quinta-feira, 27 de agosto de 2009

octogésima sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Mesmo que a disponibilidade tenha apanhado a mulher comprometida com as próprias pernas abertas. Mesmo depois de toda a sociedade entrar por ali a dentro num único gesto de esperança, num tremer, num vento. Mesmo que o nervo se tenha aproveitado da nudez e a criminalidade do perdão. Mesmo tendo sonhos que utilizem a fisicalidade como história. Mesmo que a dormir e mesmo que acordada a mulher pense em ser bombardeada nas gengivas e que a utilizem como comida plástica. Mesmo que em pensamento as operações intimas não sejam saudáveis e sejam brutalidade e uma quantidade de submissões intragáveis. Mesmo tendo um cérebro que se possa comparar a uma pocilga onde as moléculas se pareçam com piolhos que andam e que falam como bichos pouco civilizados. Mesmo que a sabedoria da mulher possa comunicar sobre teatro, sobre política e sobre costumes de países estrangeiros. Mesmo que a mulher se esfregue diariamente nas arestas dos móveis, mesmo que se esfregue até às cólicas intoleráveis. Mesmo que a vontade seja invariavelmente esta: rasgarem-lhe a roupa e a ciência que procura o esconderijo do espírito. Mesmo que a roupa para se rasgar na mulher seja muito maior que os calafrios vindos do espírito. Mesmo que a punam por estar agasalhada e por não ter espírito que se veja a olho nu. Mesmo que a vergonha mereça ser afiada. Mesmo que o sangue seque e as regras se tornem unicamente uma carne por abater. Mesmo que a mulher seja forçada a abrir as pernas e que seja esse o seu desejo: que lhe abram as pernas à força e que a obriguem a engolir trapos tingidos de azia. Mesmo que não lhe restem dores que conheça. Mesmo que a novidade tenha desaparecido e a dor surja como aparição da existência de um corpo que vive. Mesmo que se transforme em jardim respeitosamente pisado e abandonado. Mesmo que lhe tenham confessado que um segredo quando enfiado num corpo insensível se torna numa declaração pública. Mesmo que sem armas e sem corpo e sem apontaria para disparar em todos os que suportam a vida e as suas redondezas. Mesmo sendo e aparentando máquina, a mulher, a mulher sabe que deixou por completo de comer e de beber com a humanidade: os alimentos agora são outros e não têm fome. Mesmo tendo feridas por todo o lado que se vê e que não se vê; mesmo sabendo que não se vê, a mulher continua a dizer que não se alimenta pela boca mas sim por todas estas feridas que mastigam como ninguém. Mesmo que lhe tenham aparecido os impulsos cedo demais. Mesmo a ladrar como uma cadela. Mesmo a cantar como um rouxinol sem pata. Mesmo não estando disponível para aprender, foi a pele que lhe ensinou a estalada e a joelhada que tanto tem vindo a suplicar. Mesmo cadela, a mulher ganiu até à morte. Mesmo depois de morta a mulher não foi absolvida das dores. Mesmo depois de morta rasgaram-lhe o exterior visível de alto a baixo sem uma única manifestação de desgosto por si anunciada. Mesmo animal, mesmo morta, mesmo irreconhecível a mulher continuou a não sentir nada. Tudo como dantes, portanto, tal e qual como se nada se passasse.

Estória 2

Com fome as mãos põem-se em alerta e devoram a linguagem animal e matam, as mãos, matam tudo o que encontram pela frente. Sabes que se aproxima o bom tempo? O calor. O suor. O Sol aparece-te pela frente e tentas matá-lo utilizando as mãos junto à testa e sobre os olhos uma pequena sombra. Uma pequena morte, pensas tu. Uma morte nunca acontece por fases ou por migalhas. Ou se morre de uma só vez ou se vive de uma só vez. O homem que tem fome tem anulado tudo o que encontra pela frente. É, todo ele, um estômago que não mastiga e um maxilar que seca. As mãos desse pobre homem alteram caminhos, arrancam plantas e descascam laranjas que estavam dentro de um caixote do lixo; que estavam no seu caminho (as plantas e o caixote), e não se desviaram da sua fome e das suas mãos miseráveis. O homem defende-se dos pensamentos estabelecidos pelo censo comum: as minhas mãos não matam de uma só vez, estragam, apenas. Não tiram vidas. Tiram partes do que ainda sobrevivia. O homem mata tudo o que lhe aparece à frente, mas mata pouco, mata apenas um pouco da morte. Abre o tampo do caixote do lixo, o homem, e dá uma trinca num bife com molho, com sabor a sabonete. O bife já estava morto e eu só o matei mais um pouco. O homem arranca uma pétala de uma flor presa ao passeio. Tirou-lhe um braço e não a sua pulsação. O homem tem fome e quer matar de vez essa necessidade; para saciar essa vontade julga-se parte de um assassino: uma perna, uma dentada de assassino. O homem coloca as mãos junto à testa para matar parte daquele Sol que lhe apareceu á frente.


Estória 3

Vamos supor que um dia a barba passa a fazer parte obrigatória dos adereços comuns, tal e qual como uma camisa ou um par de sapatos. Vamos imaginar que todos os homens deixam crescer a barba para não se sentirem despidos. Roupa prolongada, a barba, que demora duas semanas a vestir-se e dois minutos a despir-se. Vamos tentar ser racionais e criar um adereço novo também para as mulheres que não têm barba; pelo menos que compense aquela ordinarice que é estarem constantemente com o rosto à vista dos depravados.


autor: rui almeida paiva

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