domingo, 8 de março de 2009

sexta tentativa para chegar ao mesmo sítio

Aos vinte e três anos fui ao médico, e este, com uma calma de médico veterano, disse-me sem me olhar nos olhos: ao senhor resta-lhe uma semana de vida.

Aos trinta e cinco anos fui ao mesmo médico; tinha passado tempo suficiente para ter a certeza concreta de que não tinha morrido como me tinha sido prescrito anos atrás. O médico, para meu espanto, não ficou surpreendido por me ver de novo; estendeu-me a mão, naturalmente, e utilizando os dedos como cinco belas espadas, aconselhou-me a sentar.
Deve estar cansado – disse-me ele – já não o via há uns tempos. Então o que o traz por cá?
Senhor Doutor, tenho algumas dores de garganta – disse-lhe eu para não ferir o lado profissional daquele homem, para não referir que se tinha enganado em relação ao tempo de vida que me restava.
No entanto, curioso, perguntei:
Então, Senhor Doutor, o que é que eu tenho na garganta?
Um cancro, querido paciente, não lhe restam mais de trinta dias; vinte e oito, quero eu dizer, visto estarmos no mês de Fevereiro.
O mês seguinte foi desgastante, é um facto, o tempo não parava de diminuir: quando um médico nos diz que vamos morrer, acreditamos. Deus e todos os seus seguidores devem, também eles, ser um pouco de cirurgiões ou um pouco de médicos de clínica geral, visto terem tudo bem descrito na Bíblia: um dia todos morremos, é uma fatalidade. Mas em padres hoje em dia, quem é que acredita? O que sabem eles de infecções mortíferas e de doenças com data marcada?
Contudo, o que me valeu no meio disto tudo, foi não ter morrido nesse mês nem nos seguintes.

Feliz, e com uma outra maturidade para enfrentar os incompetentes, decidi, aos meus quarenta e oito anos, ir ter com o Doutor que não sabia adivinhar a medicina dos seus clientes.
Quando lá cheguei o médico tinha falecido. Peço imensa desculpa, mas o Doutor que procura morreu no ano passado, foi baleado por um doente pouco convicto. Sem que se notasse, esbocei um sorriso irónico ao ouvir tal notícia. Mas mal saí do consultório, o inesperado aconteceu: tinha a sensação de me faltar algo. Espreitei primeiro para dentro dos bolsos, depois para a pele e, por fim, para o meu interior. Falta-me a Crença, é isso, falta-me a Crença com que saía do consultório de cada vez que cá vinha. Daqui saía sempre com uma meta e com uma grande convicção: o Doutor diz que vou durar apenas uma semana, mas vamos ver quem é que tem razão... agora é que vamos ver, insistia eu na altura em que ainda era jovem, o Doutor deve estar é louco.
Agora tinha quarenta e oito anos e, ao sair do consultório, a falta de Crença não era só um estado de espírito, era também um estado físico: de repente senti-me tonto, sem apoio, e os pés fugiram-me do chão e desequilibrei-me com uma facilidade impertinente. No lancil da estrada sentei-me com as duas mãos agarradas à cabeça. Sentia-me pela primeira vez perdido, desorientado: e agora quem é que vai tentar adivinhar o dia da minha morte? Agora seguro-me a quem?

O dia passou, como devem imaginar, impregnado de uma agonia terrível: faltar a Crença a alguém pode ser o seu fim, já diziam os teólogos do século treze.
Na manhã seguinte, ao acordar, os acontecimentos simples, sem que tivesse reparado, tinham também eles desaparecido: não coloquei os pés nos chinelos, fiz a barba que conservava desde a adolescência, tomei chá ao pequeno-almoço em vez de leite e fui-me deitar em vez de ir trabalhar. Quando cheguei à cama apercebi-me que não existiam razões úteis para continuar a viver.
Quem pode, hoje em dia, continuar a viver sem saber o dia da sua morte?


Autor: Rui Almeida Paiva

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