faltam os argumentos.


3.

SUPOR, para o imperador, era exercer um dever que fazia parte do protocolo original. Necessitaria apenas de uma cadeira confortável, este senhor nobre; era uma exigência de que não prescindiria – a sua cadeira confortável. A metodologia utilizada era simples (poderemos até denominá-la universal): primeiro o imperador sentava-se, e depois supunha. Um dia supôs que tinha perdido a voz de cada vez que se sentava na sua cadeira confortável. No final desse dia, e já de pé, o imperador advertiu os que o ouviam: em pé não se supõe tão bem, para algumas tarefas tem que se estar a observar a vida de baixo.


4.

Quando o ministro do Trabalho se apercebeu de que um grande número de profissões não necessitariam de ser verbalizadas para se perceber a sua definição perante toda uma sociedade (o motorista roda o volante e todos têm a certeza de que é ele que nos leva ao destino proposto; o varredor pega na vassoura e roda o pulso repetidamente e ficamos elucidados do ofício por si escolhido; o arqueólogo faz um buraco vagaroso como se estivesse a acariciar o esqueleto da Terra, como se estivesse a averiguar a quantidade de cócegas debaixo da superfície), quando o ministro se apercebeu de tudo isto, começou a dar prioridade a duas categorias de pessoas para resolver o problema do excesso de emprego: deu prioridade aos tímidos e aos mudos.


5.

Para se aproveitar uma nudez são necessárias duas premissas: existir um corpo forte sem roupa e existir uma luz forte sem lua. E se te deres conta (supondo que fazemos parte integrante deste episódio) que estás junto a esse corpo despido, percebes facilmente que tudo o resto que aparecerá entre ti e o corpo despido depende dos gestos. Sem gestos, sem a manifestação do toque, faço a seguinte pergunta: conseguiríamos nós ter um proveito absoluto desta pessoa despida se activássemos o pudor que se situa entre as pernas e o desejo?


6.

Para averiguar a sua pureza, a florista costuma instalar-se à frente do espelho e comunicar as asneiras que lhe aparecem na boca: merda, puta, cabra, nojenta, asquerosa. Do outro lado, do lado do reflexo, os insultos são mudos, explica, e entre os dedos da mão direita um ramo de rosas brancas. A pureza da florista em frente ao espelho concentra-se apenas na sua mão direita, e ela sabe-o; por isso faz questão de reflectir enquanto olha para si: tudo isto serve para construir um equilíbrio entre o braço e a extremidade da boca.


7.

A conversa entre a mãe e a filha adolescente não atribui qualquer vantagem à maternidade e ao esforço que foi realizado por aquela durante uma dúzia de anos. A filha sai de casa todos os dias e no trajecto para a escola ouve os pássaros a discutir com a liberdade. Não é por falta de cabeça que a adolescente não dá ouvidos à sua mãe, é por falta de céu. É apenas por falta de céu que ela sente aquilo.


8.

Cuspir para a cara do inimigo é insulto maior que a frase: vai prò caralho. Uma guerra oferece ao corpo uma mímica elevada de insultos. Não és obrigado a utilizar palavras simpáticas quando seguras regularmente uma arma mortífera. As palavras deixam de servir a necessidade primária de comunicar quando em guerrilha: apontas uma metralhadora à cabeça de um chinês e ele percebe-te. Fala-se a mesma língua, em todas as guerras, desde que se cumpra, claro está, com o objectivo de se entender o tiro como uma palavra assassina.



autor: rui almeida paiva

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