segunda-feira, 9 de março de 2009

sétima tentativa para chegar ao mesmo sítio

Gosto de apreciar um canalizador a reparar um cano que desperdiça litros de água para uma sarjeta. Gosto, também, de apreciar uma criança a tapar um buraco que está a mais no meio de um jardim. Os dois (o canalizador e a criança) são apenas mais duas tentativas utilizadas por Deus para curar as feridas superficiais do mundo: para curar uns arranhões!, diriam os anjos, optimistas. Ou para curar as alergias, diriam os políticos, que costumam olhar para a vida com os olhos inflamados: olhos de quem só sabe fazer buracos para os outros taparem.

O Assassino falou ao Padre, o Padre falou ao Bispo, o Bispo falou ao Cardeal e o Cardeal falou ao Papa.
Nos pés do Assassino existe um desconforto azarento: logo hoje, que tinha tanta gente para assustar, é que calcei, por engano, os sapatos de uma outra pessoa. Os pés do Assassino incharam, em poucos minutos, e enquanto tentava percorrer uma curta distância, os poucos passos que deu tornaram-se insuportáveis para poder usufruir da locomoção. De súbito o assassino fecha os olhos para que não existam provas que o incriminem: quer dizer que o senhor não aguentou uma simples “dor de pés”, diria o advogado de acusação, com toda a certeza, no dia da sentença final. O Assassino tirou, então, os sapatos de olhos fechados: assim nem eu poderei servir de testemunha.
Quando o Assassino chegou perto da porta de entrada, passou pelo espelho como é de seu costume; ali era de seu hábito retocar a gola da camisa e a ponta da gravata; o que se tornara impossível neste dia porque, a cobrir a sua extensão corporal de Assassino, apenas um vestido preto e liso sem camisa e sem gravata, apenas um vestido liso, e todo preto, e muito justo à pele. Ao levantar um braço na direcção do seu reflexo – para satisfazer a necessidade assustadora de poder confirmar que aquele era mesmo ele – o vestido rasga-se na zona das axilas. Desanimado, pensa para si: levar uma roupa feminina para o tribunal não me deve ajudar. O Assassino fecha de novo os olhos para que não existam provas que o incriminem: para além de não aguentar uma simples “dor de pés”, ainda tem o descaramento de se apresentar de vestido em frente ao juiz; nem uma mosca, este homem conseguiria matar, quanto mais um ser humano!, diria o advogado de acusação, para justificar as suas insinuações com uma outra segurança, tentando, assim, convencer o público da sua fraqueza enquanto criminoso.
O Assassino tem de se despir, mas primeiro vira as costas ao espelho: um reflexo pode tornar-se numa testemunha?, é nisso que pensa ao rodar sobre si. Depois, de olhos fechados, tira o vestido preto e liso: enquanto não existirem provas, poderei continuar a ser perigoso, concluiu ele, motivado com a ideia de se defender da bondade a todo o custo.
Todos os Trabalhadores Exemplares agradecem à sorte o facto de terem um trabalho de que gostam; o Assassino, antes de partir para o julgamento, agradece à maldade o facto de saber utilizar a faca e a pistola. O Assassino costuma apenas segurar num colar de estimação e dizer obrigado antes de partir para algo de importante. Mas o próprio dia não estava disposto a seguir os rituais normais: para além de ser o dia em que saberá se será considerado culpado ou inocente do homicídio de doze homens muito femininos, o Assassino, à porta de casa, completamente nu, segura no seu colar de estimação e, quando está prestes a beijá-lo, apercebe-se de que acabou de tocar num crucifixo.
Já na rua, alguém o chama. É alguém que ficou dentro de casa. O Assassino, completamente nu, virou-se e apercebeu-se de que na porta está o tal Padre que disse ao Bispo, que por sua vez disse ao Cardeal, e que inevitavelmente acabou por dizer ao Papa. É o Padre, e está vestido de Assassino, reflecte ele para si, antes de continuar caminho. Vem cá depressa, disse de novo o Padre, erguendo nas duas mãos uma faca e uma pistola. O Assassino, no entanto, com medo, procurava não dar nenhuma atenção ao que ouviu da boca do Padre e, correndo com uma sensação confortável dentro de si – uma sensação de fé tranquilizante que permanecia dentro do seu corpo nu – começou a aperceber-se de uma dificuldade decisiva: a dificuldade de provocar o terror. Nessa corrida interminável, o Assassino, que nunca soubera avaliar um sorriso, acelerou os lábios como se estes fossem duas intenções honestas e iniciou uma admirável reza que só terminou no final do julgamento.
Hoje, passados vinte anos, o Assassino continua internado num hospício muito agradável, onde passa os dias sob intensas orações. Quanto ao Padre, num mês matou o Bispo, que por sua vez tinha morto o Cardeal, que inevitavelmente acabou por matar o Papa.


autor: Rui Almeida Paiva

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