quarta-feira, 24 de junho de 2009

sexagésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

XI – Estudo sobre a arrumação



1.

Ao utilizar a força, o pescador perde muito mar. Ao utilizar a fraqueza, o político perde muito eleitorado. Para dominar o mar, o pescador sabe que tem que fazer parte da corrente: tem que arrumar a coragem o mais perto possível do cardume. Para dominar o povo, o político sabe que tem que fazer parte da ignorância: tem que arrumar a modéstia o mais perto possível da multidão.


2.

Um compositor exímio de música clássica tem o dom de dobrar as notas sonoras de um piano como uma boa dona de casa tem o dom de dobrar a roupa do marido. As exigências destes dois génios são unicamente três: um armário com bastante arrumação, paciência , e saber lidar com a frustração.


3.

Quem tem mais de soldado: um professor ou um engenheiro? O primeiro tem que ensinar a colocar tijolos de sabedoria dentro dos seus alunos. O segundo tem que ensinar a colocar com sabedoria os tijolos dos seus empreiteiros.


4.

Fala a voz da experiência: a probabilidade de um milionário encontrar uma moeda perdida no chão é duas vezes maior que a do pobre. O milionário tem o dobro da vocação para a sorte, ou então, o dobro da ganância de conseguir descobrir dinheiro em qualquer lado.


5.

Há quem tenha unicamente espaço para arrumar tristeza. Tens uma máquina que não utilizas e não tens espaço para ela; utiliza-a como mesa – troca de máquina por máquina. Há quem tenha muito pouca vontade para sorrir – a disponibilidade é parte integrante neste processo: tens uma despensa para organizar faz hoje um ano (desde o nascimento das meninas, diz a mãe ao pai). O pai teve que se levantar vinte vezes durante a noite porque uma das filhas acordava com tosse e logo a seguir chorava porque a tosse incomoda os sonhos tranquilos com demasiada velocidade (definição adequada de susto infantil, pensou o pai numa das vezes que saiu do sofá). Poderia, durante a manhã, começar a escolher o que é lixo e colocar tudo em caixotes fundos, pensou o pai, contudo hesitante, a olhar para a confusão existente na despensa, pois poderia, mas primeiro está a vontade de dormir; primeiro está sempre qualquer coisa que sirva de desculpa para não actuar. A obrigação e as tarefas aborrecidas, a estas duas exigências, coloco-as em último lugar na minha lista de obediências conjugais.


6.

O responsável pelo talho que frequento é muito organizado: arruma a sua biblioteca de carne suspensa dentro da arca frigorífica seguindo respeitosamente a ordem alfabética do animal. Tem tudo um óptimo aspecto (inclusive a morte, que pelos vistos pode ter um aspecto asseado). Por dentro não tem muita apetência para a arrumação, o responsável pelo talho: é gordo e alto. No estômago não existe uma arca frigorífica de conservar a elegância. Fica-lhe mal, a barriga – espaço duvidoso, poderia acrescentar. O que faz ele à carne quando está sozinho? Poderá ele comer carne crua às escondidas?


7.

Uma mulher pouco elegante desarruma mais a locomoção que um Outono cheio de folhas no chão. Depois de memorizares esta informação tens múltiplas hipóteses de tornares os outros organizados. Vai até à praça, detecta quem tem potencial e, com coragem, aproxima-te da tua vítima e disponibiliza-te para a ajudares a ajeitar as suas apetências físicas para os sítios certos. Na locomoção existe quase tanta sedução como numa cama, pensas tu enquanto te aproximas da tua vítima.


8.

A brincadeira preferida das crianças é tirar tudo do sítio. Olha ali duas molduras tão certinhas, é para lá que a criança se dirige primeiramente. O artista nunca deixa de ser criança nos aspectos da arrumação – ali estão dois conceitos demasiado estáveis – é para lá, com certeza, que o artista se dirigirá primeiramente.



autor: rui almeida paiva

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