quarta-feira, 1 de abril de 2009

vigésima quinta tentiva para chegar ao mesmo sítio

Para se quebrar o descanso do senhor Marx, seria preciso a autorização de alguém poderoso. Um rapaz entrou dentro do quarto do senhor Marx com a respiração ofegante e tentou começar uma frase, tentou dizer a revolução começou, a revolução começou, mas preferiu esperar que o senhor Marx acordasse; depois disse a revolução começou, a revolução começou e o senhor Marx ainda não tinha acordado completamente, ainda nem tinha saído da cama.
Marx espreguiçou-se, colocou-se na vertical e, ao dirigir-se para o armário disse: já não era sem tempo, até que enfim a tão esperada revolução. Uma roupa confortável, é o que necessito para este dia especial, verificou ele, ao analisar as camisas simetricamente bem arrumadas em cabides simetricamente bem distribuídos. Marx vestiu um fato de treino, o único fato de treino que tinha. Uma revolução é em tudo idêntica a uma aula de ginástica, nas duas não há interesse nenhum em conseguir o possível – apenas na perfeição se pensa, quando o revolucionário se mostra pronto para executar uma cambalhota com a sua liberdade.
O rapaz entrou de novo no quarto e pensou dizer a revolução vem a descer a rua, mas o senhor Marx elevou uma das mãos, e desta forma ouviu-se: agora esperas, se fazes favor, agora estou concentrado em abotoar a minha camisola. Depois Marx olhou para o rapaz e viu-o tão encarnado e inchado que até se assustou: permito imediatamente que fales. A revolução vem a descer a rua, gritou o rapaz, que continha há já algum tempo, em suspensão, duas necessidades vitais: a respiração e a frase. Foi uma intervenção distorcida, aquilo que apareceu da boca do rapaz. Por isso Marx pediu que a repetisse: a revolução vem a descer a rua, repetiu o rapaz, agora mais calmo. Existem frases que nos tiram o fôlego, e se não as dizemos num tempo muito bem estipulado pelos limites da apneia, lá se vai respiração e lá se vai a frase!, pensou o rapaz, enquanto saía do quarto do senhor Marx.
Marx, previsivelmente reflexivo, informou os seus poderosos ideais interiores do seguinte:
– Uma revolução acontece, ciclicamente: ou de cinquenta em cinquenta anos, ou, se quiserem, uma vez na vida de cada ser humano. Posso, como tal, concluir que o meu dia chegou: chegou o dia de usufruir da revolução a que tinha direito.
Mas estava na hora de escovar o animal que vivia lá em casa: o belo e sensato cão Carl. Por essa razão o senhor Marx disse:
– O meu querido animal de estimação não pode ir para a rua neste estado; é um dia demasiado importante para passar por cima da sujidade.
Enquanto passava a escova rígida por entre os pêlos leves do cão Carl, Marx brincava com a imaginação como se esta pertencesse às peças de um jogo estimulante. Começou, então, a entregar-se ao pensamento de como seria uma Revolução a descer uma rua e pensou:
– Talvez tenha duas pernas generosas e os seios de uma rapariga carente.
Com esta frase, Marx apercebeu-se que estava excitado: a atracção ocorre inesperadamente no corpo tal e qual como a convicção de uma bala a sair de dentro de uma espingarda, constatou ele.
Lá fora dez tiros foram disparados – talvez a morte fizesse parte da Revolução, pensou Marx, enquanto desembaraçava um dos nós do cão Carl. Com o som dos tiros, o desejo erótico de Marx adormeceu, despertando-se-lhe as certezas originais:
– Espreitar por entre duas portas e apreciar uma pequena poça como se esta fosse um grande lago, é um dos efeitos da Revolução.
Quase pronto, Carl lambe o seu dono com ternura. Marx sente comichão: a saliva é um cálculo de preencher felicidade valiosa. Sem se mover, Marx deixa secar a saliva que Carl espalhou pelo seu pescoço, e sente-se bem por isso.
Da rua, dez gritos desoladores chegam aos ouvidos do senhor Marx: é a Revolução, e está mesmo ali à porta. Marx levanta-se: está na hora de brincar com o osso preferido de Carl, o que é seriamente importante para a boa disposição de um cão que vai sair de casa. Enquanto brinca com o osso de Carl, Marx não pára de reflectir – está na sala, perto dos armários que suportam uma enciclopédia milenar, o que costuma favorecer as suas melhores reflexões:
– Um dos principais erros de quem vive uma revolução é tornar-se exageradamente insolente para com o perigo e demasiado cordial para com a monotonia.
Cansados de tanto brincar, Carl e Marx decidem adormecer lado a lado, como é hábito suceder.
Da rua, dez minutos de silêncio fazem com que Marx acorde sobressaltado. E a Revolução?, perguntou o senhor Marx, pousando as mãos sobre o tapete onde adormecera; empurrando-o, de seguida, para se poder elevar num só gesto. Apressado, chegou à porta de entrada. Abriu-a. Colocou-se no lado exterior da casa. Agora sim estava pronto para absorver a sua Revolução. Mas a ausência de novos imprevistos fê-lo perceber que a Revolução já lá não estava; a Revolução tinha-se distanciado e tinha perdido as forças numa outra rua que desagua numa outra praça onde a Revolução acabaria por falecer definitivamente.
Ao entrar novamente para dentro de casa, Marx arrastou-se de forma desagradável – um perdedor, era o que lhe chamariam todos os seus amigos, quando se falasse daquele dia que tinha ficado para a história. Por essa razão Marx voltou para a sala, onde se apercebeu do ar sereno e feliz do seu querido cão.
– Ora aqui está uma boa causa: abdicar das revoluções históricas para se usufruir das revoluções diárias.
E com o punho levantado, Marx era um homem no centro da sua sala, orgulhoso com a sua extraordinária conquista em forma de animal deitado.


autor: rui almeida paiva

Sem comentários:

Enviar um comentário