segunda-feira, 14 de setembro de 2009

octagésima oitava tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Cada espaço perde a graça quando ocupado pela não-mudança. O condutor do veículo utiliza o volante para encostar a testa e para encostar a falta de paciência. Encheram-se as principais artérias da cidade e os nervos dos apressados são um saco cheio de soro que os mantém vivos. Tendo em conta que a revolução se desenrola ali mesmo ao lado, verificamos que o país mudou de governantes e que o espaço ocupado pelo condutor estagnou por completo. Está por ali há mais de duas horas sem tocar no pedal que acelera. Esfrega então os olhos como dois arbustos expostos ao vendaval. Tem calma, homem, a revolução não tem pressa para incendiar alguém que não se manifesta. O regime acabou por ceder e o poder mudou de mãos porque um milhão de pessoas escolherem o mesmo sítio para gritar ao mesmo tempo “rua, seus ladrões”. O condutor, desesperado, verifica que milhares içam bandeiras e milhares de olhos húmidos contêm ódio. A filha do condutor espera-o no colégio: está triste e o condutor certifica-se que em cada um dos revoltados está a desilusão da sua filha. Está revoltado com os revoltados porque não o deixam avançar na direcção do colégio. Decide buzinar para que acabem imediatamente com os protesto. A angustia da espera, dentro da minha filha, pode-lhe provocar danos irreparáveis: a criança sofre. Deixem o país como estava, existem crianças à espera dos seus pais, grita o condutor com a cabeça fora do vidro. Uma revolução atinge as proporções de uma massa que não consegue pensar muitas vezes. Uma massa como os dois ossos de um pulso, como um único braço de pugilista. O braço aproxima-se do carro do condutor que protesta e devora-o sem deixar rasto. Foi engolido por um grupo de formigas que trazia todo um novo país nas mãos. Uma menina, no outro canto da cidade, não sabe vocalizar a palavra «revolução» mas sabe na perfeição a dicção da palavra «pai». Esperou, a menina, horas e dias e anos que aquele homem que a costumava encher de beijos regressasse. Até que muito mais tarde a menina teve coragem de perguntar por ele e do outro lado tiveram a coragem de responder: o teu pai morreu na revolução, era um grande homem.

Estória 2

Estes meninos são a extensão de um afecto nunca iniciado. Assiste-se, no lar, ao combate do anão contra o gigante. Lá fora, o átrio. É lá que se tenta fazer compreender que a força do gigante é comparável à habilidade do anão. Passeia-se nos intervalos e aquele intervalo tem outro valor porque existe alguém que luta por teimosia. Alguém sairá aleijado: um intervalo perfeito. Nos intervalos anteriores passeou-se, apenas, para se apanhar o distraído que comete erros à socapa: não é aconselhável mostrar os pontos fracos em qualquer um destes corredores aparentemente não vigiados. Sem se aperceber, o menino que ali foi deixado pela avó devido ao jeito que esta tinha em lhe acertar brutalmente com o cotovelo, apaixonou-se pela menina do gigante. O gigante é um cadáver por dentro e um atleta por fora. Consegue cuspir na cara e na boa vontade dos professores e deixa-os a chorar repetidamente para seu divertimento (esta a sua faceta de cadáver), e consegue espancar qualquer menino mais pequeno do que ele (faceta de atleta). Quando o toque soou dentro da sala o menino seguiu a menina do gigante até às escadas mais sombrias e foi ali que deram o primeiro beijo e isso foi imediatamente antes de conseguirem explicar alguma coisa com as palavras. O beijo foi identificado pela comunidade que espreita e este, o menino, foi chamado a depor junto do gigante. O menino disse: estou apaixonado, e isso não é bom? O gigante riu-se: coitado do rapaz, não sabia que se estava a meter com a minha namorada, e todos se riram porque o gigante dissera uma piada sem graça nenhuma. Riram-se com pena do menino. Eu sabia que a namorada era tua, mas o amor tem destas coisas, tem destas coisas fortes. O gigante levantou-se e tocou imediatamente no tecto de tão mau que era. O menino ajoelhou-se de tão bom que era. O gigante contra o anão, a luta dar-se-ia no átrio do lar – a força do gigante contra o amor do menino.


Autor: rui almeida paiva



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