sexta-feira, 18 de setembro de 2009

octagésima nona tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Tomaste como certa a felicidade tal e qual como o jornal que sai impreterivelmente naquele dia da semana. Ela tinha olhos claros, sardas salpicadas, cabelos lisos. Tu tinha-la a ela e não tinhas metade da sua beleza mas tinhas o dobro da sua provocação. Ela continha-se e tu expunhas-te. Era ela, no entanto, que em qualquer parte onde se dirigiam, que tinha a capacidade de se fazer reparar sem precisar de abrir a boca. Concentra-te. Esperaste dias inteiros com a ideia na cabeça, com a ideia de encontrar um homem que faça justiça a tal beleza que se anda a perder junto a ti. Procuraste na rua e todos os homens bonitos eram fixados e trabalhados na tua mente. Nas ruas procuravas a beleza que encaixasse nela, na sua pele pálida, nos olhos claros, no sorriso subtil. Falaste a alguns amigos que te conheciam e que não a conheciam de que estavas à procura de alguém bonito porque tu não eras bonito e ela era muito bonita para perder o seu tempo ali, junto a ti. Falaste-lhes das sardas pouco salientes, os cabelos loiros e lisos e naturalmente escorregadios. Ela tem tanto de brilho como tu de atrevimento, e tu gostavas de ser um pouco menos imperfeito para te sentires melhor ao seu lado. Memorizavas todos os homens bonitos e fazias com que eles se encontrassem com ela, um para cada dia. Hoje encontrar-se-ia com aquele dos transportes, seria definitivamente alguém do seu nível. E não te importas de ir pensando assim para aliviares um pouco da sua elegância. Mais tarde, soubeste por um amigo pouco chegado, que ela soube que tu a traias com duas colegas lá do escritório. Ela soube nesse momento, e apenas nesse momento, que eras demasiado feio para ela.


Estória 2

Não, disse ele aos outros, deixem-me, acontece-me frequentemente, de repente agarro em dois ou três livros e deito-os pela janela. Um homem que cai no meio de uma dor interior, que cai no meio de uma solidão faz barulho? Sim, disse ele aos outros, agarrando aleatoriamente num monte de livros, livrando-se deles pela janela. Mais tarde, quando ele procura determinado título e não o encontra na sua biblioteca privada entra em crise. Deixa-o paralisado, a crise. Sem agir por momentos. Porém, subitamente fecha-se no quarto e tapa a cabeça com a almofada. É um alívio, a cabeça debaixo de alguma coisa que abafa: o mundo pára como se não tivesse ouvidos para realmente estar a postos de avançar. Um deus que acorda na extremidade de uma cidade pobre, na extremidade de uma cidade suja, terá vontade de rezar? Talvez, disse ele aos outros. Deixem-me. A crise mais uma vez leva-o à biblioteca: nem um livro em nenhuma prateleira. Os livros e as prateleiras tinham-se esgotados com todas as crises anteriores. De certo modo sinto-me aliviado, disse ele aos outros, ler também é não abrir os olhos. É a fechar os olhos e a dormir que as paisagens se distinguem. Ler é também lembrar a oportunidade que temos de sermos esquecidos em pouco tempo.

Autor: rui almeida paiva

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