quinta-feira, 22 de outubro de 2009

nonagésima sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Estória 1

Nem tudo começaria assim: sem personagens e sem diálogo e sem episódios incompletos: aos altos e baixos, tristeza e alegria.
Podíamos jogar uma partida de cartas antes de seguirmos caminho, disse o primeiro marinheiro. Tenho meio baralho, explicou o segundo marinheiro, a outra metade foi enterrada, lembraste? Jogamos na mesma: os pontos possíveis não são tantos mas será possível determinar um vencedor e um vencido. Metade de um vencedor e metade de um vencido, diz o segundo marinheiro, enquanto baralha as cartas velozmente.
Dois anos antes um subchefe do pelotão tinha utilizado uma estratégia para garantir a sua superioridade: um subalterno nunca poderá adquirir uma vitória completa enquanto não subir de posto, enquanto não matar muitos homens e muitos barcos. Dois desses marinheiros estão habituados a servir com um sonho: um dia também eles serão servidos por marujos novatos. Nesse dia (se esse dia chegar) teriam finalmente o baralho um baralho de cartas na mão e a possibilidade de uma verdadeira vitória. Uma vitória completa. Tirariam metade do baralho de cartas de um dos marujos para completarem, finalmente, um verdadeiro vencedor e um verdadeiro perdedor.



Estória 2

Num belo café de bairro, nos últimos dois anos, não se tem conhecido pessoas mais sábias: ali se sentam, de manhã à noite, e por ali ficam, sem fazer nada. Com grande sacrifício se consegue não fazer nada em dois anos: é muita dignidade junta para uma única pessoa. Um desses homens, muito de vez em quando, tenta falar sobre um assunto: sobre o aumento do custo cafeína e da pastelaria fina, mas não passa de uma tentativa porque ninguém lhe responde. Falar é quebrar esta coisa belíssima que é permanecer no mundo: por isso nenhuma resposta, nenhuma opinião. Seriam maltratados aqueles que o fizessem. É preciso muito mais inteligência para utilizar um bom silêncio do que um bom argumento. Seria visto como um traidor infiel da vida aquele que desse um passo, aquele que se esquecesse dos velhos tempos de inutilidade e de espera. Como é bom não fazer absolutamente nada, deixar de pensar é o próximo passo. Mas para isso são necessários pensamentos, que por enquanto ainda nem um se viu por aquelas bandas.



Estória 3

De face redonda o homem é belo e desliza e é negro na pele e na forma. O negro avança: onde pode ele caçar se não seguir caminho? Que bonito, o preto, quando sorri. E apresenta-se com uma boina da cor da pele e tudo aquilo faz parte da encenação escolhida por si ao pormenor. O bar encheu e a caça alastra-se pelas mesas. Duas vezes seguidas pede a duas brancas para que lhe dêem a honra para a dança que mesmo agora deu início. As duas abanam a cara na horizontal. Está com pouca sorte, penso eu. Coitado, continuo a pensar, quando uma terceira tentativa lhe é recusada. Mas o preto continua a rir com vontade e com brilho: alguma terá as características de uma presa cansada ou de uma presa que já aqui chegou aleijada. Uma quarta tentativa, e lá vai o negro, neste caso na minha direcção. Abeira-se da mesa e do meu corpo. Uma dança? diz-me. Desculpe mas não sei dançar. Ele fixa-me. Não me faças uma coisa dessas. Ajoelha-se. É só um bocadinho! A música aninha-se no baloiço e empurra-me. Ergo-lhe a mão – aí vamos nós. Quantas cores tem um preto, quantas cores fixas ao modo de voar? O preto ajeita-se. Cola-se. O preto tem África nos pés e muito atrevimento nas mãos. Fechei os olhos, será esta a melhor maneira para tentar não fugir? Cinco músicas depois continuei de olhos fechados e com o atrevimento a ondular entre as pernas. Como pode cheirar a terra um homem que saiu de um ventre? Dez músicas depois: de olhos fechados. Inexplicavelmente percebi que não consegui fugir. Estávamos presos. Onde estarei, pensei eu, se não conseguir abrir os olhos? Décima quinta música: as mãos negras surgiram por baixo da blusa para averiguar quantas vezes o coração bate. Vigésima música: poderá alguém fugir da liberdade? Só da falta dela, reparo. Alguém que tem um reino e todas as leis por escrever, como pode esse homem fugir se não tem grades nem muros nem animais selvagens. Vigésima terceira música, abri os olhos e tinha o preto na minha boca.



