sexta-feira, 13 de março de 2009

décima primeira tentativa para chegar ao mesmo sítio

Bati à porta três vezes. Esperei. O frio atingia-me os pés. Voltei a bater à porta. As luzes continuavam acesas e nem um som que me pudesse indicar a presença do senhor Marx, o filósofo da cidade.
Bati à porta mais três vezes, mas agora com a ajuda da Bengala dos Pensadores. Era assim que nos distinguíamos na rua: os que usam bengala e os que não usam bengala. Quem usa bengala para embelezar o andar nem sempre é coxo, e quem é coxo nem sempre utiliza uma bengala bela – explicava Marx, anos atrás, quando se cruzava com aqueles novatos de bengalas de marfim esculpidas pacientemente com pincéis de lã; tentando, estes novatos pretensiosos, mostrar alguma sabedoria ridícula a partir de um apetrecho – a bengala – que não lhes era útil. A distinção está no cérebro e não na aparência – continuava Marx, agora a falar para todos os cidadãos que o cumprimentavam respeitosamente. – E como o pensamento é algo que não se vê, temos, sem combinarmos entre nós, que arranjar um aspecto visivelmente perturbador para nos distinguirmos da restante população. O pobre distingue-se pelo cheiro, declamava o filósofo à cidade. Os ricos distinguem-se pela falta de cheiro. Os ladrões distinguem-se pelas mãos muito bem compostas, mas escuras nas unhas. Os trabalhadores distinguem-se pela pele dura dos dedos e pelo sangue pisado dos braços. Os infiéis distinguem-se pelo olhar atrevido. Os fiéis distinguem-se pela cegueira. E aos Pensadores, a nós ninguém nos distingue dos Burros? Faltamos nós – explicou Marx numa das suas palestras diárias.
Passado uma semana de reflexão, a população apareceu em peso: o filósofo já deveria ter a solução do problema – a característica exterior que distinguisse um Homem inteligente de um Homem estúpido. Marx subiu ao palanque, imperativo. Começou a discursar com altivez e afinco: aquilo que nos distinguirá dos Burros é a... E antes de continuar a palestra, percebeu que alguém entre a multidão abriu o jornal ao contrário. Marx inclinou a cabeça para o lado direito, exactamente como se estivesse interessado em perceber qual seria a pertinência de ler um jornal de pernas para o ar.
No dia seguinte, quando Marx saiu de casa, estava quase tudo estranhamente a passear com a cabeça inclinada para o lado. Ao se aperceber da situação que ele próprio tinha originado, Marx resolveu subir, com a cabeça inclinada para a direita, os cinco degraus que davam acesso ao palanque e, de lá, anunciou uma reflexão vinda das distensões e das contusões: para bem dos torcicolos, que são a sala de espera para todas as restantes dores desconfortáveis, e para bem das notícias do jornal, que vistas de lado tornam-se rapidamente em notícias de amor em vez de revelarem as verdadeiras notícias trágicas (o que é inadmissível para a verdade das palavras e para a imprensa que procura informar a verdade dos factos; pois um jornal sem mortos na capa é, com toda a certeza, mais chato que um ensaio sobre os Princípios do Idealismo Panteísta). E isso todos nós sabemos desde crianças. Pensar dá mais trabalho que tratar correctamente de um torcicolo, e agora vocês é que escolhem: ou tratam do torcicolo, ou tratam da burrice. Marx, levemente, endireitou a cabeça, mas ao descer o primeiro degrau do palanque, apareceu-lhe no corpo uma ideia muito pouco anatómica que o fez tropeçar. Marx caiu de imediato sem salvação possível. Tinha tropeçado numa ideia apenas cerebral. A consequência foi bastante desagradável: a partir daquele dia teve de usar, também ele, um torcicolo no pescoço e uma bengala na mão.


Autor: Rui Almeida Paiva

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