domingo, 28 de junho de 2009

septuagésima segunda tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estudo sobre o número

1.

É horrível destilares apenas porque lês um autor sul-americano. Limpa exaustivamente a cadeira em que te sentas: é lá que repousarás a criatividade: na higiene. Estás prestes a abrir o livro que está quase a chegar ao fim. Começa depois a contar o número de vezes que respiras e assim (deste inspirar e expirar contabilizado enquanto lês o livro) poupas uma quantidade enorme de histórias sobre indígenas que nunca chegarás a conhecer. «Limpa sempre a cadeira antes de te sentares» foi isto o que aprendi neste dia tão inútil.

2.

Uma imigrante tem a pele escura do Sol e da nascença e tem os olhos demasiado azuis para nos aproximarmos deles. Veio do seu país com um número limitado de mercadorias – dois volumes, começa a contar. Dois filhos são duas cargas imprescindíveis de fazer dinheiro fácil. Primeiro rasgo-lhes a roupa, depois obrigo-os a pedir pelas ruas, pelos cafés e pelas estradas com semáforos. A duas crianças não se recusa tão bem uma moeda pouco valiosa, esta é uma expressão que lhe surgiu da experiência. A imigrante, escondida atrás de um caixote do lixo, ri-se da eficiência da mercadoria que trouxe do seu país. O filho mais pequeno (mercadoria portátil, costuma ela chamá-lo à noite, quando bebe demasiado whisky) consegue uma expressão mais agonizante que o seu irmão: é este o filho que recebe o único beijo que a imigrante disponibiliza aos seus dois meninos de olhos tristes.

3.

O jornalista tem pressa de vender a notícia porque tem uma filha para nascer na barriga de uma desconhecida. Quem comprar a notícia está a vender os ferros que arrancarão um feto da desconhecida. Tem que fazer sucesso a minha mais recente notícia, interpõe ele, enquanto folheia as folhas redigidas a dois espaços, talvez consiga ser capa de um jornal importante. Se a vida me continuar a correr bem, poderei continuar a fornicar desconhecidas sem me ter que preocupar com as suas possíveis consequências negativas. Para ter um filho de uma mulher tenho que gostar dela; nessa altura (se essa altura chegar), consigo prever o jornalista aborrecido em que me tornarei.

4.

A rapariga bonita baixa o olhar porque tem consciência da sua beleza: é bonita e é tímida, a rapariga, o que por um lado diminui o número de namorados, e por outro multiplica o número de olhares que a atacam.

5.

Se arrombaram a porta do teu vizinho, tem cautela: a violência tem uma quantidade de espontaneidade muito reduzida – não oferece alojamento ao acaso. É altura de te preocupares com a saliva que gastas só por teres medo. Não é suficiente ficares sozinho enquanto passeias no meio da sala. Tens de actuar: coloca fechaduras com códigos pouco prováveis na porta de entrada e nas janelas coloca ferros aos quadrados. E, na altura em que for tão difícil saíres de casa como alguém conseguir entrar nela, a partir dessa altura começa a relaxar. Mas por enquanto tudo é possível. O teu vizinho sai todos os dias de casa e já foi assaltado cinco vezes. Mantém-te alerta, homem, que um bom ladrão tem sempre muito de jogador de cartas: a batota é regra fundamental para meter medo aos assustados.


6.

O banhista protege-se do Sol como o cão da raiva. Apetece-te sujar a pele de areia e de Sol. Atirar um bom mergulho fica-te bem e ninguém desconfia disso: é saboroso e está dentro dos parâmetros. O pior é teres que te despir e não te despes porque o teu corpo é a única estupidez que não está dentro dos parâmetros. O cão morde outro cão para se vingar do mundo. A raiva alastra-se. Chegará mais tarde ou mais cedo ao homem que não se despe e que mergulha e que é observado por quase toda a gente. Sabe-lhe bem, o mergulho refrescante, mas ainda não saiu do mar com a última onda e ainda não está preparado para ser mordido pela incompreensão dos que não tiram os olhos da sua figura a boiar (ainda não está preparado para ser mordido pela raiva). Trinta e cinco cães esperam-no, nas suas toalhas.


autor: rui almeida paiva

Sem comentários:

Enviar um comentário