Estória 4

Com tanto silêncio por escolher, foste logo desabafar no corpo de uma jovem. Pequenos pormenores inventam-se, como: teres nas mãos a vontade de acudir aos seios duros. Outros pormenores não podem fugir à realidade: abres o fecho das calças e o membro encontra vida dentro das cuecas ingénuas e sensíveis da menina quase adulta.
Sabemos escavar porque existem vontades suicidas como esta: a de ter uma tela e um cadáver para desenhar.
Um homem abre um espaço na terra como abre uma ferida na amante porque é ambicioso. A amante jovem ouve-te e tu dizes-lhe já não me serves e ao mesmo tempo não encontras nada dentro da cova que fizeste. O homem tem um quintal: está velho, o homem e o quintal. O homem pensa na jovem que dormiu ao seu lado e não tem sementes, tal e qual como o seu quintal, que durante seis anos ao sol secou completamente por falta de água, por falta de chuva. Por falta de sensações o homem secou por falta de sensações. Ali nada pega, dali não nascerá vida. Nem um fruto. Infelizmente. A solidão é como uma dificuldade de dicção: tentamos utilizar palavras à justa e só saem sílabas que ninguém entende.
Poderás ainda reconciliar-te com a tua desgraça: pegas na inchada e na pá de manhã e depois de tarde: por ali procuras apenas animação. Sem dúvida que a menina que dormiu ao teu lado não te fez nada bem. Agora escava porque não tens outra solução e porque é muito cansativo estar ao Sol e ter tantos ossos em actividade. O buraco no quintal é agora enorme. Nem uma semente, nem um insecto – tudo seco. Ali está a tua ideia, concretiza-a. O homem salta para dentro do buraco. A ideia concretizou-se – um buraco e uma semente velha por germinar. Fez-se depois um silêncio profundo: alguém conseguiu perturbar a natureza por instantes.



Estória 5

Quem não tem muita força muscular e carrega dois sacos de compras muito pesados devia desistir. Muito peso para pouca fome. Muita raiva para pouco ócio. Entramos em pânico, hoje em dia, como facilidade: somos também desonestos facilmente mas isso é outra história.
Ainda não existem nomes para as fobias mais recentes.
Alguém carrega dois sacos de alimentos por preparar, por descascar, por confeccionar. Sentes-te mal: estás fisicamente agoniada: é muito peso para quem não tem apetite. É a raiva e o tédio, estes dois sacos. Gemes. Olham-te porque gemes e porque deixas cair os sacos e porque corres a chorar. Uma dúzia de ovos partem-se de imediato e escorrem: mancham o chão de vergonha. Como se chama esta fobia?
Tens a responsabilidade de alimentar três filhos insolentes e um homem que te enoja.
Como se chama esta fobia?
Encontrarão um nome para este problema, os psiquiatras, no dia em que te fizeres notar. Descansa que tudo um dia se torna doença. Um dia serás tratada como uma verdadeira doente, uma doente com direitos e deveres e não como uma mulher pouco funcional que já não consegue fazer refeições.
Os três filhos chegam a casa, procuram o jantar quente antes de procurarem pela mãe. Não há comida por ali. Saem de casa para procurarem uma refeição e não chegam a confirmar se ainda têm mãe. Isso já não lhes interessa. O homem chega depois: nem uma batata cozida nas várias panelas vazias. Também sai de casa sem se lembrar de procurar pelos filhos e pela esposa.
Deitada numa marquesa, a mulher nua e um neurologista que já começou a operá-la. Em vez de rasgar o cérebro da senhora que foi encontrada estranhamente a atirar os sacos das compras para o chão, o neurologista foi direito ao órgão que precisa de atenção. Cava-lhe o peito, o cirurgião, em busca da alma, será lá que encontrará o nome para a sua nova fobia.


autor: rui almeida paiva

Sem comentários:

Enviar um comentário