segunda-feira, 21 de setembro de 2009

nonagésima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Farias fosse o que fosse para ultrapassar a meta isolado dos outros. Alguém ameaça-te constantemente.

«Está a chegar atrasado ao trabalho porque estive lá de manhã e você ainda não tinha chegado. Voltei lá à tarde e também ainda não tinha chegado.»

«E agora encontra-me num banco de um jardim a descansar, não é? – disse-lhe com um sorriso desprezível. – Se vem aqui para falar de trabalho pode voltar e marchar para outro beco, aqui não se fala de trabalho, aqui espera-se.»

«Mas eu não lhe pago para isto, pago-lhe para estar lá, não aqui.»

Fostes-te embora. Sentaste-te noutro banco num outro jardim, à espera. Não lhe deste, portanto, mais explicações porque todos os dias voltarias a ter de esperar para chegares à meta isolado dos outros: para seres o último. E terias o teu reconhecimento de persistente um destes dias. Um dia fazer-te-ias notar. Um trabalhador destacável não pode andar sempre com pressa para apanhar o tempo certo – foi no que pensaste – não se pode andar sempre feito doido atrás do cronómetro.


Estória 2

Quase por todo o lado a preguiça faz filhos. Quando um homem tem vontade de atacar a fêmea que não se mexe, que tenta passar despercebida, não vem armazenado de respeito, traz armazenado prazer e um balde cheio de vontade de ser entornado. Um bom macho necessita de uma boa submissão e faz das coxas e do pescoço da vítima um bom salão de livros, faz dela uma verdadeira biblioteca importante. Incendei-a, portanto. Faz calor num incêndio e junto ao fogão do baixo-ventre. Está tudo a ser queimado como o previsto. Debaixo dele a mulher é preguiçosa no acto de intervir, no acto de manifestar a sua vontade. Deixa-se levar, a mulher, pela força quando a inacção atinge a língua e quando todos os restantes órgãos não são utilizados para fugir. Está amordaçada por baixo de um corpo e não está à vontade para dizer «não carregues aí» ou «tem cuidado, com pouca força» ou «não vás até ao fim para que não me aconteça nada de indesejável; para que não nasça nenhuma criança desta minha incapacidade para dizer não, incapacidade para dizer basta». Mas a mulher e a sua língua. Os dois problemas residem aí: a mulher e a sua língua pouco utilizada. Língua presa na vergonha, que, neste caso, se confunde com preguiça porque foi anestesiada, a língua, não à nascença, mas muito depois: na altura em que o corpo se ajeita nas formas. Linhas exigentes que atraem. A mãe da mulher chegou-se junto à mulher ainda menina (nesse dia em que as linhas se tornaram formas e se tornaram bonitas) e injectou-lhe o veneno. Espetou-lhe a agulha de cinco centímetros de comprimento e expulsou todo o medo possível: o teu primeiro homem será o teu único homem senão serás mulher de todos os homens e o teu pai verá em ti uma puta e não uma filha. A mulher, debaixo do homem, tinha a língua paralisada de muito daquele veneno que lhe tinha sido injectado porque aquele era o seu primeiro homem mas não o último. Aquele era um qualquer que se aproveitou da sua incapacidade para travar, então ele acelerou e não parou mais. Foi ali mesmo que se despistou: para dentro da mulher incapaz de se mexer.


autor: rui almeida paiva


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