quinta-feira, 18 de junho de 2009

sexagésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

1.

Certa tarde, à frente de uma loja de antiguidades, um pensador tirou da sua mala um prato como se estivesse a tirar da mala um guarda-chuva (tinha começado a chuviscar como estava anunciado no jornal). Esperou, depois, que o prato se enchesse até ao bordo (num dia como aqueles, não tardaria a ficar satisfeito com a quantidade pretendida de líquido caído do céu). Entrou imediatamente na loja. Um prato valioso, disse o pensador. Só compramos objectos idosos, objectos que estejam ou minimamente estragados, ou minimamente sujos, referiu o dono da loja. Quer algo mais antigo que um pedaço de céu? ainda argumentou o pensador, abanando a cabeça como que desapontado com a incompreensão dos seres normais.


2.

Convém alertar os especialistas de uma nova categoria de alergias: os pratos sem fundo. O prato tem de ser prato e tem de ser pouco fundo para pertencer a esta nova alergia de que vos falo; é também, felizmente, a minha única incompatibilidade com a matéria que me rodeia. Não costumo ficar com comichão, nem com hematomas, nem com ataques de espirros, vomito apenas quando me deparo com este produto tóxico: o prato raso. É esquisito, mas cada vez compreendo melhor esta minha alergia por pratos rasos – é difícil depararmo-nos com o exageradamente superficial. Ainda ontem vomitei em cima de uma mulher que discursava sobre estratégias para pintar as unhas dos pés sem se sujar. Talvez seja uma outra alergia, a de não suportar pessoas sem fundo, mas para isso chamaria um psiquiatra e não um alergologista.


3.

Parece-me útil ter a convicção de que um prato se assemelha mais com um bife de vaca bem passado do que com um naco de barro dentro do forno. Vejo um prato a frequentar com maior satisfação uma cozinha do que uma olaria. O sexo feminino do oleiro são as suas duas mãos no barro. E este último, o barro, é o sexo masculino deste artesão, que continua a esforçar-se no seu ingrato ofício.
Até aos cinco anos de idade não nos recordamos das educadoras que nos abraçaram, que nos deram colo, que nos alimentaram. Actividade ingrata, a do oleiro, que nunca chega a ter o reconhecimento devido da sua actividade.


4.

Um prato também tem dores de barriga. Muitos alimentos, quando expostos demasiado tempo ao calor, ficam de tal forma entranhados na loiça que muito dificilmente se pode evitar as cólicas no intestino grosso dos pratos com uma dieta desregrada.


5.

A morte de um prato tem tanto de terrível como de inesperado. Soube de um vizinho meu que morreu porque não estava com a saúde na respiração. O meu vizinho era homem de família e, com um ataque de falta de ar repentino, decidiu atirar-se do décimo andar com a boca aberta. Procurar rapidamente ar onde ele existe, foi o seu pensamento – em grandes golfadas, foi esta a estratégia trágica que utilizou. Quando caiu, partiu-se em vários, o meu vizinho.
Tenho um filho à minha frente (enquanto escrevo este texto) irritado com o sabor do arroz: o arroz provoca-lhe cócegas na língua. Durante a birra apercebo-me que empurra o prato para o chão: quando caiu, partiu-se em vários, o prato do meu filho.


6.

Sente-se em forma, hoje, o actor. Tem no olhar um brilho estragado e uma inquietude que se encaixa milimetricamente na personagem. Quando encarno alguém velozmente, sou velocista a chegar aos ossos do outro que aparece em cima do palco. Estou em forma, hoje, para chegar a esse esqueleto; e abre-me o apetite todo este exercício de atleta. Arrumo cada fala entre o pâncreas e a vesícula e torno-me em alguém fiável para os espectadores. Noutros dias (e a maior parte das vezes é assim) o actor sente-se em baixo de forma: desiste, a meio de uma prova dos cem metros barreiras. Caindo, portanto, a meio da personagem, não conseguindo nem chegar à pele do outro que aparece em cima do palco.


7.

Muita da eficácia dos alimentos tem directamente que ver com a forma como estes são apresentados aos clientes. Aqui a comida pode ou não estar em forma. E chegar em tempo recorde ao apetite do homem com pouca fome tem mais de apresentação que de sabor.



autor: rui almeida paiva

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